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Os Números do Amor e a vulnerabilidade do amor neurodivergente

Em julho de 1990 estreou nos cinemas um dos maiores clássicos das comédias românticas e conto de fadas moderno: Uma Linda Mulher. Por meio do romance entre a prostituta Vivian, vivida por Julia Roberts, e do executivo Edward, interpretado pro Richard Gere — acompanhados da clássica música tema “Pretty Woman” —, o filme conquistou milhares de mulheres pelo mundo e se consagrou como um chick lit queridinho de diversas faixas etárias, de acordo com a lista The 55 Best Movies for Girls’ Night (“Os 55 Melhores Filmes para Noite das Meninas” em tradução literal) da Marie Claire.

A história de amor de Vivian, contratada para acompanhar Edward durante uma semana de eventos sociais, é cheia de charme e carisma e, mesmo envelhecendo cada vez pior ao longo dos anos — como explicado no vídeo “Toxic Takeaways — Pretty Woman’s Ugly Lessons” do canal The Take — influenciou não apenas o gênero no cinema, como na literatura.

E é aí que entra Helen Hoang. A autora de ficção romântica lançou em 2018 seu primeiro trabalho e grande estrela desse texto, Os Números do Amor que, não sem demora, daria origem a uma trilogia sensível e apaixonante, formada pelas continuações The Bride Test e The Heart Principle, ambos ainda não publicados no Brasil. The Heart Principle, a conclusão da trilogia, tem lançamento previsto para agosto deste ano.

os números do amor

O primeiro livro reconta a história do filme ícone dos anos 1990, porém invertendo os gêneros dos personagens. O papel de Edward, dessa vez, é dado à personagem Stella Lane, enquanto o acompanhante de luxo Michael Phan substitui Vivian ao ser contratado para ensinar a jovem protagonista como se relacionar amorosa e sexualmente. É claro que a autora não foi a única a se inspirar pelo clássico tropo criado pelos personagens de Roberts e Gere. Sendo assim, qual o diferencial do romance de Helen Hoang?

A resposta para essa pergunta está no retrato sensível e diverso que a autora cria ao falar de uma personagem dentro do espectro autista e como são seus relacionamentos, um aspecto pouco abordado, e até mesmo tabu, quando se fala de inclusão. Ao mesmo tempo, Helen Hoang é capaz de mesclar a pauta com elementos queridos e reconhecíveis pelo público fã de romances, encantando seus leitores com o amor genuíno, sensível e vulnerável que surge entre Michael e Stella.

Stella e a diversidade do espectro autista

Antes de mergulhar no assunto desse texto, é importante salientar que o espectro autista não é uma doença, e sim uma diferença cognitiva, o que abre portas para diversos debates anti e pró “cura”, que não cabem a mim, como mulher neurotípica, expressar voz ativa. Todo o texto baseia-se em muita pesquisa e na leitura do livro, não em vivências pessoais. Para saber mais, você pode visitar o portal Autismo e Realidade, organização sem fins lucrativos que nasceu de uma associação de pais e mestres cujo objetivo inicial é difundir conhecimento sobre os Transtornos do Espectro Autista (TEA), combatendo preconceitos e auxiliando na orientação de familiares, professores e cuidadores

Os Números do Amor, enquanto isso, nasceu, a princípio, como uma reinvenção de Uma Linda Mulher. Entretanto, Helen relata nas notas do livro que, durante o processo de escrita, não conseguia encontrar um motivo plausível para uma jovem bem sucedida contratar um acompanhante. Eis que sua filha começou a apresentar sinais de Autismo de Alta Funcionalidade, também conhecido como Síndrome de Aspenger, e, ao pesquisar sobre os traços comuns do autismo, a autora encontrou não apenas a resposta para o livro, como uma jornada de autodescoberta.

Ao desenvolver Stella como uma protagonista no espectro autista, Helen Hoang também obteve, aos 34 anos, o diagnóstico de Autismo de Alta Funcionalidade e descobriu uma importante lacuna entre homens e mulheres neuroatípicos — lacuna essa que influencia mulheres neurodivergentes a buscarem ajuda profissional tardiamente e obterem o diagnóstico já adultas.

“Uma sensação estranhíssima se instalou dentro de mim quando comecei a ler [Aspergirls de Rudy Simone], que só foi se fortalecendo à medida que eu avançava no livro. Aparentemente, existe uma enorme diferença na maneira como o autismo é percebido em homens e mulheres. O que eu havia descoberto em minha pesquisa dizia respeito a homens autistas, mas muitas mulheres, por uma série de razões, mascaram suas peculiaridades e escondem seus traços para se tornar socialmente aceitáveis. Até mesmo nossas obsessões e nossos interesses são adaptáveis nesse sentido, passando a cavalos e músicas em vez de placas de carro que começam com o número três. Por causa disso, mulheres muitas vezes não são diagnosticadas, ou só o são num estágio avançado da vida, com frequência depois que seus filhos o são. As mulheres com Asperger estão naquilo que se costuma chamar de ‘parte invisível do espectro’.” Helen Hoang, “Nota da Autora”, Os Números do Amor.

