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Crítica: Caça-Fantasmas (2016)

Verdade seja dita em prol de uma resenha honesta: nós não assistimos ao Caça-Fantasmas de 1984. E mesmo que admitir esse fato abertamente em um site cuja visão é feminista possivelmente seja um campo minado para críticas, não nos importamos. Isso não nos impediu de ir ao cinema para prestigiar o reboot do filme clássico, dirigido por Paul Feig e estrelado por Kristen Wiig, Melissa McCarthy, Kate McKinnon e Leslie Jones. E adiantamos: a experiência foi ótima.

Investir em remakes e reboots tem sido uma ótima estratégia dentro da indústria cinematográfica para lucrar em cima dos fãs que não conseguem se conter diante da nostalgia de reassistir nos dias atuais filmes que foram significativos no passado. Da saga de Stars Wars que agrada aos fãs de ficção científica aos live-action da Disney que alcança um público mais jovem, a aposta é tão certa que não pode nem ser descrita como armadilha — nós sabemos que estamos sendo fisgados, e mais: nós queremos ser fisgados. O anúncio do reboot de Caça-Fantasmas, a princípio, não foi uma exceção à regra. Causou muita comoção, mas — sim, havia de ter um grande “mas” nessa história — conforme detalhes da produção foram sendo anunciados, o público se dividiu. Enquanto mulheres comemoraram o fato de que o filme seria baseado na subversão de gêneros e alguns homens demonstravam um apoio conformista a essa tão necessitada mudança, outros levaram para o pessoal e se voltaram contra a franquia.

Apesar das tentativas dos haters de negativar a publicidade do filme em todos os cantos, aqueles que foram ao cinema puderam experimentar por si próprios o entusiasmo de se familiarizar ou reconhecer todos aqueles símbolos que há tanto tempo fazem parte da cultura pop, e ao final sentir um arrepio quando a música tema começa a tocar. É preciso estabelecer no início que Caça-Fantasmas não tem o intuito de ser um filme para ser levado a sério, portanto é em vão tentar criticá-lo em cima do “roteiro fraco” ou do “enredo bobinho”. O importante mesmo é que o filme hoje simboliza o reforço de representatividade das mulheres, que embora ainda seja falho, não deixa de ser o primeiro passo da revolução em Hollywood.

Sem grandes complexidades, o filme começa quando um rapaz é atacado por um fantasma na mansão onde trabalhava como guia. O proprietário, então, vai atrás de Erin Gilbert (Wiig), uma física tentando construir uma carreira sólida em sua área. Tudo pode ir por água abaixo, no entanto, quando ela descobre que um trabalho antigo seu foi divulgado na internet: trata-se do livro Fantasmas do Nosso Passado, que co-escreveu com sua amiga Abby Yates (McCarthy) quando ambas eram mais jovens e nutriam um entusiasmo por tudo relacionado a espectros. O trabalho era meramente teórico, e um dia Erin desistiu dele. Abby, no entanto, nunca desistiu de sua obsessão e por isso as duas acabaram se afastando.

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Erin enxerga apenas uma solução: apelar para que Abby, que recolocou o livro em circulação sem a autorização da amiga, desfaça o feito. O reencontro das duas coloca o filme em movimento: Erin e Abby, junto a Holtzmann (McKinnon), atual assistente da última, vão até a mansão onde o primeiro ataque fantasma do filme acontece e, após se ver na presença de um deles, Erin se entrega rapidamente ao seu antigo entusiasmo pelo paranormal. Tudo isso acontece diante de uma câmera e, bem ao gosto de 2016, o encontro das três mulheres com aquele ser azul vai parar no YouTube e logo viraliza. Esse momento talvez seja uma das maiores sacadas do roteiro — ao lerem os comentários recebidos no vídeo, elas de deparam com um muito significativo: “ain’t no bitches gonna hunt no ghosts”, algo na linha do “nenhuma vadia vai caçar fantasmas”. É uma antecipação à repercussão que escalar quatro mulheres num reboot de um filme querido por muitos, originalmente estrelado por um grupo de homens, sem dúvida alguma iria gerar. E, nesse momento, o filme diz: nós sabemos, e nós não ligamos.

Depois que o êxtase toma as três cientistas por terem presenciado a aparição de um espectro, elas decidem que vão prosseguir com seus estudos e decidem capturar um fantasma para isso, além de provar para todos que zombaram delas que seus interesses são verdadeiros e eles importam. Erin, Abby e Holtzmann, então, procuram um imóvel para servir como laboratório e escritório e passam a oferecer serviços de caça-fantasmas para a população, com a esperança de frequentes aparições dali em diante. Diante todas as críticas que receberam até então, essa passagem do filme é deliciosa de assistir, porque elas nunca estiveram tão empolgadas com seu objetivo e nunca se divertiram tanto na concretização.

Em sequência, surge outro ponto digno de nota: o papel masculino decorativo. A própria versão original de Caça-Fantasmas falha com suas mulheres — e críticas que procuram destacar a relevância dos papeis femininos abordados até agora no cinema têm sido constantemente levantadas. O reboot não deixou essa questão livre de representação, e Kevin, personagem interpretado por Chris Hemsworth, foi introduzido como o candidato a recepcionista bonito, porém ignorante, para servir como eye candy e mais um reforço cômico no filme. Ainda que essa inversão não seja tão ofensiva quanto costuma ser com as mulheres (em momento algum Kevin é posto em cena como objeto sexual, o máximo que acontece é ele ser alvo de um simples flerte por Erin), não deixa de soar como uma doce vingança. As quatro mulheres acabam nutrindo afeto por ele, no entanto, e quando Kevin está em perigo, elas decidem salvá-lo e mantê-lo consigo, mesmo diante da incapacidade do rapaz de atender um telefone.

