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A representação feminina em Supernatural

Supernatural entrou para a história em 2015 como seriado sci-fi com o maior número de episódios exibidos, transformando-a na série mais longeva do gênero. Seu episódio de estreia foi ao ar em 2005, no canal estadunidense CW, e desde então já foram exibidas onze temporadas (com mais duas prometidas pelo próprio presidente do canal) e mais de 200 episódios. Supernatural é, muito provavelmente, uma das séries mais rentáveis da CW e a que conta com os fãs mais apaixonados e fervorosos — boa parte desses fãs, vale apontar, são mulheres. Então fica a questão: como uma série que trata suas personagens femininas tão mal pode ter tantas mulheres em sua base de fãs?

Atenção: este texto contém spoilers

Quando nos questionamos, estamos fazendo isso também como fãs, visto que Supernatural é uma das nossas séries favoritas. É muito fácil se apaixonar pelo enredo intricado e pela bela relação dos irmãos Dean e Sam Winchester (interpretados por Jensen Ackles e Jared Padalecki, respectivamente), construída de forma tão honesta e delicada ao longo dos anos. No entanto, é impossível para nós, como mulheres, ignorar que a representação feminina na série, com personagens que poderiam ser melhor aproveitadas pela trama, mas acabam sendo trabalhadas de maneira superficial e pouco convincente.

Não é surpresa notar que a história, por sinal, se inicie com a morte de uma delas: Mary Winchester (Samantha Smith) durante a infância de Sam e Dean, marca para sempre o pai dos meninos, John Winchester (Jeffrey Dean Morgan) que parte em busca de vingança contra o demônio que assassinou sua esposa e torna a caçada seu objetivo de vida — mesmo que isso signifique relegar o cuidado dos filhos. A trama se utiliza desse cenário como ponto de partida para explorar a relação entre pai e filhos, entre os dois irmãos, e a infância traumática dos garotos, o que adiciona mais camadas e, consequentemente, maior complexidade, aos personagens. Mas tudo isso só acontece porque Mary é descartada no primeiro episódio, servindo de motivação para os atos de John que colocam a trama em movimento.

Anos mais tarde (mas ainda no episódio piloto), outra personagem é introduzida para ter o mesmo desfecho: morrer e servir de motivação para que os protagonistas se unam por um “bem maior”. Jessica (Adrianne Palicki), namorada de Sam na faculdade, é tudo que o garoto pode sonhar para si: uma menina inteligente e bonita, que apoia seus sonhos e lhe dá o carinho e estabilidade que ele nunca pode encontrar na própria família. Por isso, quando Jessica é assassinada pelo mesmo demônio que assassinara sua mãe, Sam não só volta a trabalhar ao lado do irmão, como também cria uma conexão maior com o pai, a única pessoa capaz de entender o que ele está sentindo naquele momento e com quem ele até então tivera uma relação conturbada.

Existem, naturalmente, personagens que conseguem se manter na trama por mais de um episódio, mas mesmo o maior tempo de tela não faz com que suas histórias individuais sejam melhor exploradas e é comum que seus arcos terminem de forma cruel e sem sentido. É o que acontece com Bela Talbot (Lauren Cohan) na terceira temporada da série: caçadora de artefatos mágicos, ela cruza o caminho de Sam e Dean algumas vezes e é uma personagem ambivalente, embora esteja longe de ser uma vilã. Se é verdade que muitos dos planos dos irmãos são arruinados por Bela, é também verdade que ela está apenas pensando primeiro em si mesma — o que não é nenhum crime. Ainda assim, ela encontra um fim trágico, em consequência de um pacto feito quando ainda era muito jovem com um demônio da encruzilhada.

Por mais que o destino de qualquer pessoa que faça um pacto seja invariavelmente o mesmo, as motivações de Bela, que razão ela teria para chegar ao extremo de realizar um pacto, nunca são expostas aos irmãos e, mesmo dentro da série, são tratadas só muito tardiamente na temporada. Em “Time Is On My Side”, Supernatural mostra que Bela sofreu com um pai abusivo e que o pacto, muito mais do que uma forma de vingança, foi a sua irônica saída para a sobrevivência. Os abusos não a impedem de se tornar uma mulher determinada, corajosa, que não pensava duas vezes em enfrentar um mundo que nunca havia sido gentil com ela; que Bela termine sua jornada morta e enviada para o Inferno deixa um gosto, no mínimo, amargo — e o que poderia ser uma história de superação e redenção, muito mais densa do que realmente foi, se torna apenas uma participação vazia, esquecida com o tempo, cujo único objetivo é ajudar os irmãos a enfrentar a ameaça da temporada.

