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Queerbaiting ou não: o caso Grace and Frankie

Desde que estreou, Grace and Frankie entrou para o rol das minhas séries favoritas. Afinal, não é sempre que temos Jane Fonda e Lily Tomlin trabalhando juntas novamente. A última vez aconteceu nos anos 80, com o filme Como Eliminar Seu Chefe. A trama da série, que inicialmente conta a história de duas esposas deixadas pelos maridos que saem do armário, aqueceu meu coração de uma forma que não esperava, tratando sobre temas muito pertinentes como o envelhecimento — e, principalmente, como ele afeta as mulheres.

A mais recente temporada da série entrou no catálogo da Netflix há pouco e, depois de assistir aos treze episódios em dois dias, não sabia o que sentir. Parecia que as coisas não eram mais as mesmas. Pelo menos, não entre as amigas Grace e Frankie. Por que tudo parecia tão dúbio? Por que, de repente, havia um clima romântico entre elas? O que estava acontecendo?

Demorei alguns dias para me dar conta de que esse “sonho” tinha um nome: queerbaiting. Desde então mergulhei profundamente no universo da série para tentar entender os motivos que levaram a mim e a outros espectadores a crer que Grace and Frankie estava se valendo dessa isca, sendo que já temos um casal LGBTQI+ na história.

O que é queerbaiting?

Queerbaiting é uma tática utilizada por muitas séries de televisão para atrair o público LGBTQI+ sem ferir a audiência conservadora. Como? É simples: colocam dois personagens do mesmo gênero para viver uma eterna tensão sexual, que cria uma dubiedade diante do público que quer vê-los juntos, mas nada acontece de verdade. Trata-se de uma forma bastante inteligente de agradar dois públicos muito diferentes. Os LGBTQI+ sentem-se, de certa forma, representados, ao passo que a televisão continua imaculada para os conservadores. Todos saem ganhando.

A origem da palavra está ligada a outra tática chamada de gay baiting, que significa “isca gay”. A isca, aqui, seria o próprio homem gay, tão irresistível que é capaz de atrair um homem inicialmente identificado como heterossexual. Esse tropo foi bastante explorado em mangás yaoi, gênero que surgiu nos anos 80. Como consequência, houve uma fetichização de relações homossexuais por parte de pessoas heterossexuais, algo bastante problemático e que ainda encontra ecos na televisão e no cinema atualmente.

Grace and Frankie

Um dos casos mais recentes de queerbaiting aconteceu em Harry Potter e a Criança Amaldiçoada, peça de teatro escrita por Jack Thorne com base no mundo criado por J.K Rowling. Os personagens Albus e Scorpius, filhos de Harry Potter e Draco Malfoy respectivamente, têm um comportamento que dificilmente seria interpretado como amizade, caso estivéssemos falando sobre uma mulher e um homem. Desde que J.K Rowling inseriu um personagem gay na trama, Dumbledore, mas o matou, os fãs da saga esperam outro personagem LGBTQI+ na história. Não é surpresa que eles tenham se sentido traídos, até mesmo ofendidos, pela tática queerbaiting que, na visão deles, foi deliberadamente usada pelo autor da peça. Os personagens não morrem, porém, o que temos é uma representação torta, de muletas. Uma representação que existe apenas em nossa cabeça, não na vida. O subterfúgio usado pelo autor de A Criança Amaldiçoada mostra o medo que muitos autores/diretores/roteiristas têm de “tomar” um lado na questão LGBTQI+. É muito mais fácil posicionar-se em cima do muro, fazendo de conta que existe uma representatividade falsa.

E como isso aparece em Grace and Frankie?

Grace and Frankie sofreu uma virada radical da primeira para a terceira temporada. Logo no começo da primeira temporada, somos apresentados ao fato que sustenta a trama: Sol (Sam Waterston) e Robert (Martin Sheen), dois advogados e parceiros de empresa, saem do armário para as esposas e decidem se casar. Essa revelação faz com que Grace e Frankie, duas mulheres aparentemente satisfeitas com o lugar que ocupam, questionem seus destinos, já que agora estavam “sozinhas”, sem o apoio de um casamento. Vemos o nascer tímido de uma amizade entre elas, não sem muitas risadas, pois essas duas mulheres têm personalidades radicalmente diferentes.

