Categorias: CINEMA

Crítica: Tallulah

Ser uma pessoa que assumidamente não tem o costume de assistir a filmes não me impede de ter um gênero favorito ou de demonstrar interesse quando determinada produção é anunciada. Quando assisti ao trailer de Tallulah, escrito e dirigido por Sian Heder, também responsável pelo roteiro e edição de Orange Is The New Black, esperei com certa ansiedade sua estreia na Netflix para acrescentá-lo a minha lista. Tallulah é um filme independente, de caráter dramático, cuja personagem principal é interpretada por Ellen Page, atriz conhecida principalmente por seu papel como Juno no filme homônimo. Dando a impressão de prometer um enredo baseado na percepção das personagens sobre problemas da vida, o filme não decepcionou.

Atenção: este texto contém spoilers!

Tallulah é uma jovem que vive de maneira nômade em seu furgão, viajando o país na companhia de seu namorado, Nico (Evan Jonigkeit). Vivendo uma vida de meliante, ela sobrevive à base de furtos e restos de comida dando a leve indicação de que a vida não fora gentil com ela antes de alcançar tamanha independência. O filme não fornece muita informação sobre o passado de Lu, como ela é chamada, apenas o necessário para que os eventos presentes façam sentido. Como, por exemplo, a ocasião em que ela conheceu o seu namorado e como ambos foram parar juntos na estrada. Depois de dois anos vivendo de tal forma, Nico admite estar cansado e quer aderir a um estilo de vida estável, o qual Tallulah se mostra extremamente resistente, e por isso ele vai embora na calada da noite, deixando-a dormindo sozinha em seu furgão. A única pista que Lu tem que possa indicar o paradeiro do namorado é a menção que ele fizera à vontade que tinha de rever a mãe.

Ela vai, então, até Nova York, tentar contato com a sogra, Margaret “Margo” Mooney (Allison Janney, que também trabalhou com Page em Juno), e talvez conseguir algum dinheiro para sobreviver pelos próximos dias. É uma tentativa frustrada, que a faz sair do prédio em que Margo mora e perambular pela cidade mais um pouco. Então, ao invadir um hotel para tentar conseguir comida, ela é abordada pela Sra. Carolyn Ford (Tammy Blanchard) que a confunde com uma camareira e a induz a tomar conta de sua filha de um ano, Madison (Liliana Evangeline Ellis), enquanto ela vai a um encontro. Tallulah tenta escapar, mas o dinheiro oferecido a faz mudar de ideia. Depois do encontro, Carolyn retorna ao hotel completamente de ressaca, e sua irresponsabilidade e negligência faz Tallulah tomar uma atitude drástica e ela acaba saindo dali com a criança. E, tendo encontrado uma forma de persuadir Margo, ela retorna ao prédio e mente para ela dizendo que a menina é sua neta para conseguir ajuda.

Assim, somos introduzidos às personagens centrais do filme. Três mulheres, cada uma com seu devido histórico de problemas pessoais mal resolvidos e uma grande tendência a fugir deles, optando por escolhas equivocadas a fim de escapar desses problemas. Elas próprias se colocam em situações difíceis para, posteriormente, questionar a razão da infelicidade e se indagar qual é o propósito daquilo tudo. Ter seus caminhos intercruzados não torna a vida mais fácil para nenhuma delas, mas as põe na direção necessária para que elas sofram um desequilíbrio na perspectiva que tinham e mudem por si mesmas sem, necessariamente, a garantia de um final feliz.

O sequestro é o evento que coloca o filme em movimento e assegura a dinâmica na história até chegarmos ao desfecho do crime. No entanto, Tallulah é muito mais um filme psicológico, cujos pontos fortes estão na mente das personagens e no modo como elas encaram a vida e tudo que lhes diz respeito. São mulheres com personalidades distintas, cada qual com amarras que as prendem no comodismo e na infelicidade, precisando justamente de um evento que as chacoalhem e ensine-as a ver a vida de outro modo.

Sendo a personagem principal do filme (o que é um tanto óbvio pelo título que leva seu nome), Tallulah é quem abre o longa-metragem em uma cena em que está claramente se metendo em encrenca e não tem preocupação alguma quanto a isso, antes de descobrirmos que a vida que ela escolheu levar é a máxima da independência, e um tanto decadente até, mas que a satisfaz e no fim é isso que importa. Logo presumimos que a característica de Lu é ser desprendida, não ter um plano fixo nem amarras que a prendam a ninguém e lugar nenhum. A questão que a leva a ser dessa maneira, como ela conta depois, é que um dia ela dependeu de alguém e agora não quer que ninguém dependa dela. Para Tallulah, ter um plano que dependa de outras pessoas é sinônimo de inocência. Claramente há uma enorme falta de confiança residindo em si, mas não acaba sendo necessariamente um defeito, uma vez que ela não vê defeitos na vida que leva, e apesar dos problemas, não é tão infeliz. Seu envolvimento com Madison, mesmo que a princípio tenha sido relutante, acaba despertando em Lu um amor genuíno devido à vulnerabilidade e dependência daquele ser que não faz a menor ideia do que está acontecendo, mas que tinha tudo para ter uma vida problemática se continuasse onde estava.

