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Vulcões iminentes: as personagens limítrofes de Elena Ferrante

Delia é uma mulher de 45 anos que vivencia uma crise de identidade após a perda da mãe: “Minha mãe se afogou na noite de 23 de maio, dia do meu aniversário”. Por conta disso, retorna a Nápoles, cidade onde cresceu e que agora parece um campo minado de lembranças dolorosas. Nos arredores do bairro e nos cantos do apartamento onde viveu, o passando avança sobre o presente. Tragada pelo embate entre fantasia e realidade, Delia se vê em busca de um acerto de contas com a mãe e também consigo mesma.

Olga tem 38 anos e vive em Turim. Quando o marido, com quem tem dois filhos pequenos, sai de casa para viver com uma moça vinte anos mais jovem, é assaltada por memórias e temores de infância: passa a ter experiências de delírios, como a companhia de uma espécie de fantasma, uma vizinha que conheceu quando era criança em Nápoles. Na ocasião, a “pobre coitada”, como era chamada no bairro, foi definhando aos poucos após ser abandonada pelo marido e terminou se afogando, como a mãe de Delia. Agora, Olga teme pelo seu destino, como se precisasse escapar não apenas de sua tragédia pessoal, mas de uma tragédia comum a todas as mulheres.

Leda tem 47 anos e mora em Florença. Quando as filhas, já crescidas, passam a viver com seu ex-marido no Canadá, a nova condição é experimentada com ambivalência: com a ausência dos afazeres diários que a maternidade lhe cobrava, Leda se sente livre pela primeira vez em muitos anos. Porém, ao tirar férias e viajar para uma cidadezinha na costa da Itália, fica obcecada por Nina e Elena, uma mãe com sua filha pequena, que observa na praia. Nápoles ressurge no dialeto falado por seus vizinhos de areia e em suas recordações de infância: “As coisas mais difíceis de falar são as as que nós mesmos não conseguimos entender”.

Elena, na maturidade, se surpreende com a notícia do desaparecimento da amiga de infância, Lila, que há três décadas vinha anunciando o desejo de fazê-lo. Não era o caso de morrer ou de fugir, nem de recomeçar com nova identidade em um lugar distante de Nápoles, cidade onde sempre havia vivido. Lila “queria volatizar-se, queria dissipar-se em cada célula, e que ninguém encontrasse o menor vestígio seu.”

Os parágrafos acima se referem, respectivamente, às protagonistas dos romances Um Amor Incômodo (1992), Dias de Abandono (2002), A Filha Perdida (2006) e a Tetralogia Napolitana (2011-2014), publicados pela autora italiana Elena Ferrante. As histórias de Ferrante são todas narradas em primeira pessoa, sempre por mulheres. Como as mulheres de Almodóvar, as personagens de Ferrante vivenciam, em momentos-limite, crises que podemos chamar como momentos de desorganização psíquica: caminham à beira do enlouquecimento, entre a existência e a inexistência.

Um ano depois de publicar A Filha Perdida, Ferrante lançou na Itália o livro infantil Uma Noite na Praia (2007). A narradora é uma boneca chamada Celina, esquecida na praia por sua “mãe”, Mati, uma menina de cinco anos. O livro faz par com o anterior, que também tem o desaparecimento de uma boneca como eixo central, assim como dialoga com a tetralogia e, de certo modo, com toda obra de Ferrante. Existem incontáveis camadas nos livros de Ferrante, o que permite que leitores com diferentes expectativas e experiências se identifiquem de diferentes maneiras. Isso explicaria parte do sucesso editorial que a colocou nas listas de livros mais vendidos em todo o mundo. Para James Wood, crítico literário e professor de literatura em Harvard, Ferrante parece não se intimidar pelas descompensações psíquicas, nem pela terrível e singular complexidade dos dramas familiares de suas protagonistas.

Nápoles, cenário recorrente de sua obra, é uma cidade italiana caótica, que fica em uma região vulcânica, aos pés do Vesúvio. Embora esteja adormecido desde a Segunda Guerra, há poucos meses ocupou os noticiários por conta de um incêndio. O Exército foi convocado para combater as chamas. Mas o vulcão responsável pela destruição de Pompéia é apenas um deles. Também os Campi Flegrei (Campos Flégreos), considerados como um único supervulcão, alarmam os cientistas. Abrangem mais de 10 km², incluindo parte da baía de Nápoles e, segundo os estudiosos, os Campos Flégreos são um território “com potencial de gerar catástrofes globais e extinção em massa”.  Há cerca de 40 mil anos, uma explosão no local alterou de maneira radical o clima da região. De acordo com os geólogos, esse teria sido o evento mais violento do gênero na Europa nos últimos 200 mil anos.

