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Crítica: Orange is the New Black

Algumas coisas nunca mudam, e se nos últimos quatro anos servem de alguma prova é que é impossível negar que Orange is the New Black é muito mais do que apenas hype. A quarta temporada da série, que estreou no último dia 17, implodiu a internet e fóruns de seriadores, e nós, do Valkirias, não poderíamos deixar a ocasião passar sem nota.

Sempre eficaz em levantar temas pouco debatidos, Orange is the New Black trouxe, de novo, grandes questões à trama. Se sua primeira temporada foi a de adequação a um determinado meio e a retratação da sexualidade de mulheres, a segunda contou, além disso, com uma antagonista memorável — como esquecer de Vee (Lorraine Toussaint), depois de tudo? A terceira, então, adicionou ainda mais na receita e trabalhou temas como religiosidade, disputas interseccionais de poder dentro da prisão e bissexualidade — embora Piper Chapman (Taylor Schilling), a distante protagonista da série, sofra uma dificuldade imensa em admitir isso, colocando em xeque a heteronormatividade e a dificuldade em representar personagens bissexuais na TV.

As prévias temporadas também trabalharam assuntos como a transexualidade, o uso de drogas, o abuso sexual e o machismo. No entanto, foi aqui, em sua quarta temporada, que a série misturou todas essas questões: todas elas continuam presentes, mas há ainda mais do que já vimos antes.

A Nova Litchfield

A quarta temporada tem início com o desenrolar da privatização na prisão de Litchfield: com a necessidade de acomodar mais detentas, as camas precisam ser substituídas por beliches e a capacidade dos dormitórios dobra, sem, no entanto, serem observadas outras questões de infraestrutura — quando absorventes se transformam em itens de luxo e moeda de troca é porque há algo extremamente errado com a maneira de administrar a prisão, o que nos faz lembrar de reportagens sobre as condições das penitenciárias femininas daqui do Brasil.

É visível o despreparo de todos os setores do sistema penitenciário, mesmo que privado — ou seria ainda mais o privado, que capitaliza vidas? —, que não se preocupa com o número de instalações sanitárias e demais itens básicos para o bem estar das detentas. Dá a entender que para dobrar a capacidade do lugar a única necessidade visível é dobrar a quantidade de leitos. A superlotação transforma-se em um problema real quando não há postos de trabalho disponíveis para todas as detentas e itens de primeira necessidade, como os já citados absorventes, não estão acessíveis. A crítica ao sistema penitenciário está toda aí.

Orange is the New Black
Superlotação e falta de infraestrutura na prisão

Como Caputo (Nick Sandow) vive dizendo, as detentas são responsabilidade de Litchfield e, enquanto responsabilidade, devem ser bem cuidadas e tratadas. Muito embora a visão do diretor da penitenciária soe idealista de início e que ele, de fato, tente fazer algo de bom para elas, com o desenrolar da temporada podemos acompanhar que não é bem assim que a banda toca. Atado pelo comando da MCC (Management & Correction Corporation), a empresa que administra Litchfield após a privatização e que enxerga apenas lucro onde há pessoas, Caputo vai aos poucos perdendo o viço e suas ações desastrosas atingem o ápice no season finale — mas chegaremos lá.

Ainda na perspectiva carcerária, outro ponto que trouxe novos ares à trama foi o sucateamento da educação, indo contra toda o conceito de ressocialização das detentas. Se a ideia de Caputo era trazer cursos de cunho escolar para dentro da prisão, fazendo com que as detentas desenvolvam habilidades e conhecimentos que as ajudariam no mundo lá fora, a ideia da MCC caiu por outros lados: por que dar trabalho às detentas se podemos mascarar trabalho como um curso profissionalizante, não pagando-as um centavo? E é isso que vemos quando as mulheres são postas a trabalhar na construção de um novo pavilhão, sem ganhar nada, sob o pretexto de que estão aprendendo algo.

É com a saída de Aleida Diaz (Elizabeth Rodriguez) que, não com dificuldade, percebemos o quanto a prisão falha com suas detentas. A ideia de ressocialização transforma-se em um tipo de falácia uma vez que a personagem não sabe para onde ir, não tem habilidades para seguir em frente e sai da prisão sem saber muito bem o que a espera lá fora. Não é à toa que é enorme o índice de reincidência em casos desse cunho, e não poderia ser o contrário quando prisões estão sendo usadas como meio de punição, deixando de lado a reintegração social.

