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Paradise Kiss: uma jornada de descobertas

Em um primeiro momento, Paradise Kiss, mangá de Ai Yazawa, pode parecer ser apenas mais uma história de garota encontra garoto mas, quando você lê os cinco volumes, descobre que o enredo é muito mais do que isso.

Yukari Hayasaka, uma adolescente japonesa às voltas com a pressão da mãe para ir bem no colégio e nos exames de admissão da faculdade, esbarra um dia com um grupo de estudantes da Escola de Artes Yazawa. O quarteto praticamente implora à moça para que ela seja modelo em um desfile de moda que acontecerá em breve e Yukari, assustada com a vivacidade e estranheza do grupo, recusa firmemente o convite. Mesmo assim, a semente da curiosidade estava plantada: desse encontro inesperado, surgem inúmeros questionamentos na cabeça de Yukari visto que, até o momento, ela não conhecia outra coisa na vida que não fossem os estudos e as notas que precisava tirar para, de acordo com sua mãe, ser bem sucedida no futuro.

O grupo que ela encontra na rua, logo no comecinho do mangá, é composto por quatro estudantes de moda que não poderiam ser mais diferentes de Yukari. Enquanto ela não esperava muito da vida além da próxima prova do colégio, o quarteto possui sonhos e ambições que mostram a Yukari uma existência totalmente nova. Do líder do grupo, George Koizumi, carismático e egocêntrico, à Miwako Sakurada, delicada e gentil, à Isabella Yamamoto, a mulher transgênero e maternal, e Arashi Nagase, com seu jeito punk e rebelde, todos contribuem de uma maneira ou outra para o crescimento e “libertação” de Yukari da vida que ela tinha como sua única alternativa.

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Que Ai Yazawa é talentosa e sabe como ninguém destrinchar a alma de seus personagens todo mundo sabe — e NANA está aí para provar isso muito bem —, então não é surpresa dizer que o mesmo acontece em Paradise Kiss (que, a rigor, foi lançado antes de NANA, mas isso é mero detalhe aqui). O que quero dizer é que mesmo uma história tão banal quanto o famigerado “garota encontra garoto e sua vida muda completamente” adquire uma dimensão muito maior quando trabalhada por Yazawa. A trama se transforma em um apanhado de momentos difíceis com pitadas de drama enquanto os personagens tentam descobrir como navegar do final da adolescência para a vida adulta sem causar muitos danos no caminho. Em Paradise Kiss acompanhamos os conflitos de Yukari, os questionamentos e dúvidas que passam por sua cabeça enquanto embarca em um relacionamento amoroso que não estava em seus planos e tem que tomar decisões sobre um futuro que ela sequer imaginava ser possível.

Muitas meninas podem se identificar com Yukari: sofrendo uma pressão enorme para ser bem sucedida — o que é ainda mais intenso se você é um jovem japonês —, Yukari passa todos os seus dias mergulhada em livros, cadernos e notas. Ela vai à escola pela manhã, estuda à noite e passa seus finais de semanas e feriados na biblioteca. Durante toda sua vida Yukari sofreu com a pressão que sua mãe colocou sobre ela, forçando a filha a entrar em escolas de elite, se esforçando para estudar e conseguir se manter pelo menos na média da turma — o que sempre foi uma tarefa difícil para Yukari. Sobrecarregada com a pressão de ser perfeita, inteligente e tirar boas notas, Yukari nunca teve tempo para ler por diversão, assistir filmes, ficar no vídeo game. Sua vida inteira foi dedicada aos estudos, a atingir a excelência que sua mãe desejava. Por isso, quando se depara com o grupo de estilistas que se denomina Paradise Kiss — daí o nome do mangá — Yukari percebe que existe um mundo inteiramente novo ao seu dispor.

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Os quatro integrantes do grupo — George, Miwako, Isabella e Arashi — são diferentes de todas as pessoas que Yukari conhece. Eles pintam os cabelos de cores diferentes — Mikawo tem os cabelos cor-de-rosa chiclete e George, azuis —, se vestem espalhafatosamente para os padrões com os quais Yukari está acostumada, são tatuados, se maquiam de maneiras pouco ortodoxas. Eles conversam livremente sobre sexo, gênero e sexualidade. As atitudes do quarteto se chocam fortemente com a criação tradicional que Yukari recebeu em casa e ela declina o convite para ser modelo do grupo de maneira pouco cortês e com ar condescendente, dizendo não ter tempo para brincadeiras visto que está estudando para o vestibular. E é aí que ela toma o primeiro choque de realidade quando Arashi diz que o fato de Yukari estudar para o vestibular não a faz melhor do que ninguém.

