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Para (sempre) ler Mulheres Negras

O caminho para ter um livro publicado e lido é longo e tortuoso. Não é nada fácil tirar um manuscrito da gaveta e levá-lo para as prateleiras das livrarias. Se você é uma escritora negra, esse processo é ainda mais longo, ainda mais tortuoso. Para conquistar o reconhecimento, então, o caminho é ainda mais comprido.

Uma análise dos vencedores do Prêmio Jabuti, principal premiação literária brasileira, feita pelo blog da Estante Virtual, é um bom exemplo disso na prática. Dos 84 autores premiados ao longo dos 60 anos de história do Jabuti na categoria romance, apenas 19,9% são mulheres. Nenhuma delas negra. Em 115 anos de prêmio Nobel de Literatura, 13 mulheres. 1 mulher negra. Quando a gente fala de movimentos como o Leia Mulheres e, mais atualmente, seu braço Leia Mulheres Negras, entendemos que é nossa responsabilidade buscar por essas vozes, já que estampados em nossa cara e ocupando os espaços das principais prateleiras das livrarias o que mais vemos são aquela conhecida instituição homem branco.

Se você acha que lê de tudo e que sua parte na promoção da igualdade literária está em não rotular suas leituras dessa forma e sim pegar uma sinopse que te interesse, pare para repensar nos seus livros lidos do ano. Tem muito mais homens que mulheres? Muito mais brancos que negros? Então sentimos jogar a realidade na sua cara: você só acha que está escolhendo e, enquanto isso, tem muito peixe grande fazendo essas escolhas por você.

Tudo bem você gostar das sinopses e se interessar por um monte de livros de homem branco, mas a gente duvida que você tem essa mesma variedade de histórias à disposição quando elas são escritas por mulheres, ainda por cima, negras. Para dar o impulso que faltava ou, quem sabe, te ajudar a dar mais checks em sua listinha, seguem 10 sugestões de livros produzidos por escritoras negras de diferentes origens e que trazem, também, diferentes propostas de narrativa e de história. Boa leitura!

O Caminho de Casa, por Yaa Gyasi

“Nós acreditamos na história de quem detém o poder. É ele que acaba escrevendo a história. Por isso, quando se estuda História, é preciso sempre fazer perguntas. Que história não está sendo contada? De quem é a voz que foi reprimida para que essa voz pudesse se fazer ouvir?”

Yaa Gyasi nasceu em Gana e se mudou ainda pequena para os Estados Unidos. Ao retornar ao seu país, já adulta, conheceu o Castelo da Costa do Cabo de Gana, onde escravos eram mantidos prisioneiros. Foi daí que veio a ideia de seu incrível romance de estreia, O Caminho de Casa, onde ela propõe uma incrível história geracional que se origina de duas irmãs que nunca se conheceram e acabaram separadas definitivamente pelo tráfico negreiro. Uma delas ficou na África e casou com um inglês, enquanto a outra foi escravizada pelo mesmo inglês e trancafiada no porão da casa. Uma delas no quarto, uma no porão, tão próximas e absolutamente distantes. A partir daí, cada capítulo nos traz uma geração de cada uma delas e o leitor dá de cara com um panorama da história dos negros, desde o início da escravidão até às desigualdades enfrentadas na sociedade atual. Yaa, muito rainha e confrontando o trecho de seu próprio livro que foi citado acima, resolve usar sua voz e fazer sua história ser ouvida. — Compre! 

O Ódio Que Você Semeia, por Angie Thomas

“— Ter coragem não quer dizer que você não esteja com medo, Starr — diz ela. — Quer dizer que você segue em frente apesar de estar com medo. E você está fazendo isso.

Ela se inclina nas pontas dos pés e beija minha testa, como se isso tornasse tudo verdade. Para mim, meio que torna.”

O universo da literatura young adult é maravilhoso e O Ódio Que Você Semeia é um dos melhores exemplos da categoria. Em seu livro, Angie Thomas conta a história de Starr, uma adolescente que vive duas vidas: uma no seu colégio particular frequentado majoritariamente por pessoas brancas e ricas; outra no bairro periférico em que mora, povoado principalmente por pessoas negras. A narrativa é desenvolvida a partir da cena fortíssima em que Starr e seu amigo Khalil são parados pela polícia enquanto voltam para casa de carro e Khalil é morto por um policial. A partir daí, tudo muda na vida de Starr, desde suas relações no bairro até seu comportamento no colégio, onde ela começa a questionar todo o equilíbrio que mantinha de ser uma pessoa negra vivendo em meio a pessoas brancas que têm uma outra realidade. É uma história super bem construída que traz para o palco da literatura dedicada ao público jovem elementos que devem ser debatidos desde cedo — racismo, identidade, desigualdade social, direitos humanos. — Compre! 