Em um papel não muito diferente, há Anna Milton (Julie McNiven), uma anja que removeu a própria graça para viver seus dias como humana. Num universo no qual anjos são criaturas frias, que não questionam as ordens que recebem e desconhecem emoções, Anna se sentia cada vez mais insatisfeita. Sua fé já não era mais suficiente para segurar seus questionamentos sobre seu papel no mundo e o Deus a que servia — e é observando os seres humanos que ela encontra uma saída para sua angústia. Anna aprende a amar aquela que seria a criação mais estimada do seu Pai e, ao contrário de outros anjos, passa a enxergar os humanos como seres superiores e extremamente complexos. Ela, que sempre foi um ser compassivo e sincera, valoriza as emoções humanas acima de tudo, em especial a lealdade, o amor e o perdão, e são esses conceitos que a fazem tomar a decisão de abrir mão de seus privilégios e da própria natureza e abraçar um processo doloroso e traumático para abdicar de seus poderes e se tornar humana.

Mas mesmo como humana, e tendo esquecido seu passado no Céu, Anna nunca teve uma vida fácil. Sua infância é marcada pelo medo constante de ser castigada por desobediência e, quando adulta, ela a passa ser atormentada pela voz de outros anjos. São essas vozes que a colocam no caminho dos irmãos Winchester — não sem antes ter sido tratada como louca e passar um tempo internada em uma clínica psiquiátrica (alguns fãs se referem à personagem como Crazy Anna, ou Anna Louca, um apelido, desnecessário dizer, bastante estigmatizado). Anna é perseguida por demônios que veem em sua habilidade uma forma de conseguir informações importantes; e por anjos, que têm ordens expressas para exterminá-la.

Sua vida vira de cabeça pra baixo e ela perde tudo o que construiu, mas nada a impede de continuar a ajudar Sam e Dean como pode: porque é a coisa certa a se fazer, porque é o que tem que ser feito, porque há algo maior acontecendo. Anna passa por cima dos seus próprios desejos e necessidades, o que por fim a leva ao sacrifício em prol de um suposto “bem maior”.

Sua história dá uma guinada quando ela passa a ser tratada como vilã, provando que qualquer pessoa que se coloque no caminho dos Winchester está contra eles, mesmo que seu objetivo seja basicamente o mesmo. Ao interferir nos planos dos irmãos, Anna passa a ser vista como um empecilho dentro do contexto da série, que a sacrifica para que o caminho dos dois fique livre outra vez. Sabe-se que muito do que aconteceu é uma resposta a pouca aceitação do público, que nunca a teve em alta conta (seu envolvimento com Dean é particularmente questionável), mas não deixa de ser um ponto de debate que personagens homens continuem na trama mesmo quando já não têm nada a acrescentar ao enredo ou encontram-se desgastados aos olhos do público, enquanto mulher não.

Duas personagens importantes para a trama e para a jornada dos Winchester são Ellen (Samantha Ferris) e Jo Harvelle (Alona Tal), mãe e filha, que aparecem pela primeira vez na segunda temporada da série. Viúva de um caçador e uma ex-caçadora ela mesma, Ellen sempre receou que a filha seguisse seus passos — não sem alguma razão. Diferente de outras personagens, no entanto, Ellen e Jo são uma exceção à regra, já que ambas recebem maiores nuances e têm participações mais longas do que outras personagens femininas de Supernatural. É verdade que as duas morrem de maneira a favorecer Sam e Dean em sua cruzada contra o Apocalipse, mas todo o contexto das mortes possui um significado mais amplo, especialmente se considerarmos que a quinta temporada fora planejada para ser o fim definitivo da série.

Em “Abandon All Hope”, quando o plano de matar Lúcifer (Mark Pellegrino) dá errado, Jo é mortalmente ferida pelos hellhounds e, encurralada com a mãe em uma loja de conveniências, as duas decidem se sacrificar para permitir que Sam e Dean possam derrotar o Anjo Caído. A carga dramática da cena final entre mãe é filha é intensa, e toda a situação, muito dolorida. Mas Ellen e Jo ao menos tiveram o controle da situação e puderam escolher como deixariam o mundo: como duas caçadoras valorosas e corajosas. Como mãe e filha que se apoiaram e amaram a vida toda.

Com menos duas personagens femininas em um elenco já conhecido pela presença pouco expressiva delas, a quinta temporada insere à trama a xerife Jody Mills (Kim Rhodes), uma mulher que se vê envolvida em uma investigação dos irmãos e, eventualmente, se torna uma personagem recorrente na série. Jody aparece pela primeira vez no episódio “Dead Men Don’t Wear Plaid” e, em um mesmo episódio, perde o marido e o filho — o que não a impede de continuar lutando contra os zumbis que invadem a cidade, terminando, até mesmo, por ajudar Sam a salvar Dean e Bobby (Jim Beaver) no final.