É apenas quando George se aproxima que Yukari é convencida a participar do desfile como modelo do grupo — mas só depois de compreender que o que move George em tudo o que faz é a paixão por criar. Yukari até então desconhecia esse tipo de sentimento, de ser movida a fazer coisas simplesmente por amor, e fica fascinada com a maneira como George trabalha. Sua vida, até então levada no piloto automático entre aulas e revisões, se transforma ao se deixar entrar no mundo colorido que o Paradise Kiss oferece. Yukari não se apaixona por George apenas por sua beleza ou ares de dândi, mas se apaixona exatamente por conta de sua paixão por criar. Yukari se apaixona por George porque ele a escuta, ele se preocupa.

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Mas é claro que nem tudo são flores nesse novo mundo.

Yukari e George começam a se relacionar romanticamente e o que nasce entre eles não é um namoro dos mais saudáveis. É um relacionamento difícil, emocional, tenso e com altas doses de drama, manipulação e ciúme. Embora não seja o tipo de relacionamento ideal, Yazawa soube amarrar muito bem os altos e baixos de um casal disfuncional, jamais exaltando-o como exemplo ou ideal a ser conquistado. Fica claro desde o início que George e Yukari se amam, porém acabam por serem tóxicos um para o outro. Os dois brigam frequentemente por coisas bobas, ambos são imaturos, emocionalmente danificados e não sabem muito bem como se portar. Há amor, claro que há, e aí é que está a beleza da obra de Yazawa: nem todos os primeiros amores são cheios de arco-íris e borboletas, e fica claro que esse é o caso de Yukari e George. Apesar do rapaz a definir como sua musa — basicamente todas as criações de George enquanto estilista são pensadas para Yuraki —, isso não é algo que ela queira para si.

Mesmo que tenha sido George o responsável, em termos, pela mudança que se seguiria na vida de Yukari, não dá para deixar todo o crédito na conta dele. Apesar de George ter ouvido e incentivado Yukari em seus momentos de dúvidas e incertezas, foi a moça quem decidiu, sozinha, a lutar pelo controle da própria vida. É ela quem decide sair de casa e deixar os estudos de lado, rompendo momentaneamente com a mãe, e seguindo carreira de modelo. Foi ela quem se hospedou na casa de Arashi enquanto tentava entender o que fazer em seguida no lugar de correr para o colo do namorado. George pode ter, sim, aberto os olhos de Yukari sobre o valor da vida dela e o quanto ela poderia ser feliz se ao menos tentasse, mas todas as mudanças que se seguiram vieram por conta unicamente dos seus próprios esforços.

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E esse é um ponto de virada importante na vida de Yukari. Ela não quer mais seguir cegamente os desejos de sua mãe ou tentar ser aquilo que George espera dela. Antes de qualquer coisa, Yukari quer ser quem ela quiser ser. Após todo o sofrimentos, altos e baixos, crises e indecisões, ela aceita e compreende que, primeiro, tem que ser feliz por si mesma. E, por esses e tantos motivos, Paradise Kiss é um ótimo mangá para se ler naquele interlúdio bizarro entre adolescência e vida adulta. Seus problemas podem parecer enormes e sem solução, mas respirar fundo e tentar entender a si, antes de tentar conquistar o mundo, faz toda a diferença. Ao se libertar de rédeas de sua mãe, ao ficar no Japão enquanto George parte para França para estudar alta costura, Yukari se encontra.

Yukari conseguiu construir para si um mundo em que ela é mais do que os outros precisam ou querem que ela seja, um mundo onde ela decide o que fazer, o que quer ser. Não há lição mais preciosa do que essa — e Ai Yazawa, como sempre, nos entrega esse presente embrulhado em um mangá desenhado belamente, rico em detalhes e personagens e que, a exemplo de NANA, ficará comigo para sempre.


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2 comentários

  1. Cara Thay, tava justamente relendo ParaKiss recentemente! Na verdade me irritou um pouco que o George tem que dar o ponta pé na Yukari falando que não queria decidir a vida dela por ela, como você mesmo comenta o relacionamento deles não é ideal e achei ele muito grosso e sem dar suporte pra ela, tipo é claro que ele não devia decidir por ela mas foi meio desnecessauro hahaha
    Enfim, pelo menos esse pontapé serve pra Yukari se libertar e começar a trilhar seu próprio caminho, é normal que alguem que vivesse tão dentro da caixinha tivesse dificuldade de se tornar independente e nesse ponto o psicológico dos personagens é super bem trabalhado!

    <3

    1. Releio de tempos em tempos, é um dos meus mangás favoritos! E sendo tão curtinho fica ainda mais tranquilo de matar as saudades. E, verdade, o comportamento do George é horrível em muitos momentos, mas é bem isso que você falou: Yukari veio de uma criação muito tradicional e fechada, ela realmente precisava de um empurrão para conseguir sair do casulo em que vivia. (:

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