Já na segunda temporada, o foco se distancia de Sol e Robert, a essa altura do campeonato já casados. A questão chave da temporada é aquilo que a série construiu ao longo do ano anterior: o que é envelhecer? Para uma mulher, envelhecer é sinônimo de lágrimas. Você não tem mais a pele de antes, o cabelo começa a embranquecer e todos começam a descartá-la. Em uma das cenas mais tocantes de Grace and Frankie, a que se passa em um supermercado, vemos como a sociedade pouco se importa com pessoas mais velhas. As amigas chamam o caixa várias vezes para pedir cigarros, sem sucesso. Quando uma moça mais nova entra no supermercado, as atenções do funcionário se voltam para ela. O cara derrete-se mais que manteiga e está disposto a atender a todos os pedidos da moça. Grace, irritada com aquela situação, grita:

“Eu me recuso a ser invisível!”

Essas e tantas outras cenas nos revelam situações pelas quais pessoas mais velhas, sobretudo mulheres, precisam enfrentar diariamente. O sentimento tímido de irmandade entre Grace e Frankie é solidificado na segunda temporada, mostrando um girl power um pouco diferente daquele com o qual estamos acostumados: o das mulheres mais velhas. Elas se apoiam, elas apoiam a amiga que deseja dar um fim à própria vida. Aliás, o suicídio assistido de Babe (Estelle Parsons) é o que leva a mais uma virada na série. Ela deixa um presente para Grace e Frankie, sendo o da primeira um vibrador. Depois de usá-lo, Grace se queixa de artrite e, mais uma vez, a trama nos mostra como nada neste mundo é pensado para pessoas mais velhas. Tendo em vista a falta de visibilidade desse grupo, elas decidem fabricar vibradores para mulheres mais velhas, projetados especialmente para suas necessidades. A season finale da segunda temporada é a coisa mais linda que você verá durante muito tempo. Grace e Frankie, cansadas de serem consideradas invisíveis por todos os outros personagens da série, mandam aquele turn down for what e saem lindas e serelepes, cheias de planos para o futuro. Juntas, uma unidade.

Quando a última temporada começou, tínhamos tudo para pensar que o foco agora seria a empresa de vibradores, o que as personagens fariam para expandir e tornar o negócio vendável. O que Marta Kauffman entregou no começo foi isso mesmo, mas lá pelo meio, eu comecei a detectar algumas coisas estranhas. Para começar, o famigerado episódio em que Frankie descobre que Grace tem armas em casa. Elas passam alguns episódios brigadas, uma vez que Grace mentira sobre a existência de armas na casa para Frankie. Na cena que encerra o desentendimento entre elas, acontece o diálogo a seguir:

Grace: [sobre Robert ter comprado uma arma para que ela se sentisse protegida] Que geralmente gosta de ficar comigo o tempo todo. Às vezes, demais. Mas gosto disso. Às vezes, demais.
Frankie: Então, por que você ainda precisa de uma arma?
Grace: Acho que não preciso.

Eu, como mulher LGBTQI+, quase chorei nesta cena. Foi MUITO difícil olhar para ela com olhos de amizade. Para mim, existe um subtexto. Na superfície, a questão da arma; debaixo do iceberg, o dar-se conta de um sentimento que ultrapassa a amizade. “Às vezes, demais” soa como se Grace estivesse confusa, entre o tênue abismo entre amizade e amor. Soa como uma confissão. Quer dizer, amizade é amor, mas você sabe quando o sentimento se transforma em algo mais profundo. Então houve a cena do chão, em que as duas estão tão próximas que é possível crer que iriam se beijar, mas apenas acontece um elogio básico: “eu não digo isso com frequência, mas você é linda.” E tantas outras cenas, como resume essa thread do Twitter, que compilou os melhores momentos de sofrência pelo ship Grace e Frankie.