É evidente desde o início o quanto Jody é inteligente e corajosa, tornando-a uma das personagens mais fortes de Supernatural. Ela retorna nas temporadas seguintes lutando contra leviatãs e até mesmo indo em um encontro/emboscada com Crowley (Mark Sheppard) no episódio “Sacrifice”, quando é utilizada pelo demônio como barganha para que os irmãos parem de tentar fechar os Portões do Inferno. Não é a primeira vez — e certamente não será a última — que a vida de uma mulher é colocada em risco para que os irmãos tomem uma atitude. Mas Jody tem a oportunidade de ir além e ser mais do que mulheres como Jessica e Mary.

Jody surge novamente por duas vezes na nona temporada, sendo o emblemático “Alex Annie Alexis Ann” um dos episódios mais importantes em sua jornada até o momento. Quando vampiros atacam, Jody, sozinha, decapita um deles e permanece no encalço dos demais junto com os Winchester. O episódio, no entanto, também marca o início do seu vínculo com Alex Jones (Katherine Ramdeen) que, posteriormente, será adotada por Jody e mudará de nome, chamando-se Annie. Em uma série na qual famílias são desfeitas e personagens femininas não costumam perdurar, é reconfortante que Jody e Annie, duas mulheres com um passado de morte e perdas, consigam se encontrar e iniciar um relacionamento de mãe e filha. Em tempo, Jody também abrirá as portas para Claire Novak (Kathryn Newton) que, por sugestão de Sam e Dean, passa a viver com elas. É uma nova configuração familiar, uma mulher e duas adolescentes com passados trágicos que juntas acabam encontrando uma maneira de recomeçar.

A também xerife Donna Hanscum (Briana Buckmaster) é outra personagem digna de nota, embora apareça com menos frequência do que sua colega de profissão. Uma mulher divertida e muito dedicada ao trabalho, Donna é também um tanto insegura, em particular sobre a própria aparência, em grande parte gerada pela violência do ex-marido, um policial babaca que colocou a culpa do fim do relacionamento no sobrepeso de Donna. É essa mulher machucada, sem auto-estima e que tenta a todo custo agradar que Supernatural apresenta em “The Purge”. No episódio, movida por suas inseguranças a respeito do próprio corpo, Donna se submete a um tratamento milagroso e misterioso que, mais tarde, descobrimos ser conduzidos por pishtacos — criaturas mitológicas peruanas que se alimentam de gordura.

Seu arco dramático, no entanto, se desenvolve de maneira muito positiva. Com a ajuda de Jody, Donna se torna uma mulher segura de si, que acredita no próprio potencial, que não condiciona seu valor aos números da balança nem busca incessantemente um corpo dito perfeito, e coloca no lugar qualquer homem que ouse tentar mexer com ela (inclusive o ex-marido), mas sem abrir mão da personalidade carinhosa e empática — duas características muito particulares da personagem.

As duas mulheres constroem uma amizade promissora, ainda que sejam pessoas muito diferentes, e conseguem deixar no ar a expectativa por mais. Um movimento na internet, nascido no Tumblr, inclusive, é dedicado a pedir um spin-off da série centrado em Jody, Donna, Alex e Claire. Batizado carinhosamente de Wayward Daughters — uma referência à música “Carry On Wayward Son”, do Kansas, que faz parte da trilha sonora da série e é tida como hino pelos fãs —, a ideia é que o derivado siga as quatro personagens lidando com forças sobrenaturais, assim como Sam e Dean fazem há onze anos. O diferencial evidente do spin-off seria, obviamente, o elenco principal, totalmente feminino. Em uma série famosa pelo tratamento nada lisonjeiro dispensado às personagens femininas, um spin-off protagonizado por quatro mulheres talvez seja tudo que precisamos e não sabíamos até agora.

Outro aspecto muito abordado por Supernatural em suas personagens femininas é a vilania. Por mais emblemáticas que sejam (muitas delas, inclusive, contradizendo o status quo), porém, essas personagens dificilmente conseguem ser aprofundadas pelo roteiro. Meg (interpretada na primeira temporada por Nicki Aycox e por Rachel Miner a partir da quinta) é um demônio menor que cruza o caminho dos Winchester muito cedo na trama. Seguidora fiel de Lúcifer, Meg foi treinada por Azazel (Fredric Lehne) como mestre de tortura e faz o possível para libertar Lúcifer de sua jaula.

