Categorias: CINEMA

Por que a decisão de Nicole Kidman importa (mas é só o começo)

(Ou Cannes, representatividade, indústria cinematográfica e micropolítica)

“Eu faço [um esforço consciente de trabalhar com mulheres]. Eu acho que é necessário e vou continuar fazendo. Parte da minha contribuição é poder dizer: a cada 18 meses farei um filme com uma diretora, porque esse é o único jeito de as estatísticas mudarem. Quando outras mulheres começarem a dizer: ‘Não, eu vou ESCOLHER uma mulher agora’.”

A frase de Nicole Kidman que abre esse texto causou certa polêmica. Muitas vezes acontece com declarações que colocam o trabalho de mulheres em foco, serem consideradas excessivas. Mas Kidman também foi apoiada por outras pessoas que viram na movimentação da atriz um posicionamento positivo.

Além dessa entrevista para o Sidney Morning Herald sobre as quatro produções das quais fez parte e estavam concorrendo no Festival de Cannes, Nicole também falou na conferência de abertura sobre as estatísticas vergonhosas que permeiam a indústria cinematográfica. Os filmes dirigidos por mulheres corresponderam a 4% do total produzido em 2016. Ao chamar atenção para os dados, a atriz australiana reforçou que o cenário continua sem mudanças significativas e sugeriu que o caminho deve ser o apoio mútuo entre mulheres. Mesmo sabendo que existem outros caminhos — e que a internet e a vida têm alguns exemplos para nos inspirar —, acreditamos no potencial transformador da sororidade.

Chimamanda Ngozi Adichie, na palestra em que conta os perigos da história única, consegue descrever o que é crescer tendo como referências apenas histórias de outro país (no caso dela, o país colonizador, a Grã-Bretanha). Nossas infâncias e adolescências foram permeadas por referências de mulheres que simplesmente não faziam parte da nossa realidade, muito provavelmente por serem histórias escritas por homens, para homens (ademais das diferenças culturais). Chimamanda advoga então pela multiplicidade de vozes, de histórias e pontos de vista diferentes que constroem pontes e semelhanças, em oposição a uma história única que exclui e ressalta diferenças.

Apesar de Nicole não estar falando exatamente do mesmo assunto, a proposta de trabalhar sempre com diretoras, após um intervalo de tempo específico, impede que histórias de homens continuem sendo contadas a torto e a direito e força uma disputa num espaço que continua reduzido. É como se as várias resistências (pois elas existem) contra o peso do patriarcado ganhassem uma força extra e visibilidade. Também ressalta, por outro lado, as dificuldades que atrizes, produtoras e diretoras encontram para trabalhar no mercado cinematográfico que, como muitos outros, é machista e extremamente fechado.

Jacques Rancière, filósofo francês, no livro A Partilha do Sensível, discute estética e política com olhar crítico sobre um “comum compartilhado” e as partes de tempos, espaços e tipos de atividade que compõem esse território comum. Ele diz: “A política e a arte, tanto quanto os saberes, constroem ‘ficções’, isto é, rearranjos materiais dos signos e das imagens, das relações entre o que se vê e o que se diz, entre o que se faz e o que se pode fazer.” É esse tipo de rearranjo que acontece quando uma atriz do calibre de Nicole Kidman se propõe a trabalhar com diretoras e fala publicamente sobre isso. Além da força de denúncia, há uma tentativa de disruptura do sistema — mesmo que pequena, afinal, os filmes fazem parte de uma indústria cultural e do capitalismo que também são responsáveis pela opressão às mulheres.

O manifesto da atriz é político a partir do momento em que ela usa seu espaço nessa indústria para dar mais espaço para outras mulheres que talvez não tivessem tanta visibilidade ou acesso se não fosse pelo peso do nome de Kidman. Essa é uma das frentes escolhidas pela atriz, mas a iniciativa de produzir trabalhos que a interessam — como a série Big Little Lies, produzida também por Reese Whiterspoon — é outra maneira de fortalecer o movimento. Contar boas histórias não é prerrogativa de um sexo ou de outro, mas estamos cansadas dos mesmos papéis e da perspectiva masculina da vida, dos relacionamentos, das conquistas e de diversos outros âmbitos da vida.

Uma das batalhas que enfrentamos como feministas é a própria linguagem. O plural ser formado pelo masculino na Língua Portuguesa é prova do machismo entranhado em nossa formação, nas relações e até na maneira como pensamos, tamanha a naturalização. É um esforço consciente não flexionar para o masculino quando estamos em grupos mistos, ou quando estamos escrevendo. Isso é reflexo do poder das próprias palavras em nossa vida. Rancière diz que “Os enunciados políticos ou literários fazem efeito no real”  e é essa realidade trazida à tona pela fala que tentamos desconstruir e desnaturalizar diariamente. Quando outros aspectos também são desvelados como excludentes para nós mulheres, nas falas de Nicole Kidman, nos poemas de mulheres se espalhando na internet, na resistência dos grupos locais ou nas próprias insurgências diárias contra um modo de vida que nos oprime, a micropolítica revela seu poder.

Ainda há muito o que fazer, sabemos. Inclusive o conteúdo dos filmes é algo que também precisa ser discutido e criticado: dos nove indicados a categoria de Melhor Filme no Oscar de 2017, sete não passaram no teste de Bechdel. Entre eles está Lion – Uma Jornada para Casa, um filme estrelado por Nicole Kidman no papel da mãe adotiva do personagem principal. É assombroso que sete desses filmes não consigam cumprir três requisitos mínimos: possuir pelo menos duas personagens femininas, elas conversarem entre si, e a conversa não ser sobre homens.

A dimensão de luta que envolve nossa (sobre)vivência, como mulheres, é mais ou menos clara para cada uma de nós, marcadas pelas diferenças impostas pela classe, idade, etnia, etc. Quando sabemos que podemos contar umas com as outras, entretanto, fica um pouco mais fácil.

4 comentários

  1. texto maravilhoso, precisamos mesmo criar uma rede de apoio para gerar representatividade.
    somos mais de 50% do mundo e ainda estamos escondidas atrás da cortina.

    1. Oi, Tha
      Obrigada, fico feliz que gostou do texto!
      Super concordo, se não formos nós por nós mesmas, quem será?
      Bjs,
      Laura

Fechado para novos comentários.