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A pele que nós habitamos

Pedro Almodóvar sabe muito bem como fazer alguns filmes bem perturbadores — A Pele que Habito é um deles, com direito a estrelinha dourada, e dá margem a muitas reflexões interessantes.

AVISO DE GATILHO: esse texto fala sobre estupro!

Atenção: este texto contém spoilers!

O filme, inspirado no livro Tarântula, de Thierry Jonquet, conta a história de Robert Ledgard (Antonio Banderas), cientista obcecado com a ideia de recriar a pele humana em laboratório. Quando a filha Norma (Bianca Suárez) se suicida após ter sido estuprada, Robert sequestra o estuprador, Vicente (Jan Cornet), e o usa de cobaia, fazendo nele uma série de cirurgias plásticas contra sua vontade. Passa então a manter Vera (Elena Anaya) — Vicente após a transformação — em cativeiro como escravo sexual.

Como todos os filmes do Almodóvar que vi até hoje, a produção é maravilhosa. O filme como um todo tem um ar sóbrio e distante, que não diminui o choque quando descobrimos a verdade sobre a identidade de Vera.

A Pele que Habito

Obviamente, a motivação de Robert ao sequestrar Vicente e usá-lo como cobaia para seus experimentos é vingança pela morte da filha. Mas não podemos ignorar o fato de que a parte mais chocante de todo o processo é ele ter transformado o corpo de Vicente em um corpo feminino. Qual seria a necessidade real disso, se o simples fato de realizar experiências científicas no corpo de uma pessoa já poderia ser considerado uma vingança especialmente cruel?

Além das claras perturbações mentais de Robert, é possível argumentar que ele queria cobrar de Vicente na mesma moeda o que ele tinha feito a Norma. É algo que vemos todos os dias na vida real, quando desejamos que estupradores sejam mandados para a cadeia e “virem mulherzinha” na mão de outros presos.

A lição que tiramos do filme e da vida é a mesma: ser mulher é um castigo, ser mulher é punição, ser mulher é violência. Ser mulher significa que você vai ser estuprado. E estupro é um castigo válido. Essa ideia é doentia e só prejudica a situação de todas nós, além de criar mais estupradores.

Na hora da raiva, tendemos a pensar que homens que estupram merecem ser estuprados, quando a realidade é que ninguém merece ser estuprado. Eu não acho que esses homens mereçam nada de bom, mas aceitar o estupro como um castigo válido é perpetuar a mentalidade que faz com que mulheres e outros grupos que divergem da heteronormatividade vigente permaneçam vulneráveis a serem estuprados porque algum homem em algum lugar achou que eles mereceram. Isso é estupro punitivo, isso é a cultura do estupro (da qual você provavelmente ouviu falar em algum lugar nos últimos meses).

A Pele que Habito

No filme, a transformação do corpo contra a vontade do sujeito é “apenas” mais uma das formas de vingança usadas por Robert, mas na vida real é algo muito simbólico e representativo. A inserção do personagem Vicente no mundo feminino tira ele da posição de dono do mundo, sujeito com autonomia e autoridade sobre o próprio corpo e o das mulheres, e coloca-o no grupo de pessoas que não têm plena autonomia nem sobre si mesmo.

Em seguida vem o estupro. Estupro não é sobre sexo, é sobre poder (motivo pelo qual a castração química não é uma “solução” eficiente) — e tudo o que Robert faz a Vicente desde o momento em que o sequestra tem justamente esse mesmo objetivo: subjugar completamente e provar sua autoridade suprema de vida e morte sobre o outro. Um comportamento tipicamente masculino.

Essa falta de autonomia feminina vai muito além da prática de atos com seu corpo sem seu consentimento expresso (já pensaram que furar a orelha da sua filha bebê pode fazer parte da cultura do estupro também?), e torna necessário refletir sobre o contexto em que a maior parte do nosso consentimento é dado. Sexo por obrigação, depilação, cirurgias plásticas.

No caso das intervenções estéticas, a única diferença entre o caso de Vicente e o de todas as outras mulheres em todos os dias de nossas vidas é que nós acreditamos realmente que fazemos tudo isso por vontade própria. Mas pensando friamente, quem escolhe livremente sentir a dor de dezenas de pelos sendo arrancados simultaneamente da pele pela raiz? Quem escolhe livremente investir tempo e dinheiro preciosos para se encaixar em um molde de feminilidade que não é humano? Quem escolhe livremente ter os ossos do nariz estraçalhados e passar por um processo de recuperação incrivelmente doloroso para se encaixar em um modelo de beleza que é absolutamente inatingível?

Ninguém escolhe essas coisas, mas a gente segue achando que sim.

A Pele que Habito

Não é só por ser mais uma forma bizarra de vingança que Vicente é transformado em mulher. O corpo de Vicente é transformado em feminino porque essa foi a única forma que restou de colocá-lo em uma posição essencialmente feminina — podada, construída, subjugada. Uma posição que eu nunca vi ser ocupada — na ficção ou na realidade — por nenhum homem.

A Pele que Habito é um filme envolvente, instigante e perturbador (não consigo descrever o filme sem repetir essa palavra à exaustão), e também é um prato cheio para algumas reflexões sobre a nossa realidade. É um filme que faz uso de uma trama elaborada para trazer à luz o que a construção da feminilidade realmente é: uma violência.

4 comentários

  1. Uau. Nunca assisti esse filme, mas com certeza ele será o próximo que assistirei.
    Sua análise sobre o mesmo foi incrível, e realmente a cultura do estupro não está presente só no “ato” em si, mas também nas pequenas (e grandes) decisões que tomamos todos os dias pensando que é normal. Como o que você citou o furo da orelha do neném.
    Muito bom seu texto.

  2. Só uma correção: a filha dele não se suicida, ela está internada. Quem se matou foi a mulher dele.

  3. Tamires Felipe, a filha dele se suicida pulando da janela do hospital. Não vemos a cena, mas vemos Robert no enterro. Acho q vc não entendeu aquela cena ou não prestou atenção. Assista novamente.

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