Além de tudo isso, o clima de Litchfield muda quando um grupo de novos policiais, ex-soldados e quase robôs, entra na jogada. Não bastasse o despreparo e indiferença dos que lá já se encontravam — especialmente Sam Healy (Michael J. Harney), que se esconde atrás de ditas boas intenções para mascarar sua óbvia misoginia —, o novo grupo consegue, ainda mais, baixar o nível. Violentos, rudes, corruptos, misóginos e sádicos: eles não perdoam, e pioram a atmosfera de guerra do interior da prisão. Observamos, com pesar, uma realidade não tão ficcional assim: policiais marinados em corrupção, protegendo-se entre si e insensíveis ao sistema prisional no qual trabalham.

Alguns dos mais pesados acontecimentos da quarta temporada foram instigados por um dos novos policiais, Thomas Humphrey (Michael Torpey): um sádico da pior espécie, que obriga duas das mais  frágeis detentas a brigarem entre si e, também, com uma arma na cabeça perversamente faz com que alguém engula animais vivos. Não precisamos acrescentar mais nada, não é?

Dentro de Litchfield

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Judy King (Blair Brown)

Outra novidade com a qual as detentas precisam lidar nesse novo ano de Orange is the New Black, é a presa/celebridade Judy King (Blair Brown). Sua inserção foi plantada nos últimos episódios da temporada anterior e a expectativa por parte de suas fãs em Litchfield, principalmente Poussey Washington (Samira Wiley), era enorme.

Dona de um programa de culinária na televisão, Judy King é basicamente inspirada no que aconteceu com Martha Stewart, presa por cinco meses em 2005 por crime financeiro. Sua versão na série foi presa por evadir-se do pagamento de impostos e, enquanto celebridade com um programa de culinária na televisão, acaba recebendo regalias por parte da diretoria da prisão que cede a ela uma cela especial, mais tarde compartilhada por Yoga Jones (Constance Shulman), além de tratamento preferencial — tudo porque os diretores da MCC temem que, ao sair da prisão, Judy vá aos jornais reclamando do tratamento recebido, trazendo má publicidade para o “negócio” que administram.

A adição de Judy King ao elenco de personagens trouxe, além da questão do tratamento diferenciado para detentas com certo status fora da prisão, a visão da sexualidade das mulheres mais velhas. Logo em suas primeira cenas Judy revela viver em um relacionamento poliamoroso, visto que tem um marido e um namorado fora da prisão. Isso parece chocar Joel Luschek (Matt Peters) de início, mas Judy não se faz de rogada e flerta abertamente com ele também. Mais tarde na temporada, após o uso de algumas drogas, Judy, Luschek e Yoga Jones fazem sexo no que poderia ser uma cena para chocar a “família tradicional brasileira”, mas serve para apresentar uma personagem que não tem vergonha de ser quem é.

Judy, enquanto mulher de mais idade, abraça sua sexualidade e não tem vergonha de sentir desejo e atração, sendo quem quer ser, sem precisar se desculpar por isso. A cena do dia seguinte da relação a três, inclusive, serve para pontuar essa característica de Judy muito bem: ao mesmo tempo em que Luschek e Yoga Jones sentem vergonha e algum arrependimento a respeito do que aconteceu entre eles, Judy toma seu café da manhã como se o threesome não fosse nada de mais — o que, de fato, não é.

Judy King está longe de ser uma personagem perfeita — ela é racista e tem a tendência de usar e manipular as pessoas apenas para seu prazer, mas a inclusão de uma trama que envolve a sexualidade de pessoas mais velhas é bem louvável já que é algo que não vemos com frequência na mídia. Além do mais, é importante frisar que Judy ama abertamente e independente do sexo da pessoa, ela tem orgulho de sua sexualidade e de ser livre para se relacionar com quem bem entender. É significativo que um seriado com o alcance de Orange is the New Black demonstre que não importa a idade, você pode sempre gostar de sexo. Como a própria Judy diz “Não tenho nada o que esconder, não tenho vergonha. Sim, usamos drogas e tivemos um sexo a três aqui mesmo. As pessoas sempre tentam dessexualizar pessoas da minha idade, e eu simplesmente não vou permitir”.

