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Precisamos falar sobre a Rae

Não dá para falar sobre saúde mental sem falar de My Mad Fat Diary. Não dá para falar de saúde mental sem falar de Rachel Earl, a Rae.

Nos deparamos com Rae (Sharon Rooney) pela primeira vez em uma situação complicada — quinze anos, recebendo alta médica depois de quatro meses de internação em um hospital psiquiátrico por causa de um episódio grave de automutilação. Ela está sozinha e apavorada de voltar ao mundo real. Não existe outra possibilidade: tudo vai dar errado, ela sempre vai ser a menina gorda de quem ninguém gosta.

Então Linda, a mãe (Claire Rushbrook), chega para buscá-la, e no meio do caminho as duas encontram Chloe (Jodie Comer), a melhor amiga de infância, e Rae é apresentada à Gangue enquanto nós começamos a perceber que as coisas não são bem assim.

Sim, Rae ainda é uma adolescente de quinze anos gorda, depressiva, com transtorno de ansiedade e ataques de pânico e que sofre bullying. Mas ela é mais que isso — ela é uma menina engraçada, bonita, inteligente, com ótimo gosto musical. Mesmo sofrendo com diversos transtornos mentais e lidando com a própria insegurança, ela é uma das personagens adolescentes mais seguras de si que eu já vi.

“Eu odeio que eu sou o tipo de pessoa que tem medo de tudo. Eu não costumava ser assim, eu costumava ser corajosa.” “E o que aconteceu?” “O mundo aconteceu.”

Durante toda a primeira temporada, Rae não conta para os amigos sobre seus problemas e sua internação. Nós acompanhamos as lutas, a crise e o sofrimento, porque vemos tudo através do ponto de vista dela, mas para os amigos, ela é o totem — a pessoa mais normal, mais sensata, mais forte, que segura as pontas enquanto todos os outros são loucos. Ela é a cola.

Esse é o ponto: ter transtornos mentais não é necessariamente ser louco. Qualquer coisa que fuja minimamente do padrão de normalidade do mundo é considerada loucura, e esse padrão é inatingível. Todas as pessoas são loucas; algumas só disfarçam melhor do que as outras, e isso não tem nenhuma relação com saúde mental.

“O ponto é- quem é louco e quem não é?”

Todas as pessoas passam diariamente por questões que o resto do mundo não tem condições de enxergar, mas cada um lida com isso de uma forma diferente. Algumas dessas pessoas juntam a vida com doenças que tornam essas questões ainda mais difíceis de lidar. O cérebro, como qualquer outra parte do corpo, adoece; só que isso nem sempre é visível para quem está de fora.

O mundo pode nos enxergar como pessoas felizes, saudáveis e estáveis. Para todos os efeitos, temos vidas perfeitas, saímos com os amigos, namoramos, contamos piadas, damos os melhores conselhos. Mas isso não significa que nada esteja acontecendo por dentro, isso não significa que não estejamos secretamente presos na redoma. Nosso interior é um mundo próprio e nossos sentimentos são válidos mesmo quando não são visíveis para mais ninguém.

“…mas como é possível que eu possa dar conselhos e alegrar outras pessoas, mas que eu não consiga fazer isso com a minha própria vida? Eu não entendo.”

Não é preciso ser triste o tempo inteiro para ser depressivo. Crises incapacitantes existem e não devem ser questionadas — não é má vontade, não é preguiça —, mas às vezes por fora tudo parece bem quando tudo simplesmente não está bem. Às vezes a gente tenta seguir a vida no estilo fake it until you make it enquanto tudo por dentro grita, e nos convencemos que está tudo bem porque ainda conseguimos levantar da cama e tomar banho. Mas isso não nos faz mais fortes, nem faz o nosso sofrimento menor do que o de quem não consegue sair da cama. Pessoas diferentes simplesmente reagem de maneiras diferentes.

Em My Mad Fat Diary nós vemos o mundo pelos olhos da Rae, e nesse processo de ver de fora o que está por dentro, nós entendemos que os sentimentos dela são válidos. Mas, se formos parar para pensar, ela é parte do grupo de pessoas que não demonstram seus sentimentos reais. Ninguém previu a crise que a levou a ser internada, ninguém soube quando ela foi até a ponte resolvida a se jogar, ninguém vê as recaídas. Para todos os efeitos, ela parece bem. Mas nós não duvidamos da validade da doença dela — por que fazemos isso conosco mesmas?

Não demonstrar não é necessariamente sinal de força. É preciso força para pedir ajuda. Quando represamos demais nossos próprios sentimentos, uma hora a represa se rompe e o resultado pode ser desastroso. Precisamos buscar ajuda. Todos precisamos saber que existe alguém ali, pronto para ajudar, alguém que saiba que tudo não está bem, que acredite em nós e que esteja disposto a segurar nossa mão.

“Algumas vezes, sabe, eu só quero deitar em posição fetal e ver se alguém repara que eu não estou lá. Mas eu sei que o tempo é curto. Se lastimar é um desperdício de tempo. Eu sempre tenho ataques de paranoia. Grande coisa. Estou cansada de me preocupar com o que as pessoas pensam de mim e sentem por mim. Mas eu me pergunto o que eles sentem por mim, mesmo assim. Eu sou amada? Talvez no quarto de alguém eu seja secretamente desejada? Provavelmente não.”

Várias vezes eu já me deparei com publicações de pessoas reclamando que virou moda ter depressão, ansiedade, etc. sem nunca ter sido diagnosticado. Com certeza a romantização de transtornos mentais não é algo bacana, menospreza o sofrimento real enfrentado por quem passa por isso, além de banalizar um assunto que é sério. Mas é preciso ter cuidado com a forma que se fala, porque a doença não começa e nem deveria ser validada apenas quando declarada por um especialista — existe muita gente não-diagnosticada que não consegue pedir socorro, que menospreza os próprios sentimentos e se agarra ao “tem tanta gente por aí sofrendo mais do que eu” para não buscar ajuda, e e esse sofrimento também é real.

O sofrimento não tem uma escala métrica, nem sempre dá sinais externos, e não é coisa da nossa imaginação. Não é a falta de um atestado médico que nos torna saudáveis, mas é o medo da doença que às vezes nos impede de conseguir a ajuda que pode ser a diferença entre a vida e a morte. Seu sofrimento existe, ele é real. Busque ajuda, se você estiver precisando. Siga o exemplo da Rae.