A história nesta temporada também gira ao redor de algo que pode separar as duas amigas — no caso a partida de Frankie para Santa Fe com o namorado. O último episódio coroa os subtextos inseridos por Marta Kauffman. Ao ser questionada sobre como imaginava seu futuro, Frankie responde: “Em um balão”. Grace, então, cancela seu encontro furada com um empresário e arranja um balão com as cores da bandeira gay (como isso não pode ser queerbaiting?) para que elas possam voar. Antes de embarcarem no balão louco, Grace diz que sentirá muito a falta de Frankie, se esta for embora. O balão sobe, e um diálogo pra lá de dúbio acontece:

Frankie: Isto é fantástico.
Grace: O Jacob também é.
*Silêncio*
Grace: Você deveria ir embora com ele.

Lendo as falas da personagem, a cena não parece grande coisa, mas o que nos leva para a teoria do queerbaiting é justamente os olhares que Grace troca com Frankie. É difícil falar sobre isso, uma vez que cada pessoa teve uma impressão diferente sobre a série. Tenho amigos que sequer consideraram a hipótese de uma isca. Porém, como LGBTQI+, sinto que um sentimento além de amizade está sendo forçado. Sobretudo com o final da última cena da temporada, em que Frankie arremata:

“Vamos ver aonde este balão vai nos levar.”

Será que levará para um relacionamento amoroso entre as duas? Por que Grace parece tão incomodada com o namorado de Frankie? Por que a câmera passa entre os olhares delas, como se quisesse desesperadamente nos dizer algo? Acho que o queerbaiting faz isso conosco. Você não tem mais certeza de nada. E isso pode ser muito forte de se dizer, mas lá vai: trata-se de uma forma de violência simbólica.

Falando sobre relacionamentos entre mulheres, é muito fácil as coisas escoarem para uma fetichização. Filmes como Azul é a Cor Mais Quente são o auge dessa premissa, que faz dos nossos corpos uma mercadoria, algo para ser apreciado pelo público masculino heterossexual. A caméra bite (câmera pau) de Abdellatif Kechiche passeia pelos corpos de Léa Seydoux e Adèle Exarchopoulos como se aquela carne fosse a única coisa que valesse a pena mostrar. Sinceramente, não vejo nada além de carne nessa trama. A história de amor entre elas transforma-se em um artifício para explorar as cenas de nudez e sexo à exaustão, deixando-nos uma sensação de que as atrizes estavam constrangidas. E elas estavam.

Esse tipo de representação torta é uma forma de violência simbólica, de sempre mostrar qual é o lugar das relações amorosas entre mulheres na mídia. Se não há fetichização, vale a pena mostrar? Parece que não. Isso porque o público permite certo tipo de relacionamento amoroso entre mulheres. Quem não lembra de Clarina? Elas foram bem recebidas, não porque nossa sociedade estivesse mudando, mas porque é mais fácil olhar para esse envolvimento amoroso quando ele tem a face de duas mulheres jovens. Quando falamos sobre mulheres mais velhas, o buraco é mais embaixo.

O casal Teresa (Fernanda Montenegro) e Estela (Nathalia Timberg) da novela Babilônia chocou os lares brasileiros ao trocar um beijo logo no primeiro capítulo. O público não estava preparado para se confrontar com a sexualidade de duas senhoras, que trocaram esse gesto carinhoso no quarto. O que parecia ser o avanço dos avanços acabou tornando-se um queerbaiting ao contrário. Devido à rejeição do público conservador, o autor da novela, Gilberto Braga, decidiu atenuar as cenas entre elas. Em quase 200 capítulos, Estela e Teresa trocaram três beijos. Cenas no quarto, de roupão? Nunca mais. Além disso, tentou-se inserir o ex-marido de Teresa na história, aquele bom e velho tropo do amor entre mulheres ser abalado pela presença masculina, emitindo aquela mensagem sutil de que este relacionamento entre mulheres não tem o selo de qualidade ISO.