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Piper Chapman (Taylor Schilling)

Por outro lado, a quase irrelevante protagonista, Piper Chapman, mais uma vez mostrou porque está longe de ser a favorita. Piper Chapman é racista e aproveitou do seu lugar privilegiado para reafirmar seu lugar de poder. Ela mascarou a própria ambição e avareza como preocupação genuína pelo bem estar de um local que passava por momentos difíceis, e ela sabia disso.

Associou-se com nazistas, fascistas e racistas, mesmo tendo plena consciência de que só o fazia para desfrutar do seu lugar de controle — deixando óbvio o seu egoísmo e preconceito. Sua ingenuidade não pode ser comprada, nem pode ser real, e mesmo que o fosse jamais seria justificável, porque a loira assistiu de perto os bois irem com as cordas e permaneceu estagnada enquanto assistia suas colegas latinas serem ainda mais segregadas dentro de Litchfield. Neutralidade, como dizem, nunca ajuda o oprimido. Seu “arrependimento” só acontece quando o grupo oprimido reage, e, em uma pesada cena, grava com fogo quente uma suástica em seu braço. Mas, como esplendorosamente apontado por este texto, a violência que Piper sofreu “é pontual e remediada, diferente do rato, da surra e da morte que recaem sobre personagens não-brancas“.

É com um misto de vergonha alheia e medo (considerando que em pleno 2016 ainda escutamos e lemos isso) que assistimos a um bando de mulheres brancas gritando alto sobre como white lives matter [vidas brancas importam], ignorando que aqui fora há milhares sofrendo com isso, e levando a falácia de racismo reverso para a TV. Falácia porque não é real, não existe, e é ridículo — tão ridículo quanto foi a cena que até foi finalizada com músicas da Alemanha nazista. Nessa ocasião Piper percebeu que fez merda — pobre Piper, até parece que não viu isso chegando.

Por essa e outras razões, a temporada caminhou e utilizou um tom particularmente complicado de assistir: não apenas lidamos com violência e descaso; mas vemos como a violência racial, a desumanização das personagens não-brancas, é real, e acontece, e fica difícil de engolir.

Os novos episódios de Orange is the New Black também continuam a lidar com as consequências do estupro sofrido por Tiffany “Pennsatucky” Doggett (Taryn Manning) na temporada anterior pelo guarda da prisão Charlie Coates (James McMenamin). Ficamos conhecendo o passado de Doggett na terceira temporada e sua história não poderia ser mais triste: por meio de flashbacks descobrimos que, durante toda a sua vida, a detenta sofreu estupros nas mãos de pessoas que ela conhecia e, talvez, até mesmo confiasse. Toda essa trama parece seguir a personagem quando um guarda que deveria zelar pelo bem estar dela, a violenta.

Antes do estupro, Doggett e Coates dividiram alguma intimidade, mas os avanços do guarda e seu constante comportamento inapropriado mostraram que no relacionamento eles não eram iguais. Enquanto guarda e com um cargo de poder com relação à Dogget, fica claro apontar como Coates utilizou de seu privilégio para cercá-la e fazê-la crer que ele era um cara legal. Na temporada anterior, enquanto a detenta era a responsável por dirigir a van da prisão, Coates por vezes permitia que Doggett recebesse alguns mimos como donuts ou um passeio para ver patinhos em um lago. É a epítome de um comportamento que parece gentil e carinhoso, mas que se mostra tóxico quando notamos que todo o poder no relacionamento está nas mãos dele.

Para Coates, as gentilezas que dispensava à Doggett eram como uma moeda de troca: se estou sendo legal com ela, ela precisa retribuir com sexo. Quando Coates a ataca no banco traseiro da van, em um primeiro momento Doggett tenta resistir, mas seu semblante parece mostrar, na sequência, que não há motivo pelo qual lutar visto que não há escapatória. Dá a entender que, de maneira complacente e perturbadora, Doggett aceita que esse é o seu destino e não há muito o que possa fazer para evitá-lo. Parece que, de alguma maneira, ela acredita que é cúmplice e responsável por aquilo que está acontecendo.