As mulheres de Ferrante, vulcânicas elas mesmas, vivem, portanto, à sombra de vulcões e também de abalos sísmicos. Quem leu o último volume da Tetralogia Napolitana sabe que uma passagem essencial do enredo se desdobra nesse contexto geológico, o terremoto de 1980. Entre a violência da natureza e a dos homens — Nápoles tem uma das máfias mais violentas da Itália, a Camorra —, sobrevivem tomadas pela constatação de perigo iminente. Em italiano, smarginature significa algo como desmarginação. De um lado, podemos pensar em desmarginação como sinônimo de desintegração, perigo de inexistência. De outro, em desconfinamento: a possibilidade de reconstruir sua própria existência.

O que determina que uma experiência psíquica seja percebida como transtorno mental é o contexto cultural em que está inserida. O que definiria uma experiência de “perda de contornos” como patológica, se não a própria cultura? Aqui, recorro a Foucault em Doença Mental e Psicologia (1954): “a doença só tem realidade e valor de doença no interior de uma cultura que a reconhece como tal”. Para Olga, em Dias de Abandono, a ameaça de perda dos contornos significa se misturar a seu passado, à “pobre coitada” — e também à ideia de um destino comum a todas as mulheres, de modo indiscriminado: “As mulheres sem amor dissipavam à luz dos olhos, as mulheres sem amor morriam vivendo”, nas palavras da mãe de Olga, que lhe retornam à memória. Perder os seus contornos significaria deixar de ser Olga, diluindo-se e se desintegrando em todas essas figuras.

De outro lado, poderíamos pensar na perda dos contornos de Olga como a possibilidade de conquistar uma nova forma. Tal qual G.H., personagem de Clarice Lispector, reflete no romance-monólogo A Paixão Segundo G.H., elogiado por Ferrante. Nesse sentido, deformar-se pode ser lido como uma experiência de resistência e de enriquecimento, que garante a conquista de uma nova posição subjetiva.

“(…) já que fatalmente sucumbirei à necessidade de forma que vem de meu pavor de ficar indelimitada — então que pelo menos eu tenha a coragem de deixar que essa forma se forme sozinha como uma crosta que por si mesma endurece, a nebulosa de fogo que se esfria em terra. E que eu tenha a grande coragem de resistir à tentação de inventar uma forma.”


** A arte em destaque é de autoria de Alesandra Waliszewska.

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5 comentários

  1. ótima reflexão, obrigada por compartilhar… só me falta ler o “Um amor incômodo”, estou guardando pra algum momento especial 🙂 curiosidade: essa frase final é da ferrante autora ou de algum dos livros? obrigada

  2. oi Fabiane, ótimo texto! e chegou num momento tão preciso para mim 🙂
    após ler todas as obras da Ferrante publicadas no Brasil (só me falta o “Frantumaglia” que aguardo ansiosamente pela entrega), fiquei tão desolada pela ausência da escrita dela, que tentei pensar em autoras de certa forma semelhantes e intuitivamente me veio Clarice à mente.
    peguei então “A Paixão Segundo G.H.” que esteve na minha estante por anos e nunca levei a leitura a cabo. fiquei impressionada com a semelhança das personagens, com a ideia de desmarginação/desintegração/deformação.
    estive nos últimos dias no meio dessa “descoberta” e então me deparo com esse seu texto 🙂
    e a Ferrante já elogiou publicamente este livro da Clarice? onde encontro essa citação?
    se tiver também indicações de estudos sobre o cruzamentos das ideias nas escritas dessas duas autoras, te agradeço imensamente.

    1. Oi, Manuelle. Tudo bem? Obrigada pelo comentário e desculpe pela demora na resposta. Só hoje, por acaso, vi a sua mensagem. Que pena.

      Quanto à sua pergunta, a Ferrante mencionou a Clarice, sim, em mais de uma entrevista, de maneira elogiosa. Falou especificamente de “A Paixão Segundo G.H.”, que considera extraordinário (palavra dela, tradução minha). Infelizmente, foi apenas uma referência breve, sem mais detalhes, então é só o que temos. Mas se quiser continuar essa conversa, será um prazer. Meu e-mail é fabianesecches@gmail.com, fique à vontade para me escrever. Um abraço.

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