Em suas primeiras aparições, Meg bate de frente com Sam e Dean e atrapalha o percurso dos irmãos muitas e muitas vezes. Mas após anos no encalço dos irmãos, em uma reviravolta interessante, Meg se torna uma inesperada aliada — e, como outras mulheres da série, é morta de maneira a assegurar que os irmãos possam seguir em frente.

Já durante a terceira temporada, conhecemos Lilith (interpretada por várias atrizes ao longo de sua participação), um demônio de olhos brancos extremamente poderoso que foi também o primeiro a ser criado por Lúcifer. Sua história se baseia na deusa Lilith, adorada na Mesopotâmia e na antiga Babilônia, mas, ao mesmo tempo identificada como demônio, um espírito maligno portados de doenças e da morte, causador da luxúria e devorador de crianças e com uma breve relação com o vampirismo. Na crença tradicional judaica e islâmica, Lilith também aparece como a primeira mulher de Adão e é também tida como a serpente que levou Eva a comer o fruto proibido.

Com uma mitologia tão rica, era de se esperar que Lilith não fosse uma personagem qualquer — e ela, de fato, não foi. Possuindo especialmente crianças (o que a torna ainda mais assustadora), Lilith aterrorizou a vida dos Winchester e trabalhou incessantemente para libertar Lúcifer da jaula — ao menos até descobrir que seu destino estava selado desde o início e que, para que ele pudesse ser libertado, ela precisaria morrer, o que realmente acontece. Embora tenha tentado firmar um acordo com Sam e parar de quebrar os selos que libertariam Lúcifer, ela acaba sendo morta em “Lucifer Rising”, mostrando que havia sido apenas uma peça importante dentro de um jogo mais amplo, que precisava ser morta para que o Apocalipse pudesse acontecer e a trama continuasse a se desenrolar.

Mais ou menos à mesma época também conhecemos Ruby (interpretada principalmente por Katie Cassidy e Genevieve Cortese), o demônio de uma bruxa da Idade Média que ajuda Sam a lutar contra alguns dos sete pecados capitais em “The Magnificent Seven” e, posteriormente, se torna uma personagem recorrente na luta dos irmãos contra os demônios. Suas motivações não são claras no início, mas seus métodos pouco ortodoxos e sua postura diante de seus iguais deixam no ar a certeza de que há algo errado. É após a morte de Dean que ela ganha mais espaço, no entanto, conquistando a confiança de Sam e iniciando o treinamento para fortalecer seus poderes psíquicos com uma técnica à base de sangue de demônio.

Quando Dean retorna, os dois irmãos têm uma briga e seguem caminhos separados, já que Sam não acredita que Ruby possa ter más intenções ou estar escondendo alguma coisa. É quando a série revela que o demônio do olho branco é o último selo para a libertação de Lúcifer que tudo passa a fazer sentido, momento em que também descobrimos que Sam foi manipulado e que Ruby, afinal, só desejava ver Lúcifer fora de sua jaula. Ainda que seja uma personagem icônica da série, frequentemente lembrada pelos fãs, no fim das contas Ruby também só foi uma peça para levar a história para aquele que talvez tenha sido seu ponto mais alto, e que foi morta tão logo alcançou seu objetivo.

Levaria algum tempo para que Supernatural alcançasse o mesmo nível narrativo proposto em seus cinco primeiros anos, o que a sétima temporada comprova muito bem. À parte o enredo principal, no entanto, os episódios focados em outros seres sobrenaturais não deixaram a desejar. “The Slice Girls”, décimo terceiro episódio da temporada, é centrado nas Amazonas, guerreiras da mitologia grega, e é um episódio não só rico em mitologia, mas um dos poucos com uma representatividade adequada e essencial de mulheres na série.

Nele, os Winchester estão investigando o assassinato de homens na faixa dos trinta anos que têm suas mãos e pés mutilados e trazem um misterioso símbolo gravado no peito. Ao que eles iniciam o caso, Sam decide fazer pesquisar enquanto Dean vai investigar os cidadãos num bar local. Ele, então, conhece Lydia (Sara Canning), uma mulher atraente com quem ele conversa por algum tempo, só para terminar a noite na cama com ela. Alguns dias depois, ele retorna e nota um comportamento estranho por parte dela.

Eventualmente, descobre-se que Lydia usou Dean para conceber uma criança e já estava prestes a dar à luz. Ela faz parte de um grupo de Amazonas que, no contexto da série, precisam se reproduzir a cada dois anos para dar continuidade à linhagem, mas acabam se vingando de homens que as conceberam por terem sido adúlteros. A importância delas na série, no entanto, não está ligada à vingança ao sexo masculino (o que seria considerado misandria, conceito muito diferente do que almeja o movimento feminista), mas a representação de mulheres como seres independentes, lutadoras, unidas e com habilidades especiais. Elas são, inclusive, capazes de gerar uma mudança drástica no comportamento de Dean que, até então, era extremamente mulherengo. Ter descoberto uma criatura mítica como filha após o que ele acreditava ter sido uma simples one night stand fez com que ele tivesse que lidar com o dilema de matá-la ou não, colocando em xeque seu trabalho e aquilo que acreditava ser certo.