Enquanto isso, antes de conhecer Tallulah, Margo levava uma vida bem-sucedida, porém solitária, devido ao divórcio em andamento e o abandono pelo filho, que saíra de casa sem avisar para ganhar o mundo com Lu há dois anos. Há certa ironia em sua personagem pelo fato de Margo ser uma acadêmica cujos livros mais vendidos falam sobre a dinâmica da família, enquanto a sua está em ruínas. Embora nada seja dito, podemos presumir que ela sabe disso pelo constante estado de negação em que se encontra. Suas verdadeiras emoções ficam à mostra em cenas específicas e breves, ou melhor, cenas com duração o suficiente para sabermos como é seu verdadeiro estado de espírito. Ver aquela garota maltrapilha de uma hora para outra na porta do seu apartamento não foi o suficiente para abalá-la ou ao menos aceitar ouvir o que Tallulah tinha a dizer. O que a fez abrir a porta na segunda visita foi a presença de Madison, apresentada como sua neta. Durante o tempo em que conviveram, as verdades que Tallulah disse para ela, sem cerimônias, foi o que Margo precisava para enxergar de fato a situação em que estava vivendo. Não mais ela estava sozinha, e esse foi o primeiro passo para uma pequena catarse.

No outro cenário, Carolyn, a mãe de Madison, aparece como uma socialite que não pensa em ninguém além de si própria. Hospedada em um quarto de hotel com a filha de um ano e escondida do marido, que está em uma viagem de negócios, Carolyn está se arrumando para um encontro quando aborda Tallulah para que ela tome conta de Madison enquanto está fora. Sem indicação alguma de que ela sabe o que está fazendo, Carolyn desabafa com Lu sobre todos os problemas do casamento e fala como se a filha fosse um fardo em sua existência. Seu objetivo é se sentir desejada de novo, e quando isso não acontece, ela se afunda ainda mais no álcool e no cigarro. O sequestro é o estopim para seu desespero e colapso nervoso. Os policiais e a assistente social veem-na como culpada, dada a negligência e a clandestinidade em toda a situação (viajar sem o conhecimento do marido, não ter averiguado quem era aquela garota a quem Carolyn confiou a filha, etc.). E é bem verdade que Carolyn não é o melhor exemplo de mãe e mulher, mas não se pode ignorar o fato de que ela é visivelmente uma mulher com depressão, que precisa de ajuda antes de qualquer julgamento. Na situação em que ela está, é comum que a condenação venha antes da empatia. Afinal, ela teve sorte com o casamento. Mesmo que seja ignorada pelo marido, mesmo que tenha tido uma filha na tentativa de reconquistar sua atenção antes de perceber que essa não era a melhor solução para o problema. É mais fácil vê-la pelo que aparenta do que pelo que ela é: uma mulher em estado vulnerável que não vê saída para sua situação e por isso mete os pés pelas mãos. Sem mencionar o fato de que não temos, em momento algum, contato com sua história a um nível mais profundo.

A pequena Madison, por outro lado, pode não ter maior destaque no grande quadro do filme, mas seu papel é crucial visto que ela é o ponto de intersecção entre as histórias. Madison é a criança negligenciada que desperta preocupação em Tallulah pela sua vida ser desequilibrada antes mesmo que ela tenha noção disso. Mesmo sem querer, Lu acaba criando um vínculo com a menina, torna-se incapaz de deixa-la em qualquer momento que poderia ter feito isso, e isso porque a regra de sua vida era não depender de ninguém e não deixar ninguém depender dela. Madison também é quem faz Margo abrir as portas para Lu, primeiro por acreditar que tinha qualquer responsabilidade com aquela criança — que ela acreditou ser sua neta — e depois por ter se encontrado em companhia novamente. E seu desaparecimento faz Carolyn perceber o quão errada esteve o tempo todo, e o seu pânico e a situação em que se colocou que desmoronou sua vida mais ainda, fê-la perceber que queria a filha mais do que tudo.

Tallulah é um filme sem um grande dinamismo, mas relevante no que diz respeito às questões internas de desenvolvimento das personagens e, principalmente, personagens mulheres. A pouca aparição de personagens masculinos deixa óbvio que o enredo não é sobre eles, e mesmo que tenham sua devida parte na trajetória de cada uma daquelas mulheres, as escolhas da vida de cada uma delas estão nas suas próprias mãos. Não importa que não sejam as pessoas mais bem resolvidas desse mundo, elas são perfeitamente capazes de se colocar em situações difíceis e sair delas da maneira que for, porque vulnerabilidade não é sinônimo de incapacidade, e seus sentimentos importam, mesmo que não sejam da melhor natureza.

Filmes independentes são normalmente conhecidos pelas suas temáticas complexas e algumas até desaplaudidas, e quando essas temáticas estão baseadas em relações humanas a interpretação pode ser bem subjetiva. É preciso reconhecer que Tallulah não é um filme de grande alcance; é possível que quem se disponha a assistir por assistir não crie uma conexão com ele. As atuações de Ellen Page, Allison Janney e Tammy Blanchard são ótimas, as atrizes conseguem demonstrar os sentimentos de suas personagens com maestria, e é isso em que o filme se baseia: sentimentos. Esperar qualquer ação em Tallulah será em vão, quando o filme se sobressai justamente por diálogos e metáforas sutis.

Banner de review - Tallulah

3 comentários

  1. Grande filme, só o final com a “avó” Allison Janney flutuando é que achei fora de foco, foi desnecessário a cena.

    1. Então talvez você não tenha compreendido alexandre, o final representa a mudança de perspectiva da avó , já que quando esteve no parque pela última vez a Lu conversava sobre a importância da gravidade para ela , e nesse momento a avó diz que não se agarraria se deixaria flutuar ( o que indica uma desistência de sua vida) E na última cena ela se deixa flutuar mais no último, momento se agarra ( indicando uma retomada do controle de sua vida).

Fechado para novos comentários.