Neste contexto, um relacionamento amoroso entre Grace e Frankie, forjado pela terceira temporada, mais atrapalha que ajuda. É outra forma de violência simbólica, pois faz o público LGBTQI+ crer em uma representatividade que só existe naquele subtexto. É como se fossemos animais batendo palmas por biscoitos, migalhas que nos largam. No caso de Grace and Frankie, meu grande questionamento é: para que queerbaiting se já tínhamos outro casal LGBTQI+ na trama? Pois a única resposta que encontro é fanservice. A popularidade da qual Jane e Lily desfruta é fantástica, elas aparecem de mãos dadas em todos os eventos possíveis. Lily, inclusive, até apareceu com uma bolsa estampada com as fotografias das mug shots tiradas por Jane nos anos 70, quando foi presa. Jane já declarou que não descartava um envolvimento amoroso entre as amigas, e que Lily era uma greater kisser.

Não sabemos se, de fato, está para nascer uma relação amorosa entre Grace e Frankie. Porém, a série nos oferece munição para pensar se ela realmente é tão prafrentex quanto imaginamos. Além do queerbaiting, poderíamos discutir a representação extremamente estereotipada dos gays, culminando na cena do protesto.  Será que não há espaço na comédia para se discutir temas mais sérios? Isso porque, a meu ver, Grace and Frankie demorou demais para falar sobre assuntos caros ao público LGBTQI+, como a saída do armário de Robert para sua mãe. Talvez fosse melhor para a série explorar o relacionamento entre Sol e Robert, mas é compreensível que o foco se desvie deles, afinal o nome da série é Grace and Frankie, e não Sol and Robert.

Só nos resta aguardar para onde o balão de Marta Kauffman nos levará.

5 comentários

  1. Como boa lésbica que passou anos da vida tentando juntar personagens que jamais ficariam juntas, acho que posso dizer que não vi queebaiting em Grace and Frankie em momento nenhum. No máximo uns comentários da Frankie mas mais no estilo Lilly e Robin de HIMYM, engraçadinho que ninguém espera nada.
    São só duas mulheres que são muito amigas e ficam tristes, felizes, com ciúmes e as vezes amargas com as situações da vida, como qualquer amizade.

  2. Olha ainda não assisti a série, porém quero falar sobre o fato de A Criança Almadiçoada, é bem relativo a questão de Queerbainting nela, em nenhum momento quando li o livro achei que havia algo além de sentimentos fraternos entre Albus e o Scorpius, principalmente quando Scorpius deixa claro seu interesse na Rose. O problema em afirma isso na obra é que em todos os momentos criados entre os dois seriam interpretados como normais se os dois fossem irmãos, ou seja, chegamos a conclusão de que homens podem ser amigos mas desde que não se importem tanto com os outros amigos homens, ou mesmo mulheres, afinal qualquer coisa além disso estariam demonstrando interesse amoroso no mesmo. Queerbainting é real e muito usado atualmente, mas temos também que saber dividir as situações.

  3. Olha, não vi nada de “queerbaiting” na realçaõ das duas. Achei uma relação de amizade normal entre duas melhores amigas. Eu tenho uma amizade assim. Desse mesmo jeito, que já passou até por ciúmes de ambas as partes em relação a namorados ou outras amizades, irritação com mentiras etc. Acho isso completamente normal. E não acho que o “às vezes demais” signifique um sentimento maior do que o amor de amizade, acho que significa que ela nunca esperava que fosse amar a Frankie tanto assim, afinal as duas não se davam antes e são completamente diferentes.

  4. Putz, eu não vejo isso entre as duas. Vejo uma amizade fortíssima e todo o rolo Jacob/Frankie/Grace eu vejo um namorado meio babaca que não respeita a importância da amizade entre a namorada e a amiga. Acho que a série às vezes retrata os gays de maneira extremamente caricata, o que me incomoda. Também enxergo que apesar de não ser uma série como Grey’s anatomy, que toca diretamente em assuntos como direitos LGBTQI e feminismo, “grace and frankie” é meio GGGG.

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