Kindred: Laços de Sangue, por Octavia E. Butler

“Eu era a pior guardiã possível que ele podia ter, uma negra para cuidar dele em uma sociedade que via os negros como sub-humanos, uma mulher para cuidar dele em uma sociedade que via as mulheres como eternas incapazes. Eu teria que fazer tudo o que pudesse para cuidar de mim mesma.”

“Eu resolvi escrever sobre o poder porque era algo que eu tinha bem pouco”. Octavia E. Butler nos fez contrariar o protocolo ao registrar essas duas citações, mas é a segunda é a epígrafe que abre o livro e não tem como falar da autora sem falar sobre isso. Em Kindred: Laços de Sangue, que foi publicado em 1979 e trazido ao Brasil pela primeira vez uma eternidade depois, ela nos apresenta Dana, uma mulher negra que vive nos Estados Unidos da década de 1970. Ela leva uma vida normal, recém casada com Kevin, um homem branco, quando, de repente, volta no tempo sem que tenha nenhum controle sobre isso e descobre que sua missão nessas idas ao passado é cuidar de Rufus, que ela descobre ser seu antepassado. Se ele morrer jovem, ela não vai existir. Mas ele é um menino branco, filho de um senhor de escravos e, ao se encontrar nesse contexto, Dana não passa de um punhado de lixo. Da primeira vez que ajuda o menino, acaba sendo ameaçada: quem era essa negra estranha perto da criança? A medida que os anos passam, suas idas ao passado se tornam mais frequentes e seus retornos muito mais complexo, acompanhamos a terrível jornada de uma mulher negra em uma época onde mulheres significavam muito pouco e negros não significavam nada. — Compre! 

No Seu Pescoço, por Chimamanda Ngozi Adichie

“Ele estava no último ano da universidade estadual. Disse quantos anos tinha e você perguntou por que ele ainda não havia se formado. Ali eram os Estados Unidos, afinal de contas, não era como na Nigéria, onde as universidades fechavam com tanta frequência que as pessoas acrescentavam três anos ao tempo normal de curso e os professores faziam greve após greve, mas mesmo assim não recebiam. Ele respondeu que tinha tirado dois anos de férias para se encontrar e viajar, quase sempre para a África e a Ásia. Você perguntou onde ele acabou se encontrando e ele riu. Você não riu. Você não sabia que as pessoas podiam simplesmente escolher não estudar, que as pessoas podiam mandar na vida. Você estava acostumada a aceitar o que a vida dava, a escrever o que a vida ditava.”

Quando pegamos um livro de contos para ler, já é de praxe que nem todos os textos que compõem a obra sejam igualmente bons. Chimamanda Ngozi Adichie está aí para mostrar que essa é uma expectativa triste e descabida: todos os contos de No Seu Pescoço são incríveis. A escritora nigeriana, já famosa por seus romances, acertou em cheio na composição desta que é a sua obra mais recente. São doze contos que trazem cenários e personagens diversos, com formatos de narrativa e linguagens que também diferem. Mas, as temáticas das histórias fazem com que a obra seja uma unidade muito bem amarrada. Nos contos, Chimamanda faz um retrato da imigração de pessoas do continente africano para os Estados Unidos, de questões religiosas e de preconceito racial, assuntos que são também muito bem trabalhados nos três romances já publicados da autora. Apesar das narrativas curtas, o impacto de No seu pescoço não é menor e somos levados a sair da caixinha a cada história. — Compre! 

A Mulher de Pés Descalços, por Scholastique Mukasonga

“E me parecia que, se eu pudesse chegar mais perto dos pés da Haute-Volta, também poderia ler as idades do mundo e remontar, de geração em geração, até chegar à mulher que foi a primeira e que, com as costas encurvadas e uma enxada nas mãos, abriu a terra vermelha da África. Mas eu era jovem e tinha muito medo. Olhei para os meus próprios pés e os sapatos de salto alto que Immaculée, minha amiga, tinha me dado em Kigali e percebi, com alívio, que meus pés ainda podiam entrar neles. Mas talvez agora eu possa beijar os pés de Haute-Volta e, certamente, os da minha mãe, os pés dessas amas de leite que têm a África como filho.”

As obras de Scholastique Mukasonga são uma mortalha de papel para aqueles que não têm sepultura. Essa é a primeira frase da quarta capa de A Mulher de Pés Descalços, um romance de auto-ficção escrito pela autora ruandesa em homenagem à sua mãe Stefania, assassinada pelos hutus durante a guerra civil do país. As vivências da autora e seus toques ficcionais nos oferecem um texto forte e cru, que mescla as cotidianices da vida com as terríveis imagens de medo e sofrimento advindas da guerra de etnias. Com a obra, Mukasonga não só oferece uma lápide digna para sua mãe, mas uma homenagem à força de todas as mulheres de pés descalços que levam todo um continente em suas costas. — Compre! 