A mudança proposta pelo episódio não incentiva uma mudança real na produção da série, que continua a cometer as mesmas falhas em episódios subsequentes. Dean é um personagem famoso por ter relações de uma única noite com diversas mulheres e é nesse contexto, também, que aparece Lisa Braeden (Cindy Sampson). Muito embora Lisa considere Dean “a melhor noite de sexo da sua vida”, e que o relacionamento entre eles tenha sido o de dois adultos que sabiam muito bem o que queriam, sua participação não vai muito além de ser um nome entre os muitos casos do protagonista, alguém a quem ele pode voltar de tempos em tempos para pensar sobre o tipo de vida que poderia ter tido se não tivesse se tornado um caçador.

Em “The Kids Are Alright”, Dean também é confrontado pela perspectiva da paternidade ao conhecer o filho de Lisa, com quem estabelece uma conexão imediata. A semelhança entre os dois — como o gosto por música e o jeito de se vestir —, além da idade do garoto, levam Dean a pensar que ele pode ser seu filho, mas a dúvida acaba quando Lisa esclarece que Ben (Nicholas Elia) é filho de outro homem. É apenas mais tarde, durante a sexta temporada, que ela assume um papel mais relevante, mas no fundo, Lisa continua a ser apenas um ponto de apoio na trajetória do Winchester mais velho.

Outro exemplo no que se refere a potencial desperdiçado é Abaddon (Alaina Huffman). Um dos primeiros demônios criados por Lúcifer e escolhida para ser um dos Cavaleiros do Apocalipse, Abaddon possui um grande potencial e uma mitologia rica como pano de fundo, mas pouco é realmente desenvolvido pela série. Grande vilã da nona temporada, seu desfecho também não é condizente com sua força e poder. Para alguém que, até então, já havia tomado o controle do Inferno e sobrepujado Crowley com relativa facilidade, o fim da sua trajetória parece uma alternativa simplista.

Não dizemos, com isso, que vilãs devem permanecer vivas apenas por serem mulheres, mas é evidente que existem dois pesos e duas medidas. Enquanto o próprio Crowley é reinventado e reinserido na trama temporada após temporada (assim como o anjo Castiel de Misha Collins), Abaddon, que poderia ser uma inovação em um enredo saturado, foi descartada com facilidade.

Na décima temporada, mais uma vilã de personalidade marcante é introduzida na série. Rowena (Ruth Connell) é uma bruxa de origem escocesa, mãe de ninguém menos do que o Rei do Inferno, Crowley (nascido Fergus MacLeod). Seu dom para a bruxaria é considerado natural, ou seja, seus poderes nasceram com ela e não foram adquiridos por meio de um pacto com um demônio. Sabe-se que Rowena teve uma juventude miserável até descobrir e dominar seus poderes, e sua personalidade egoísta, fria e cruel, em grande parte, foi desenvolvida pelas dificuldades do seu passado.

Rowena é uma bruxa ambiciosa e de grande potencial, além de ex-membro do Grand Coven — o maior grupo organizado de bruxas na série, do qual ela foi expulsa pela má prática de magia, sobretudo considerado o nível do seu poder. Sem temer machucar ou matar qualquer pessoa que entre em seu caminho, ela surge no caminho dos Winchester durante uma de suas tentativas de maior ascensão, e é tida desde o princípio como inimiga, apesar de se aliar aos irmãos temporariamente em troca de algo que a beneficie, como acontece durante a décima temporada. Durante esse período, Dean está preso à marca de Caim e acredita estar sucumbindo ao poder que o tornará uma das criaturas que repudia. Em uma incessável busca para salvar o irmão, Sam descobre uma maneira de se livrar da marca que envolve o uso de magia: a solução está contida no The Book of the Damned, cuja escrita encriptada requer o Codex das bruxas para ser decifrado. Rowena e Charlie (Felicia Day) se tornam peças importantes no jogo nesse momento para que, mais uma vez, os Winchester sejam salvos: Rowena, como a bruxa que executará a magia, e Charlie como o cérebro que desenvolverá um algoritmo que permita decifrar o Codex e o feitiço do livro.