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Tiffany “Pennsatucky” Doggett (Taryn Manning) e Big Boo (Lea DeLaria)

Somente após Carrie “Big Boo” Black (Lea DeLaria) ficar a par do que houve é que Doggett começa a entender que o que aconteceu a ela foi um estupro e que, enquanto vítima, não tem culpa de absolutamente nada. Os episódios da quarta temporada continuam a mostrar como a violência afetou Doggett: por mais que ela tenha aceitado que foi realmente estuprada, as consequências da violação que sofreu mostram-se complicadas de assimilar e lidar. Enquanto Doggett tenta impedir que outras detentas sejam violentadas por Coates, ela também confronta seu agressor a respeito do abuso que sofreu. Coates não parece entender o fato de que, mesmo se dizendo apaixonado por Doggett, sexo não consentido é estupro. Na cabeça do guarda — e de milhares de homens por aí — amar uma mulher é o suficiente para forçá-la a fazer sexo sem que haja consequências ou crime envolvido.

Toda essa trama demonstra muito bem como os sentimentos de Doggett entram em conflito quando Coates pede desculpas pelo o que fez. O aparente arrependimento do guarda deixa Doggett ainda mais confusa quando conta para Boo que está pensando em perdoá-lo por seu “erro” visto que ele foi gentil ao se desculpar. Doggett está pronta para perdoá-lo se isso significar, de alguma maneira torta, que ela também não terá que pensar mais sobre o que aconteceu. Nas palavras da própria Doggett, “E se ele é só uma pessoa normal que cometeu um erro? Nós sabemos que eu também não sou inocente”. 

Essa frase, proferida pela vítima, é de fazer o coração se partir em milhares de pedaços. Enquanto criminosa Doggett já está pagando por seu delito na penitenciária, mas enquanto vítima ela acredita que tem culpa pelo o que aconteceu por, nas palavras da própria, também ter flertado com Coates e lhe dado abertura. A cultura do estupro está tão enraizada em nossa sociedade que a própria vítima tem dificuldade em se ver dessa maneira.

Lolly Whitehill (Lori Petty)
Lolly Whitehill (Lori Petty)

Orange is the New Black continua a impactar ao abordar mais um tema espinhoso entre tantos outros: a doença metal e a falta de tato com que o estado lida com isso. É por meio da trama de Lolly Whitehill (Lori Petty) que vemos como os sistemas prisionais não possuem o menor preparo para tratar de detentos que apresentam tais doenças. É na quarta temporada que passamos a conhecer um pouco melhor a história pregressa de Lolly e como ela foi parar em Litchfield.

flashback de Lolly, além de muito sensível, nos põe pra pensar sobre como pessoas com distúrbios mentais são postas periféricas à sociedade. É muito mais fácil trancar e prender do que lidar com o maior fato de todos: que essas pessoas estão doentes. E quando, e somente quando, elas se tornam um perigo a sociedade, cometendo crimes que pessoas “sãs” (?) cometem o tempo todo, elas são jogadas em meios cabulosos, que beiram a tortura (como o caso real no Instituto Forense Psiquiátrico do Rio Grande do Sul).

Assistimos à uma falta de sensibilidade tremenda acontecer com Whitehill, e sua história está longe de ser somente ficção. Talvez falta esperança, vontade ou profissionais capazes, mas é impossível negar que essas pessoas em especial não recebem a atenção devida e são constantemente negligenciadas pelo estado.

No entanto, foi pra cima de da personagem trans Sophia Burset (Laverne Cox) que um dos mais pesados plots recaiu. No final da temporada anterior Sophia é enviada para solitária sob o argumento de que estaria protegida lá. Sophia sofria transfobia, seu salão estava sendo boicotado, e em um momento de fúria brigou com a responsável por tudo isso — Aleida, já anteriormente mencionada. Contudo, independente da clara mentira de que a solitária serviria para protege-la, Burset estava sendo tratada da mesma (péssima) maneira como as detentas que lá estavam.

Assistimos aqui um corpo policial e administrativo negligente, que preferiu esconder e abafar um problema (de preconceito) do que lidar com ele. Em contrapartida, assistimos a uma Sophia como nunca antes vista.

