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O protagonismo das mulheres latinas nos filmes de Hollywood

Com a indicação de Yalitza Aparicio ao Oscar de Melhor Atriz por sua comovente atuação em Roma, é interessante perceber o que torna, aos olhos da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas, uma mulher latina elegível ao prêmio prêmio. Precedida por Fernanda Montenegro, Salma Hayek e Catalina Sandino Moreno, a indicação de Yalitza se entrelaça com as outras em um ponto comum e vital: a celebração da cultura latino-americana.

Em retrospectiva, nomeadas ao prêmio de Melhor Atriz, e suas subsequentes vencedoras, raramente contam histórias em que a cultura é quase tão personagem principal quanto elas. Em 2018, Frances McDormand recebeu a estatueta por sua atuação em Três Anúncios Para um Crime, um longa que, ainda que discorra acerca da impunidade criminal, da sempre presente violência contra mulher e dos efeitos que essa mistura proporciona ao cérebro de uma mulher já machucada, conta muito pouco sobre a cultura sulista dos Estados Unidos, e que apesar do cenário árido e do racismo característico, é uma narrativa onipresente, tão comum que poderia ter acontecido em qualquer lugar. O mesmo acontece com La La Land, que consagrou Emma Stone como a vencedora da categoria em 2017: mesmo ao contar a atraente trama de Mia Dolan, é de se considerar que o objetivo do filme não era, no fim das contas, transmitir a cultura de lugar nenhum, mas sim transitar entre a rapsódia de sentimentos e emoções que acompanham a aventura de descobrir seu lugar no mundo.

Ainda assim, é, no mínimo curioso e no máximo, controverso, perceber que, para serem notadas pela Academia, mulheres latinas não podem apenas atuar em histórias como as de suas colegas americanas ou europeias. Mesmo um excelente filme como Uma Mulher Fantástica, vencedor na categoria de Melhor Filme Estrangeiro, não foi suficiente para agraciar Daniela Vega com uma indicação, da mesma forma que Beatriz at Dinner não era o bastante para nomear Salma Hayek novamente, ainda que a trama encaixasse perfeitamente no momento vivido pelos Estados Unidos e que a indústria cinematográfica tão vigorosamente desejava se aproveitar. Mais frequentemente do que nunca, histórias latinas são ignoradas nas categorias principais quando não se enchem do elemento esotérico e estereotipado esperado pelos críticos norte-americanos, que desfrutam do gostinho da alteridade apresentado pelas produções com foco no “jeito latino de ser”.

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Daniela Vega em Uma Mulher Fantástica.

Por Central do Brasil (1998, Walter Salles), Fernanda Montenegro se tornou a primeiríssima mulher latina a ser nomeada ao prêmio de Melhor Atriz, na edição de 1999. Nessa data, o Oscar já acontecia há 71 anos, e a única mulher latina reconhecida pela Academia levou para casa o prêmio de Melhor Atriz Coadjuvante: a lendária Rita Moreno, por Amor, Sublime Amor (1961) que, em 99, já ostentava o título de EGOT (15 anos mais tarde, mais uma latina ganharia o título de Melhor Atriz Coadjuvante: a mexicana Lupita Nyong’o pelo drama épico 12 Anos de Escravidão).

Considerado um dos filmes mais antológicos da cinematografia brasileira, Central do Brasil acompanha a história de Dora (Fernanda Montenegro), uma professora aposentada que, para ganhar dinheiro, trabalha como escritora de cartas para pessoas analfabetas, oferecendo seus serviços na Central do Brasil, estação de trens localizada no centro do Rio de Janeiro. Um dia, ela é abordada por Ana (Soia Lira), que deseja escrever uma carta para seu ex-marido Jesus a pedido de seu filho, Josué (Vinícius de Oliveira), que quer muito conhecer o pai e deseja que a família se reúna novamente. Logo após sair da estação, Ana morre atropelada e Dora, com pena do órfão Josué, decide ajudá-lo a encontrar o pai em Bom Jesus, no sertão do Nordeste.

Ao retratar a odisseia de Dora e Josué ao Nordeste, Central do Brasil evoca a realidade dos migrantes do sertão brasileiro até o Centro-Sul, milhares de indivíduos que abandonaram suas vidas em busca de oportunidades melhores nas metrópoles brasileiras e que, num cenário de 20 anos atrás, em que as primeiras ondas da globalização já começavam a assolar o Brasil, ainda contavam com as cartas para se comunicar com seus familiares deixados para trás e precisavam conviver no cenário bagunçado da urbanização não-planejada do Rio. O Brasil é um país construído por meio da dinâmica das migrações, cujas marcas influenciaram tão destacadamente a cultura nacional — tanto músicas e festas celebradas no Nordeste e pratos típicos da culinária Sulista alcançando prestígio nacional quanto a ainda defasada infraestrutura urbana, consequência de dezenas de aglomerados improvisados, são provas disso.