Enquanto a participação de Charlie se encerra após o episódio, Rowena permanece em cena, visando o próprio objetivo — aumentar seu poder e presidir o Grand Coven — enquanto se alia a outras partes quando lhe convém. O fato de ter sobrevivido por séculos se dá justamente pela ambição: ter abdicado do amor por ser uma fraqueza é o que a mantém viva e, apesar de ter sido provado que ela é capaz de amar, o sentimento não é suficiente para que desista de sacrificá-lo em prol do poder. Com trejeitos ousados, Rowena é uma bruxa impiedosa e, mesmo que essa seja uma característica negativa, dentro do contexto da série, ela é essencial para que a bruxa continue a ser uma sobrevivente.

Com a retirada da marca de Caim de Dean, surge uma nova ameaça: inicialmente chamada apenas de Escuridão, ela surge como uma fumaça negra no horizonte dos Winchester, eventualmente assumindo a forma de uma mulher cujo receptáculo atende por Amara (Emily Swallow, em sua fase adulta). Nascida no primeiro episódio em meio ao caos, e demonstrando um crescimento acelerado pela sua natureza sobrenatural, enquanto menina, Amara já demonstrava o nível de destruição do qual era capaz e por isso foi rastreada e disputada por aqueles que queriam ter controle sobre o seu poder ou impedi-lo de se desenvolver ainda mais. Ao atingir a maturidade, no entanto, ela assume definitivamente o papel de antagonista e, uma vez revelado que ela é a irmã de Deus, aprisionada por ele durante milênios, seus objetivos se tornam claros: vingança e a destruição de toda a sua criação.

A dualidade do enredo é ardilosa no que diz respeito ao fato de Deus representar a luz e a criação de todas as coisas, enquanto a Escuridão representa, bem, a escuridão e a destruição. Por se tratarem de opostos, a polaridade negativa do tema inevitavelmente teria de ser representada pelo feminino para não contrariar a ideia disseminada do Deus que conhecemos, como o Pai de todas as coisas. Embora exista uma história no contexto da série que justifique a relação turbulenta entre os irmãos, e as motivações de Amara, graças ao que está escrito na religião, o final da disputa se torna um tanto óbvia. A complexidade do papel de Amara reside, então, no mistério de sua conexão com Dean.

Entre todas as personagens que passaram pela série, no entanto, nenhuma perda foi tão dramática quanto a de Charlie Bradbury. Introduzida na sétima temporada, Charlie é uma especialista em TI lésbica que ajuda os irmãos a terem acesso aos e-mails do leviatã Dick Roman (James Patrick Stuart) — para quem Charlie trabalhava na época. Os três salvam o dia e Charlie, por fim, promete desaparecer e começar uma nova vida, mas esse é apenas o início de uma jornada que duraria quatro temporadas. Ela retorna aos Estados Unidos após os leviatãs serem definitivamente derrotados, e seu caminho cruza com o dos irmãos algumas vezes ao longo dos anos.

Enquanto a inteligência, o humor e o gosto por cultura pop são os traços que primeiro se destacam em sua personalidade, no decorrer da história, Charlie se torna mais confiante e uma caçadora independente — primeiro, de forma parcial, mas em definitivo não muito tempo depois. Sua relação com os protagonistas também cresce: como afirma Dean, Charlie é “a irmã mais nova que ele nunca quis” e a relação entre eles, e também entre ela e Sam, embora muito distintas em dinâmica, partem desse lugar fraterno de cumplicidade e carinho mútuos. Charlie é uma pessoa em quem ambos podem confiar, e fazem isso com cada vez mais naturalidade à medida que se tornam mais próximos. Ela é uma parte da família.

Mais importante, talvez, seja o fato de que a proximidade entre Charlie e os Winchester não faz dela alguém sem conflitos particulares. Em tempo, Supernatural revela que Charlie também não teve uma vida fácil, tendo visto o pai morrer ainda na infância e precisado lidar com uma mãe em estado vegetativo enquanto crescia como pessoa e mulher. O passado sombrio é um contraponto interessante a sua natureza esperançosa, mas não a faz uma mulher sem nuances ou bem-humorada em 100% do tempo. Na décima temporada, quando Charlie é dividida em duas versões de si mesma, a ambiguidade da sua existência fica óbvia. A diferença é que, se existe uma Charlie sombria que não hesita em matar e torturar seus inimigos, também existe uma Charlie empática e bondosa que equilibra a equação. Sua sexualidade também é desenvolvida com naturalidade, muito embora Supernatural nunca tenha sido conhecida por sua capacidade de construir grandes romances, e é com graça e ternura que Charlie se envolve com outras mulheres — algumas muito famosas, como é o caso da personagem Dorothy (Tiio Horn), de O Mágico de Oz, com quem vive por determinado tempo.