A personagem interpretada com maestria por Laverne sempre foi alguém de bom coração, calma e amiga. Mas, aqui, só temos um lampejo dessa Sophia no final da temporada. Até ali tudo o que assistimos é uma Sophia amarga, raivosa — com razão —, que não pensa duas vezes antes de criar confusão ou machucar-se. Foi dolorido de assistir, mas foi, também, uma das atuações mais pesadas e marcantes interpretadas em Orange is the New Black.

Poussey Washington (Samira Wiley)
Poussey Washington (Samira Wiley)

Tivemos, também, uma das tramas mais inesperadas e de deixar o coração mais dolorido com o desfecho: a história de Poussey chegando ao fim. Poussey era uma boa pessoa e teria um futuro fora da prisão. Ela era inteligente, educada, falava três línguas diferentes e, após Judy King, decidiu que poderia ser chef de cozinha. Ela tinha um pai, amigos, uma namorada. Poussey era muito nova e tinha a vida inteira pela frente, mas foi morta em uma ação desastrosa dos guardas de Litchfield.

Ela morreu enquanto tentava ajudar sua amiga, Suzanne Warren (Uzo Aduba), mas ninguém a ouviu dizer que não conseguia respirar enquanto o guarda Baxter ‘Gerber’ Bayley (Alan Aisenberg) continuava a exercer pressão sobre seu corpo. Após sua morte, como se a tragédia já não fosse grande o bastante, seu corpo permaneceu estirado no chão do refeitório por horas sem que ninguém da administração fizesse algo a respeito. Muito pelo contrário, o pessoal da MCC ficou especulando como transformariam a morte dela um benefício para a empresa.

Vasculharam suas fichas da prisão, reviraram seu passado, tudo com o intuito de encontrar “podres” que a fizessem parecer a errada, a agressiva, a violenta. Mas Poussey não era nada disso. No momento em que Caputo finalmente se pronunciou em frente às câmeras, o que saiu, contra todas as evidências, foi um pedido de desculpas em nome do guarda que matou a detenta. “Pobre menino, ele não tem culpa do que aconteceu e terá que lidar com esse crime por toda a vida”.

Taystee (Danielle Brooks) e Poussey Washington (Samira Wiley)
Taystee (Danielle Brooks) e Poussey Washington (Samira Wiley)

E a família de Poussey, que terá que viver sem ela? E seus amigos, sua namorada? E toda a vida que ela tinha pela frente e poderia continuar tendo se a prisão tivesse uma administração que prezasse pela vida e bem estar de suas detentas e não o ganho de capital? Em uma série de ações totalmente equivocadas, Caputo perdeu totalmente o controle sobre seus guardas e, ao relegar a ordem da prisão a Desi Piscatella (Brad William Henke). O diretor praticamente lavou as mãos a respeito do que acontecia em Litchfield. Por mais que OITNB seja uma obra de ficção, não podemos evitar sentir nossos corações quebrando em mil pedacinhos com a morte de Poussey. O sistema penitenciário falhou com ela na ficção da mesma forma que falha diariamente com milhares de pessoa pelo mundo tudo aqui, na vida real.

Toda a trama que a envolveu é a respeito do racismo, da intolerância, do sistema cruel que não regenera ninguém e da justiça que é tão precária. É possível, inclusive, traçar paralelos entre a morte de Poussey e as diversas mortes de jovens negros nos Estados Unidos. O #BlackLivesMatter, por exemplo, está por todo o último episódio da temporada quando um protesto pacífico se transforma em um tumulto que termina com a morte de um inocente negro. No momento em que Caputo se pronuncia na televisão, ele sequer diz o nome de Poussey, aludindo a outro momento recente de intolerância nos Estados Unidos com o #SayHerName. Pode tudo ser ficção, mas é aquele ditado “a vida imita a arte” — só que ao contrário.

Os baixos da temporada

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É inegável, contudo, que a quarta temporada sofreu com a falta de fluidez e talvez um pouco de gás, ao menos até a metade dos episódios. Ficamos com a sensação de que há muito acontecendo, e acontecendo ao mesmo tempo, porém falhando em ter sentido ou conectar os pontos.

Algo esquisito paira sobre toda a quarta temporada de Orange is the New Black (racismo, talvez?), e indiscutivelmente incomoda. Ela é mais pesada que suas prévias temporadas, e não de uma boa maneira.