O autismo de Stella é essencial para o enredo, pois, ao mesmo tempo em que dá início e movimenta a história, traz uma representatividade pouco vista nas páginas de livros e na indústria do entretenimento. Em tempos onde busca-se cada vez maior inclusão na cultura pop, ver séries que abordam a neurodiversidade — como It’s Okay to Not Be Okay e Atypical — se popularizando entre os diversos públicos de vários gêneros é motivador, mas a caminhada nem sempre esteve isenta de percalços e más representações. E Helen Hoang se sai espetacularmente bem ao desconstruir esses estigmas.

Stella é uma colcha de retalhos tanto do romantismo como das vivências de Hoang em uma sociedade capacitista e sexista. A personagem é vítima do machismo até mesmo em seu espectro, afetada pelos padrões impostos a mulheres — padrões esses que a fazem esconder sua neurodivergência e criam inseguranças que impedem sua felicidade plena ao longo do livro. Mas ela não é apenas uma vítima. Ela é plural, inteligente e divertida, indo contra estereótipos atrelados ao espectro autista ao demonstrar extremo carisma e conquistar a empatia daqueles que leem sua história de amor. Sua condição é uma parte importante dela, e a escrita de Hoang normaliza e dá tons coloridos para a visão coletiva — e superficial — acerca de indivíduos no espectro.

“I’ve learned not to be vocal about my opinions because I’m not very good at articulating them — definitely not in person or on Twitter, anyway — but with a novel, I’m better able to communicate because I can show the reader what I mean by putting them in someone else’s shoes. Novels have a remarkable power to create empathy.”

“Aprendi a não ser vocal sobre minhas opiniões porque não sou muito boa em articulá-las — definitivamente não pessoalmente ou no Twitter, pelo menos — mas com um romance, sou mais capaz de me comunicar porque posso mostrar ao leitor o que quero dizer, colocando-o no lugar de outra pessoa. Os romances têm um poder notável de criar empatia.” — Helen Hoang para o bitchmedia

Representatividade asiática e o retrato de profissionais do sexo 

Os Números do Amor é duplamente um livro own voicetermo para designar livros que retratam grupos marginalizados escritos por membros desses próprios grupos. Isso ocorre pois, além de ser uma mulher no espectro autista assim como Stella, Helen Hoang usa o co-protagonista, Michael, para expressar mais um aspecto importante de sua vivência: a descendência vietnamita. Filha de uma imigrante do Vietnã, a autora explora sua ancestralidade e cria cenas divertidíssimas a partir da família de Michael e seus primos Khai e Quan, protagonistas das respectivas continuações do romance, colocando pessoas amarelas em posição de destaque tanto nas páginas quanto nas telas — uma vez que uma adaptação cinematográfica de Os Números do Amor foi recentemente anunciada.

“Hollywood and publishing are beginning to see minorities as a viable market, which necessitates stories about minorities where they are more than just supporting characters.”

“Hollywood e as editoras estão começando a ver as minorias como um mercado viável, o que necessita de histórias sobre minorias onde elas sejam mais do que apenas personagens coadjuvantes.”

Michael Phan é o típico protagonista que arranca suspiros e aquece os corações dos leitores. Ele é o “homem ideal” em todos os quesitos possíveis, física e amorosamente. Mas além de um par romântico incrível, Michael conquista o leitor principalmente por sua vulnerabilidade. Por meio de uma narração com o ponto de vista de ambos os personagens — e expandindo ainda mais a imersão do leitor na trama — Helen Hoang mostra todas as facetas de Michel e aprofunda a conexão e singularidade de seu relacionamento com Stella. A autora faz o que o roteiro de Uma Linda Mulher não conseguiu nos anos 1990: abordar a prostituição sem inferiorizar profissionais do sexo ou envolver a trama em valores conservadores. Sem romantizar as problemáticas da profissão — até porque a realidade de Michael difere do contexto vivenciado por mulheres vítimas da prostituição — a vida do personagem como acompanhante de luxo nunca é um tabu ou incômodo para Stella e para o leitor.

“When my book was on submission, the number one reason for rejection — that was vocalized — was that the hero is a sex worker. They said they couldn’t put a book about a sex worker in print. We got around this by finding an editor with a more progressive mindset.”

“Quando meu livro estava sendo enviado, o motivo número um para a rejeição — que foi vocalizado — foi que o herói é um trabalhador do sexo. Eles disseram que não podiam publicar um livro sobre um trabalhador do sexo. Nós contornamos isso encontrando um editor com uma mentalidade mais progressista.”