Seu retorno de Oz na décima temporada marca a derrocada da personagem. Para ajudar Dean, Charlie vai até a Europa em busca do livro capaz de livrá-lo da marca de Caim — que ela encontra nas ruínas de um monastério, mas não sem chamar a atenção de uma família ambiciosa que deseja o livro para aumentar seu poder. Mais tarde, em “The Dark Dynasty”, a busca da família leva um de seus membros até o motel onde Charlie está sozinha e, uma vez tendo codificado as informações contidas no livro, ela se tranca no banheiro e envia as informações para Sam e Dean antes de destruí-las. Quando Eldon Frankenstein (David Hoflin) a encontra, Charlie luta com bravura, mas acaba morta à facadas, sendo posteriormente encontrada pelos irmãos jogada em uma banheira. Mais tarde, os Winchester irão vingá-la e exterminar toda a família, mas é um episódio vazio que apenas reforça sua posição de submissão.

Em julho de 2015, durante o painel de Supernatural na Comic Con, no tempo previsto para perguntas abertas ao público, entre uma singela homenagem à campanha de Jared Padalecki, Always Keep Fighting, e uma pergunta sobre como os atores participavam na decisão do curso dos próprios personagens, uma garota se levanta e faz a pergunta que todas nós gostaríamos de fazer:

“Minha pergunta é para o Jeremy [Carver] e o Andrew [Dabb], mas eu gostaria que o resto do elenco também desse sua opinião sobre isso. Então, minha pergunta é: considerando que as mulheres têm sido frequentemente usadas para mover o enredo dos personagens masculinos, por que foi tomada a decisão de matar a Charlie e jogá-la numa banheira?”

Mark Sheppard, que interpreta o vilão Crowley, explodiu em gargalhadas enquanto o resto do elenco ficou constrangido e sem saber como agir. Em seguida, de brincadeira, eles viraram de costas e isentaram-se da responsabilidade de responder àquela pergunta, uma atitude que, ainda que não intencional, foi no mínimo desrespeitosa. Jeremy Carver, showrunner da série, durante o hot spot, gaguejou e não conseguiu dar uma resposta plausível, dizendo apenas que em séries como Supernatural é inevitável que personagens queridos do público acabassem morrendo. Jensen Ackles, por sua vez, numa tentativa frustrada de ajudá-lo, disse que a princípio a personagem estava planejada para ter uma participação menor na série e que havia sido sorte dela ter permanecido por mais tempo — o que de forma alguma torna a situação menos problemática.

Em uma série em que a morte nunca foi uma linha definitiva, o despreparo para justificar o fim irrevogável de uma personagem feminina demonstra o quanto Supernatural precisa evoluir. O recado foi dado e endossado pelo aplauso de muitas garotas que estavam na plateia do evento, mas esse foi só o primeiro passo e não podemos parar de nos questionar. Se os produtores, roteiristas e elenco ficaram constrangidos com a pergunta e perceberam que estamos cientes do que assistimos para além do entretenimento, talvez seja a hora em que eles finalmente trabalharão para que os mesmos erros não continuem a se repetir, e que o curso de papéis femininos seja crescente a partir de agora.

Não há problema em gostar de Supernatural, mas é importante criticar aquilo que gostamos, notar que nossos favoritos também têm problemas e apontar essas questões com coerência apenas enriquece o debate e nos coloca mais perto de soluções. Só assim poderemos ter uma série que de fato contemple seu público feminino de forma honesta, como os seres complexos que sempre fomos.

Texto escrito em parceria por Ana Luíza, Thay e Yuu

9 comentários

  1. Ah, claro que podemos justificar que Supernatural é seriado de machão, e que, no Universo Brucutu, o destino da mulher é irrelevante. Mas não podemos fechar os olhos para as atrocidades no roteiro que eles tem feito com as nossas queridas personagens femininas. Eles não injustiçaram só a Charlie não, eles praticamente jogam a Jody de lado e ela só aparece quando convém – hm, que coisa, né? E eu ainda não superei a morte das Harvelle, muito menos perdoei. E por mais que eu adorei eles terem usado Chuck como Deus, teria sido maravilhindo colocar uma mulher pra representar Deus – porque rivalidade entre irmãos fica muito mais bonito quando não tem guerra dos sexos envolvida, né. E teria sido uma puta reviravolta, e uma lufada de ar fresco num seriado lotado de testosterona.
    Já passou da hora dos produtores atualizarem o enredo deles, pelo menos no que diz respeito às personagens femininas que aparecem de vez em quando na série. Porque em pleno 2016, ficar usando mulher como muleta pra macho fica feio.
    E TRAGAM A CHARLIE DE VOLTA! Se virem pra explicar, não quero saber, se Dean e Sam vivem voltando, A CHARLIE TAMBÉM PODE, PÔ!