Ponciá Vicêncio, por Conceição Evaristo

“O homem de Ponciá Vicêncio remexeu na cama. O movimento dele foi até ao fundo do estado de torpor a que Ponciá estava entregue, despertando-a de seus pensamentos-lembranças. Ele, ao lado dela, ressonava tranquilo, como se estivesse com a vida resolvida. Deus meu, será que o homem não desejava mais nada? Para ele bastava o barraco, a comida posta na lata de goiabada vazia? O pó, a poeira das construções civis, o gole de pinga nos finais de semana? O papo rápido com os amigos? Será que só isso bastava?”

Ponciá Vicêncio é uma desses romances que lemos em um só fôlego e, ao terminar, é como se tivéssemos somado um mundo inteiro a tudo que já carregamos na vida. A história tem como protagonista Ponciá, uma mulher que sai do interior para viver na cidade grande. A narrativa intercala memórias da infância de Ponciá, a vida de seus familiares (principalmente a mãe e o irmão, mas também com lembranças marcantes do avô) e seus pensamentos mais íntimos, pautando temas como pobreza, desigualdade social, racismo e herança cultural, e tecendo uma obra forte, sensível e poética. Conceição Evaristo se tornou um nome ilustre na literatura brasileira. Nascida em uma favela da zona sul de Belo Horizonte, a escritora tem uma trajetória de luta constante para ser publicada e lida em um mercado que dá pouco espaço para mulheres negras e periféricas. Vivendo no Rio de Janeiro, Conceição Evaristo construiu uma carreira acadêmica nas Letras, e hoje é doutora em Literatura Comparada pela UFF, além de ser reconhecida por importantes prêmios literários, ter suas obras traduzidas para diversos idiomas e ser adotada em listas de leituras para provas de vestibular. E sua luta continua ativa. — Compre! 

Quarto de Despejo, por Carolina Maria de Jesus

“O tenente interessou-se pela educação dos meus filhos. Disse-me que favela é um ambiente propenso, que as pessoas têm mais possibilidades de delinquir do que tornar-se útil à pátria e ao país. Pensei: se ele sabe disto, porque não faz um relatório e envia para os políticos? O senhor Jânio Quadros, o Kubstchek e o Dr. Adhemar de Barros? Agora falar para mim, que sou pobre lixeira. Não posso nem resolver as minhas dificuldades… O Brasil precisa ser dirigido por uma pessoa que já passou fome. A fome também é professora. Quem passa fome aprende a pensar no próximo e nas crianças.”

Para quem já está totalmente mergulhado na bolha da representatividade e da desconstrução, indicar Carolina Maria de Jesus e seu Quarto de Despejo parece ser chover no molhado — mas a gente não vai desistir, porque infelizmente para a maioria das pessoas essa obra é apenas uma ilustre desconhecida. Retornando à boca do povo no ano passado, quando foi escolhida como obra de literatura dos vestibulares da Unicamp e da UFRGS, a voz de Carolina começou a reverberar novamente — nunca devia ter parado, porque infelizmente a realidade que ela retrata nunca parou de se alastrar. Com o subtítulo diretíssimo de o diário de uma favelada, o livro é exatamente o que se propõe a ser: um diário de Carolina, catadora de papel, moradora da favela de Canindé em São Paulo e mãe de 3 filhos, editado entre 1955 e 1960. Através de seus escritos, ela ressignifica o papel, tão presente em sua vida, utilizando-o como um objeto de poder social: através dele, ela ameaçava todos os que cruzavam seu caminho, dizendo que se não andassem na linha iriam parar no diário e que um dia ele seria publicado. Foi, e lê-lo é encarar um retrato falado da pobreza e da fome, bem como de problemas mais “abstratos”, por assim dizer, como questões relacionadas a gênero e raça. Devia ser leitura obrigatória para todos aqueles que nunca passaram fome na vida e que, portanto, precisam de outro instrumento de realidade para aprender a pensar no próximo. — Compre! 

Assim na Terra Como Embaixo da Terra, por Ana Paula Maia

“Valdênio é velho para um lugar como este. Tem sessenta e cinco anos. Passou a metade da vida encarcerado, atrás de grades de ferro ou em colônias penais como esta, fazendo todo tipo de trabalho. Já deveria estar solto, mas a Justiça o mantém neste lugar. Agora, espera nunca encontrar a liberdade em vida, pois já não há quem espere por ele do lado de fora dos muros. O mundo mudou, e ele também, mas não na mesma sintonia. Valdênio tornou-se mais velho, doente e não muito mais esperto. O mundo recrudesceu. Ser jogado para fora dos muros seria para ele entrar num outro confinamento de sobrevivência e resistência que já não pode mais replicar.”