Certos plots não casaram, como a picuinha desnecessária entre Cindy Hayes (Adrienne C. Moore) e Alison Abdullah (Amanda Stephen), o plot do ronco x sono entre Red e uma nova detenta, ou, e talvez principalmente, o white straight trash [clichê branco e hétero] que foi assistir Joe Caputo e Linda Ferguson (Beth Dover).

Alguns flashbacks foram desnecessários, e a tentativa de humanizar personagens homens que são ruins ou cometeram algum tipo de erro não dá certo. Assistir a uma longa e bem contada história de Healy ou Bayley de pouco serviu, apenas reforçou essa necessidade tremenda em tentar justificar atos injustificáveis praticados por homens. Aqui, ninguém se importa com eles, e alguém deveria avisar aos escritores da série.

Há de se apontar, também, até que ponto a representatividade de Orange is The New Black cumpre seu papel. Nessa temporada, mais do que todas, o núcleo “negro”, que conta com Cindy, Taystee, Poussey, Watson (Vicky Jeudy) e Suzanne Warren foi — de novo, e ainda mais — utilizado como o alívio cômico da série, quando não, de novo, o fator violento ou de redenção, presente na season finale (mas que tal ler quem tem lugar de fala sobre? Indicamos esse texto, infelizmente somente em inglês). O núcleo das “latinas”, por exemplo, as caracteriza como raivosas, irracionais, que sentem tudo a flor da pele e adoram uma briga. São definições caricatas, que desumanizam as personagens, e perpetuam e ditam a que tipo de protagonismo elas estarão reservadas.

O saldo da temporada e da série no geral ainda é positivo, comparado com o limitado catálogo de opções de personagens femininas bem escritas e boas temáticas, mas ainda erra — e erra feio — ao estimular estereótipos, mascarado-os com comicidade — ou o que for que seja. Não sabemos o que nos resta esperar para a próxima temporada, afinal, com uma season finale eletrizante e rebelde, parece um martírio aguentar um ano para saber o que aconteceu em Litchfield. Mas é claro que estaremos aqui ano que vem pra comentar sobre novamente.

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Crítica escrita em parceria por Ana Vieira e Thay

2 comentários

  1. Todo mundo sempre elogia a série por mostrar o outro lado da sociedade/realidade que as outras séries ignoram. A Piper é uma pessoa desprezível, mas achei brilhante todos os acontecimentos ao redor dela porque eles mostram essa realidade que ninguém quer ver, como o racismo de pessoas “não-racistas”, e o fato das pessoas se importarem mais com os problemas de pessoas brancas e ignorarem problemas, as vezes muito mais graves, de pessoas de cor.

    Eu pude presenciar isso no começo do ano com a morte da Lexa, uma personagem lésbica e branca, onde toda a comunidade Lés ficou revoltada, fez protestos e criou projetos para evitar esse tipo de situação, mas quando uma personagem lésbica e gorda (TWD) e uma negra morreram (The Magicians, acho), a indignação da comunidade foi bem menor.

    Esses erros e situações da série ajudam a criar discussões sobre os assuntos. Tive vários amiguês que vieram conversar comigo sobre concordarem ou não com várias situações que ocorreram na série, principalmente o desconforto ao ver tudo se resolvendo pra Piper e isso sendo okay e lindo, enquanto o mundo estava desabando para outros personagens.

    Não era pra ter ficado tão grande assim =| só queria dizer que a parte sobre o privilégio branco pode ter sido uma merda mas foi um mal necessário para abrir os olhos de muita gente.

    1. Tayná, antes de mais nada, olha o tamanho do nosso texto! Não existe nada como um comentário bem elaborado, hahaha. Nós adoramos. <3

      No geral, concordo contigo sobre essa realidade que ninguém quer ver, mas também acho que eles exageraram na dose e erraram rude em alguns momentos. Essa temporada foi inegavelmente difícil de engolir e assistir, e mesmo que, infelizmente, tenha uma pitada de dose real, acho que eles tem cacife pra lidar melhor com algumas temáticas (?).

      Eu assisto The 100 e pude acompanhar o burburinho quando a Lexa morreu, mas realmente a indignação não foi emprestada à essas personagens (que eu nunca tinha ouvido falar, e isso que eu vivo falando e lendo sobre séries). É uma indignação bem seletiva, e seletiva em favor das personagens brancas e dentro do padrão. Bem complicado.

      Beijo!

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