    1. Ter Charlie de volta seria maravilhoso, se todo mundo volta, Charlie também pode!²
      E assim, acho que a CW não entende muito bem seu próprio público, sabe? Se SPN nasceu como série de macho brucutu, já não é assim faz tempo! Falta um tanto de tato por parte deles para entender melhor quem assiste e gosta de série.

  2. A pauta que eu sugeri <3
    Eu amo muito Supernatural, mas desde quando comecei a assistir (há uns 2 anos) e vi a série descartar personagens femininas incríveis e com um grande potencial a ser explorado irem para o saco, me fez ponderar coisas que não haviam passado pela minha cabeça em qualquer outro seriado antes.
    Afinal, com um público feminino TÃO grande, como é que a série pode ainda ser considerada pelos showrunners e a network como uma "série de macho"? Vale também ressaltar que 90% de todas as personagens mencionadas se relacionam amorosamente ou sexualmente com os Winchesters e no fim, morrem por "amarem" estes personagens. Qual é, it's 2016 THE CW!!!!!!!!!!!

    1. Essa é uma verdade! Embora eu ame Supernatural, não consigo entender como a CW fecha os olhos para esse tipo de coisa. Em pleno 2016, 12 temporadas depois e eles continuam cometendo os mesmos erros com as personagens femininas, é de chorar. Vamos ver o que acontece agora que Mary Winchester voltou (não tenho um bom pressentimento, sos).

  3. eu nunca curti supernatural – um misto de não ser muito da vibe sobrenatural que obviamente é a essência da série e birra eterna do jared padalecki, já que era uma garota gilmore hater do dean desde cedo -, mas em um muitas horas a série acaba tendo personagens femininas bem interessantes. pena que elas poderiam ter tido mais destaque ou não caído na trope de bury your gays, mas né?

    1. A série tem uma galeria excelente de personagens femininas pena que, como a gente disse no texto, elas nem sempre tenham sua importância reconhecida. Elas poderia ter um destaque maior, histórias melhores, mas né, sempre utilizam a carta mais fácil que colocá-las como meios para um fim. E bury your gays foi triste demais, Charlie merecia muito mais.

  4. Perdemos mulheres, mas muitos homens também. Bobby (ainda não superei), John, Garth, Gadreel (gostamos dele lá no fundo), Ash, Henry (avô dos meninos)… Tantos outros, sou mulher, mas nunca reclamei disso… Amo todos os personagens (algumas exceções rs) e a perda de qualquer um dói, mulher ou homem.

  5. Apesar dessa matéria ter sido feita antes dos atuais acontecimentos, gostaria de colocar aqui minha opinião a respeito e dizer que, em determinados casos, eu não concordo. Acho sim que Supernatural precisava de representatividade feminina, mas não acredito que a morte de tantas mulheres ao longo da série são justificadas por elas serem mulheres. A história nada mais é do que dois irmãos que lutam contra monstros e tentam salvar a si mesmos, as pessoas e o mundo e, dessa forma, significa que existem pessoas que passam pela vida deles e que por razões óbvias (eles se manterem próximos das pessoas fazem com que elas corram perigo) eles não se mantém por perto. Todos, ou a grande maioria, de personagens que morrem em Supernatural, são acometidos por tragédias, inclusive os homens da série, que aliás não retornaram: John, Gadreel, Kevin, Bobby, Benny, Ezhequiel, Balthazar, e Crowley atualmente (que aliás foi confirmado que não voltará mais para o show). Sem contar que os atores e atrizes saem da série também por várias questões além de simplesmente seus personagens. A Meg por exemplo era pra ter permanecido na série, mas a atriz sofria de problemas de saúde e pediu pra sair. Quando Charlie morreu, aquilo aconteceu para que uma coisa muito comum e recorrente na história continuasse acontecendo: todos aqueles que Dean e Sam amam e que estão por perto, sempre acabam morrendo (na temporada anterior, Kevin havia morrido). No mais, é muito importante e gratificante dizer que agora a série Wayward Sisters realmente existe, que Rowena ainda vive, Mary voltou dos mortos e Charlie reapareceu, num universo paralelo, mas apareceu. Então sim, pra mim Supernatural está seguindo um caminho muito bom.

  6. Eu concordo totalmente com o texto. Também acho que metade dos fãs da série são mulheres. Contudo, uma coisa que acho curiosa quando falo com alguma a respeito, nunca comentam sobre o enredo ou outras qualidades da produção, mas apenas o quanto os protagonistas são “gostosos”. E eu acho isso um sério problema quanto à questão de que queiram um melhor tratamento às personagens femininas.

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