Ana Paula Maia acabou de receber o renomado Prêmio São Paulo de Literatura por Assim Na Terra Como Embaixo na Terra, romance publicado em 2017. Em um momento em que a discussão sobre direitos humanos, justiça e cargos de poder são tão imensamente necessárias, esse reconhecimento da obra é muito mais do que bem vindo. No livro, Ana Paula Maia destrincha a história de homens encarcerados em uma colônia penal situada no meio do nada, construindo uma obra cheia de violência e jogos de poder. A narrativa coloca os personagens de dois lados: em um, os prisioneiros, todos condenados por crimes como estupro ou assassinato; do outro, o diretor da colônia penal, um homem enlouquecido pelo poder que começa a caçar e matar os homens aprisionados como se fossem animais. A história é forte e a linguagem cinematográfica da autora fazem com que o leitor seja capaz de visualizar tudo em detalhes, o que aumenta o impacto e faz perceber que essa é uma ficção perigosamente próxima do que já é realidade. – Compre! 

As Alegrias da Maternidade, por Buchi Emecheta

“Sou uma prisioneira de minha própria carne e de meu próprio sangue. Será que essa é uma posição tão invejável assim? Os homens nos fazem acreditar que precisamos desejar filhos ou morrer. Foi por isso que quando perdi meu primeiro filho eu quis a morte, porque não fora capaz de corresponder ao modelo esperado de mim pelos homens de minha vida, meu pai e meu marido, e agora tenho que incluir também meus filhos. Mas quem foi que escreveu a lei que nos proíbe de investir nossas esperanças em nossas filhas? Nós, mulheres, corroboramos com essa lei mais que ninguém. Enquanto não mudarmos isso, este mundo continuará sendo um mundo de homens, mundo esse que as mulheres sempre ajudarão a construir.”

2017 foi o ano do falecimento de Buchi Emecheta — e também o ano da primeira vez em que ela foi publicada no Brasil, por indicação de sua conterrânea Chimamanda Ngozi Adichie para a TAG Experiências Literárias em parceria com a editora Dublinense, que agora em novembro trouxe o romance para o público geral. Nele, acompanhamos Nnu Ego, filha de um grande líder de um povoado nigeriano, é enviada para a capital como esposa de um homem também poderoso. Para se tornar uma “mulher completa”, Nnu precisa engravidar e dar um herdeiro a seu marido, honrando o nome e o sangue de sua família. Ela enfrenta dificuldades para conceber e a pressão é enorme. Quando consegue, a situação não fica mais fácil; ela precisa dar conta de criar, educar e sustentar seus filhos — os meninos, para irem à faculdade e se tornarem grandes homens; as meninas para se casarem e renderem um bom dote para que a faculdade dos meninos seja paga. Retratando idas e vindas entre o vilarejo e a capital, entre as tradições da etnia igbo e a influência colonizadora em Lagos, ela só quer garantir a integridade de sua família. Quando tem um tempinho no meio disso tudo, consegue refletir sobre a situação da mulher nessa sociedade e se indignar com o mundo que se reserva para suas filhas. Talvez a maternidade não seja tão alegre assim. — Compre! 

Esse Cabelo, por Djaimilia Pereira de Almeida

“Tinha o cabelo curto e via-me em casa no dia em que acordei com saudades de mim, mas saudades do que nunca fora, de duas ou três ruas de Luanda, de um estereótipo: saudades, meu Deus, de uma caricatura da pessoa que eu poderia ter sido, um exotismo. Acerca dessa Mila que não existe, a pessoa que vim a tornar-me tem uma imaginação vedada por uma ignorância exasperante a respeito de África.”

Em um mundo em que falar de cabelo ainda é algo encarado como uma futilidade, Djaimilia Pereira de Almeida surge com um livro que tem a proposta de quebrar de vez esse paradigma. Em Esse Cabelo a autora faz uma reflexão sobre raça, gênero e descoberta de identidade sempre pautada nos cabelos crespos da protagonista e narradora, e fica evidente que essa relação está muito longe de ser fútil. Ao longo do livro, a autora conta a história de Mila, uma mulher que vai entendendo seu cabelo crespo e sua identidade aos poucos, enquanto vai revelando fatos que deixam o leitor saber mais de sua vida. Djaimilia é angolana nascida em Luanda, mas cresceu e viveu em Portugal, e é essa experiência que é refletida nas páginas do livro, incorporando diversos elementos autobiográficos que dão à história uma voz próxima e natural. Apesar de apontar para assuntos que despertam questões sérias e complexas, a linguagem da autora é muito bem humorada, o que deixa a leitura rápida e gostosa. — Compre! 

Texto escrito em parceria por Analu e Karina.


** A arte em destaque é de autoria da editora Ana Luíza. Para ver mais, clique aqui!
** A arte do banner é de autoria da artista Raquel Gouvea.