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Quem são nossos pares?: uma reflexão crítica

Susan Glaspell — roteirista, novelista, jornalista e atriz norte-americana que viveu entre finais do século XIX e meados do século XX — pode não ser um nome altamente conhecido por nós, mas isso não diminui a dimensão da obra, que aborda questões pertinentes à posição feminina na sociedade, e foi sucesso de público em seu próprio tempo. A peça de teatro Tifles, que possui as mesmas personagens e premissa encontradas no conto posterior da autora, “Julgada Por Seus Pares”, traduzido ao português por Flávia Yacubian e publicado em versão digital pela Balão Editorial, é reconhecida como uma das melhores obras do teatro estadunidense e já foi objeto de diversas adaptações para os palcos, cinema e televisão.

No conto, publicado pela primeira vez na Every Week Magazine, em 1917, Martha Hale e a Sra. Phillips acompanham os maridos — respectivamente Lewis Hale, testemunha, e o Xerife Phillips — e o procurador público do Condado de Dickson até a cena de um crime: John Wright, um fazendeiro local e vizinho da família Hale, foi morto em sua cama, sufocado por uma corda. A única pessoa na casa quando a morte é descoberta pelo Sr. Hale é a esposa do morto, Minnie Wright, que se encontra em estado claro de histeria. A mulher é presa e, no dia seguinte, o grupo volta à cena do crime para buscar pistas sobre a motivação da suposta assassina.

As mulheres do grupo, obviamente, não estão lá para investigar nada. A esposa do xerife foi levada para buscar pertences pessoais da mulher detida e, assustada demais para ir sozinha, pede que convoquem a companhia da Sra. Hale na excursão. Após vasculhar a cozinha sem encontrar nada que considerem relevante, os homens prosseguem para as outras áreas da casa, deixando para trás as duas mulheres. Finalmente à vontade, as mulheres começam a analisar os detalhes que os homens não conseguem perceber e a reconstruir, a partir daí, a vida solitária e triste da mulher que um dia foi a vaidosa e cheia de vida Minnie Foster.

“— Oh, bem — disse o marido da sra. Hale, com superioridade bem-humorada —, as mulheres estão acostumadas a se preocupar com besteiras.
As duas mulheres se aproximaram. Nenhuma delas falou. O procurador pareceu de repente se lembrar das boas maneiras — e pensar no seu futuro.
— E, no entanto — falou, com a galanteria de um político jovem —, apesar de todas essas preocupações, o que faríamos sem as mulheres?”

O conto tem inúmeros pontos interessantes, perspicazes e certeiros acerca da posição de homens e mulheres na sociedade que, em sua formulação mais radical, podem parecer ter ficado no passado, mas em realidade perduram até hoje. Os homens, em especial aqueles que ocupam posições de autoridade, acreditam piamente na incapacidade das mulheres. Em todas as suas aparições, fazem questão de minimizá-las, rir delas, tratá-las com condescendência, demonstrando todo o desprezo que em quase nenhum momento lhes ocorre disfarçar. Justamente por essa barreira social, eles são incapazes de encontrar e interpretar corretamente as numerosas pistas espalhadas pela cozinha que contam não apenas a história de um assassinato, como uma história anterior a ele. Com frequência, as pistas encontradas pelas mulheres são deixadas à vista de todos, mas os personagens masculinos permanecem incapazes de sair da sua própria posição de privilégio e começar a perceber o mundo a partir da perspectiva de uma mulher.

As duas personagens femininas, pelo contrário, mal precisam deixar a cozinha para ler os sentimentos e sofrimentos da mulher ausente em todos os detalhes que as cercam, ainda que possuam realidades diferentes de vida e pouco ou nenhum contato com Minnie Wright antes daquele momento. O que elas enxergam em torno de si enquanto estão naquela cozinha não é uma parte limitada e exclusivamente funcional de uma casa, mas todo um universo, um universo ao qual elas também estão confinadas em suas próprias vidas. Elas têm tanta facilidade de empatizar com a outra porque elas partem de uma perspectiva social parecida, porque sabem que tudo naquele microcosmo obedece a uma lógica própria que elas conhecem e, além disso, porque estão também familiarizadas com as dores e os silêncios de ser mulher.

Outra coisa que fica muito evidente, em especial no começo do conto, é como só quando os homens não estão presentes aquelas mulheres se sentem livres para se comportar e falar de forma mais independente. Enquanto eles se aquecem no fogão e varrem a cozinha em busca de provas, elas permanecem em silêncio, de pé, próximas à porta. Só quando eles deixam o recinto elas se aproximam do fogo para se aquecer, conversam entre si, sentam-se. Existe uma dimensão do ser mulher que não é factível na frente de homens, devido a toda uma carga de socialização que coloca os dois sexos em universos diferentes e incomunicáveis entre si. É o desconforto eterno de estar em um mundo que não é nosso, não foi feito para nós e ridiculariza nossa própria existência.

Julgada Por Seus Pares não é um conto sobre a investigação de um crime, apesar de ser um conto que se passa durante a investigação de um. É um conto sobre empatia, sobre ser mulher e sobre sororidade na forma que pouca gente acredita que possa existir. É um texto permeado de sentimentos, ainda que curto, e com uma profundidade emocional impressionante, que expõe e ridiculariza os seres supostamente superiores que não fazem nenhuma cerimônia antes de ridicularizar a nós, e não se dão conta de que, ao nos limitar e nos transformar em seres exóticos e artificiais, eles acabam também limitando a si mesmos e se tornando cegos a toda uma parcela de mundo.

“A Mulher aparece como o negativo, de modo que toda determinação lhe é imputada como um limitação, sem reciprocidade. Agastou-me, por vezes, no curso de conversações abstratas, ouvir os homens dizerem a mim: ‘Você pensa assim porque é uma mulher.’ Mas eu sabia que minha única defesa era responder: ‘Penso-o porque é verdadeiro’, eliminando assim minha subjetividade. Não se tratava, em hipótese alguma, de replicar: ‘E você pensa o contrário porque é homem’, pois está subentendido que o fato de ser um homem não é uma singularidade; um homem está no seu direito sendo homem, é a mulher que está errada.”

(Simone de Beauvoir, O Segundo Sexo, vol. 1, introdução)

O ebook foi cedido para resenha pela Balão Editorial.


** A arte em destaque é de autoria da editora Paloma.

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1 comentário

  1. Descobri a existência desse conto por essa postagem, algumas semanas atrás. Comprei o ebook, li e fiquei muito feliz de ter finalmente encontrado o texto literário que trabalharei com minhas alunas e alunos no ano que vem numa sequência didática pensada para análise no mestrado. 😉

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