De forma independente, a quarta parte do grupo, Patty (Jones), é introduzida na história. Trabalhando no metrô, ela é a primeira a topar com o vilão, Rowan (Neil Casey), numa conversa meio sem noção, meio ridícula, que dá o tom deste último personagem. Patty encontra outro fantasma nos trilhos, e é assim que entra em contato com o restante do grupo. Rowan quer criar o caos pela cidade, mas, principalmente, quer se sentir poderoso. Erin, Abby, Holtzmann e Patty passeiam pela cidade a bordo de um rabecão para limpar sua bagunça. Daria para resumi-lo, em linhas gerais, em duas frases — e isso não é um problema. O filme nos ganha principalmente por seu bom humor (três das quatro protagonistas trabalharam, entre outras coisas, no Saturday Night Live), pelos belos visuais dos fantasmas (a cena climática é muito interessante) e, acima de tudo, por ter ousado transformá-lo numa história sobre um grupo de mulheres.

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Muitas críticas informais feitas em caixas de comentários internet afora afirmam que o problema não está em escalar quatro mulheres para estrelar um filme como Caça-Fantasmas, mas em escalar quatro mulheres apenas por causa do atual momento em que as discussões sobre justiça social e feminismo estão “em alta” (inclusive na mídia tradicional). Esse argumento não faz sentido algum porque, se não existe absolutamente nada no roteiro ou no conceito do filme que exija que ele seja protagonizado por mulheres, também não tem nada que exija que ele (nem grande parte dos 78% filmes de maior bilheteria de 2015) seja protagonizado por homens. Para muita gente, o problema não é o elenco, é o reboot em si. A crítica não deixa de ser válida, já que a quantidade de antigas franquias sendo revividas às vezes soa como um esgotamento criativo de Hollywood, mas a quantidade de ódio que Caça-Fantasmas recebeu on-line é incomparável à situação de outras produções similares. E a verdade é que reboots sempre existiram.

Nesse contexto, a única análise honesta possível é a do novo Caça-Fantasmas pelo que ele é (e também pelo que representa). O que ele é: um filme divertido e despretensioso com piadas boas e piadas que não funcionam tão bem, com personagens que poderiam ser melhor desenvolvidas, mas que são bem delineadas por um competente time de boas comediantes, e um filme altamente focado em enredo, ação e efeitos especiais. O que ele representa? Acho que a imagem das duas garotinhas vestidas a caráter com os olhos brilhando diante de Kristen Wiig na première do filme dizem tudo.

Talvez, por ser uma produção que levantou sem medo a bandeira da representação, cabe, então, questionar: por que a única personagem negra da história também é a única que não é cientista? Claro que não existe nada de errado em não ser cientista e o trabalho de cada funcionário do metrô (ou seja qual for) é necessário e relevante para o bom funcionamento da cidade, mas não podemos negar que existe uma hierarquia entre as diversas funções demandadas pela sociedade e que uma professora universitária ou uma engenheira são muito mais valorizadas do que alguém que trabalha atrás de um guichê. Com Caça-Fantasmas, estamos mandando uma mensagem para milhares de garotinhas lá fora: elas também podem salvar o dia. Resta saber se estamos mandando-a da mesma maneira para todas (especialmente num contexto em que apenas 19% das personagens femininas nos filmes de maior bilheteria do ano passado não eram brancas). Ao mesmo tempo, é inegável que a participação de Patty é fundamental naquele grupo, especialmente porque ela conhece a cidade como ninguém, fato para o qual o filme dá uma ênfase considerável.

Considerando esse questionamento, precisamos admitir que Caça-Fantasmas não se superou tanto em representatividade quanto poderia. É certo que o espaço entre as profissões de Erin, Abby e Holtzmann e Patty aponta para uma falha que precisa ser corrigida para inspirar totalmente a representação feminina de forma interseccional. É um alívio, no entanto, a comicidade do filme não ter sido centralizada na Patty — Holtzmann, assumindo a figura de cientista maluca, Dra. Frankestein (como é referida no próprio filme), assume melhor esse papel.

Próximo ao desfecho do filme, outro tema que deixa claro o quanto aquela nova formação é especial é a amizade entre as caça-fantasmas. No início, o foco se voltava para os ressentimentos entre Erin e Abby, já que ambas se tornaram amigas na infância e se apoiaram quando ninguém mais o fazia, e a bifurcação no caminho das duas fora algo marcante e doloroso. O reencontro foi a oportunidade que elas tiveram para relembrarem o que as uniu em primeiro lugar e reacender aquela cumplicidade que tinham antes. Mas, não é tudo: a dupla havia virado um quarteto, oficializado por um brinde emocionado feito por Holtzmann. Caça-Fantasmas endossa também a genuinidade das amizades femininas, o fato de elas serem tão possíveis quanto verdadeiras, desconstruindo a rivalidade ilógica mostrada aos montes no cinema até então. O que, aliás, é outro ponto positivo do filme: o desenvolvimento da trama é completamente focado nas relações estabelecidas entre o quarteto e, para além disso, entre cada uma delas e o próprio sucesso profissional (na indústria de caçar fantasmas?).

O novo Caça-Fantasmas pode não ser um filme sem falhas (por exemplo: por que o artigo “as” não foi incluído no título brasileiro é algo que continuamos nos perguntando), mas é bastante divertido e, acima de tudo, um passo adiante na representação feminina no cinema, com aprovação em todos os testes conhecidos. Por isso, apesar das tentativas mais descabidas de tentar fazer com que o filme tenha uma má reputação, é definitivo: mulheres vão caçar fantasmas, sim. They ain’t afraid of no ghosts, e principalmente não têm medo do machismo.

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Crítica escrita em parceria por Fernanda e Yuu.

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