Michael se mostra vulnerável e sensível em todo o livro, principalmente em seu cuidado com Stella e na compreensão de sua condição. Desde antes de estar ciente do espectro autista da personagem, Michael demonstra paciência durante suas interações iniciais, não se deixando intimidar pela inexperiência e sinceridade crua de Stella. Parece mais um caso de “ele não fez mais que a obrigação”, mas ao se ter consciência da personalidade de Stella — e especialmente de como a sociedade subestima indivíduos neurodivergentes e como esses são mais comuns do que pensamos —, Michael se torna ao leitor um exemplo de empatia e sensibilidade. Além disso, ao contemplar a vulnerabilidade dele enquanto se apaixona por Stella e as inseguranças devido ao seu passado — e a ele exclusivamente, nunca a sua carreira e sonhos profissionais —, é inevitável não se apaixonar pelo protagonista e colocá-lo nas primeiras posições do ranking de homens literários favoritos.

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A exclusão do papel de “salvador” e o conforto da vulnerabilidade 

Apesar da sensibilidade de Stella — jamais fragilidade —, Michael não é seu salvador. Não é sua beleza incrível que torna as relações sexuais finalmente agradáveis para a personagem, e sim a dedicada construção de um laço de confiança. A atração não sobrepuja a necessidade de Stella de estabelecer um relacionamento confortável para si, e talvez esse seja o fator mais cativante de Os Números do Amor, pois, mesmo que sua realidade seja diferente da de Stella, a escrita de Hoang é identificável para qualquer leitor. Seja em seus medos, seja na insegurança de Michael, cada pessoa apaixonada — ou apenas algum romântico que ama o amor — se identifica e torce pelo casal.

Tampouco Stella é a salvadora de Michael. Subvertendo mais uma vez o clássico que serviu de inspiração, nesta versão a prostituta com grande potencial não é salva pelo executivo e pela perspectiva de amor e felicidade, como todo bom conto de fadas. O final de Os Números do Amor é, sim, feliz, com direito a todos os clichês que nos conquistam e nos fazem gritar “Deu tudo certo!” ao fim da leitura e indicar para aquela amiga que precisa de um quentinho no coração. Mas Hoang não faz do relacionamento de Michael e Stella a solução para todos os problemas. Como todo bom conto de fadas moderno, o amor apenas segura na mão dos personagens e os guia pela caminhada, mas cabe a eles descobrir qual o melhor trajeto e fazê-lo juntos (com alguns tropeços e desencontros, mas que bom romance não tem uma dose de drama?).

Os Números do Amor é aquele livro que te prende da primeira à última página, tornando impossível desgrudar os olhos do livro. É reconfortante, carismático e empático. Você sabe que o final vai ser feliz, mas isso não reduz o valor da jornada. A trama é bem coringa e Helen faz um trabalho mais que bem feito ao adaptar a trama de Uma Linda Mulher aos valores e necessidades da cultura pop hodierna. Vale a pena, ainda, aguardar ansiosamente a continuação, The Bride Test, uma vez que o protagonista, Khai, também está no espectro autista, nos apresentando uma visão completamente diferente da que temos desse na perspectiva de Stella.

Os Números do Amor é um livro para os solteiros, namorados, enrolados ou aqueles que estão apenas vivendo como todo protagonista no início do livro: alheio ao amor, sem saber da grande história que o aguarda. Amantes do romance de todos os gêneros, sexualidades e etnias, neuroatípicos ou não, esse livro é pra vocês, não importa a época do ano.


** A arte em destaque é de autoria da editora Ana Luíza. Para ver mais, clique aqui!

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2 comentários

  1. Oi, eu queria agradecer pela indicação! Eu sou autista, e é muito difícil encontrar personagens autistas que não parecem uma caricatura, feitos pra inspirar pena ou como motivo de risadas. Mais difícil ainda encontrar personagens autistas escritos por autistas. Sempre que se fala de autismo, ignoram o que a gente tem a dizer. Aliás, esse é o único ponto do texto que me incomodou um pouquinho: seria bom mencionar organizações e fontes de informação sobre o espectro autista feitas por autistas. Por mais que eles sejam bem intencionados, neurotípicos que convivem com autistas não sabem como é ser autista, e o nosso ponto de vista precisa ser levado em conta também. Eu sei que é mais difícil conseguir recursos em português, mas em praticamente qualquer rede social them a hashtag actuallyautistic e às vezes também autisticadult e actuallyneurodivergent. Tem também a ASAN (Autistic Self Advocat Network). Enfim, a ideia é que é preciso dar voz a quem vive essa realidade.

    1. Muito obrigada pelo comentário Martina, fico feliz que gostou da indicação! Quando procurei informações pro texto pensei justamente nessa questão de haverem poucos recursos em português, por isso coloquei apenas a organização governamental. Mas muito obrigada pela sugestão, vou ficar mais atenta nos próximos textos sobre o assunto. Seu ponto de vista é muito importante e indivíduos neuroatípicos precisam de mais espaço!

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