Num cenário tão economicamente devastador para o Brasil quanto o fim do primeiro milênio, Central do Brasil representou, na figura de Dora e Josué, o encontro do antigo Brasil com a esperança de um país melhor com a chegada dos anos 2000. Dora, mal-humorada e tão pouco remunerada como professora que precisou trabalhar para adicionar à sua aposentadoria, era a face que o Brasil queria abandonar, um país que não conhecia a si próprio e que não sabia valorizar seus próprios trabalhadores; e é ao se aproximar da inocência infantil de Josué, que Dora aprende a despir-se das mazelas que a amarguraram no passado, procurando no menino o Novo Brasil que promete o fim do analfabetismo e da desvalorização dos professores, além da redescoberta da identidade e da cultura nacional.

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Fernanda Montenegro e Vinícius de Oliveira em Central do Brasil.

Na música “Esquadros”, Adriana Calcanhotto, no trecho “Eu ando pelo mundo prestando atenção/ Em cores que não sei o nome/ Cores de Almodóvar/ Cores de Frida Kahlo, cores”, destaca a vivacidade e a exuberância das obras da icônica artista mexicana. Foi a característica única de seus quadros, que agregavam fantasia, pós-realismo e elementos que contavam acerca da cultura mexicana e as mazelas do colonialismo, e a fascinação pela vida privada de Frida Kahlo que inspiraram a produção do drama biográfico Frida (2002, Julie Taymor), filme que, por meio de alusões a seus quadros, constrói nas telonas a ascensão da carreira de Frida, mostrando como fatos marcantes de sua vida pessoal influenciaram em sua obra. A atuação primorosa da mexicana Salma Hayek no papel principal rendeu à atriz uma indicação ao Oscar de Melhor Atriz, segunda latina a ser nomeada à categoria.

Mais que apenas um filme biográfico, Frida é uma grande celebração da vida e da arte de uma das pintoras mais importantes da América Latina, símbolo inegável do movimento feminista e da cultura nativa mexicana. Em suas cores quentes e cenas dinâmicas, a obra narra, acima de tudo, a vivência da mulher latina, com seus amores, suas tristezas e suas contradições. Essa característica fica clara desde as primeiras cenas do filme, quando Frida sofre um acidente que quase a deixa paraplégica e, mesmo quando se recupera, sente que é um peso tão grande para a família que, a fim de trazer um alívio ao menos econômico para os pais, enfrenta de peito erguido seu futuro marido Diego Rivera, clamando para que ele avalie objetivamente seus quadros. Em um continente conhecido pela opressão e pelo assédio às mulheres, a força de vontade para superar as adversidades que o destino colocou em seu caminho, levantar da sua cadeira de rodas literal e figurativa e lutar para se tornar aquilo que acredita merecer ser são atributos que marcam não só as mulheres latinas na ficção e da história, mas também aquelas que conhecemos do cotidiano, as familiares e as amigas que superam as calamidades do dia a dia com bravura e esplendor análogos ao de Frida.

Em entrevista, Salma Hayek apontou que “muitas coisas poderiam ter enfraquecido o espírito [de Frida], como o acidente e as traições de Diego, mas ela não era esmiuçada por nada”. Pelo contrário, Frida canalizava os sentimentos que ameaçavam derrubá-la e os direcionava para sua construção artística, abordando, por meio do olhar feminino e nativo-mexicano, as consequências do pós-colonialismo no México, e a influência das questões de raça, gênero, identidade e classe na vivência e no espírito de ser do mexicano. A pretensão surrealista das obras de Frida e, por consequência, do filme, representa, por si só, muitos aspectos da arte e do imagético latino-americano, continente que deu vida ao realismo mágico, à bossa nova e ao muralismo, além de marcar a antítese entre os conflitos internos e a necessidade de ter uma vida real sóbria e segura.

Outro ponto marcante da película que representa tão verdadeiramente a vivência latina é a sombra de uma revolução iminente sempre pairando nos ares. Durante os anos 30, a América Latina e, sobretudo, o México, vivia uma onda de afinal descoberta do Socialismo e Comunismo, que veio à tona após o fracasso do Liberalismo clássico e a onda anti-violência advinda do fim da Primeira Guerra Mundial. Frida e Diego flertam com o comunismo e se auto-proclamam seguidores da ideologia durante diversos momentos do filme, e tais aspirações os seguem desde encontros com amigos comunistas até a concretização final em suas obras. Esses anseios ideológicos advém das cicatrizes perfuradas pelo colonialismo de exploração, fortemente baseado no acúmulo de capital que serviu para devastar a terra e a cultura indígenas, e tornam possível perceber, no segundo ato do filme, após a morte do líder Leon Trotsky, amigo e amante de Frida, que, sem dúvida, a América Latina é o berço das ideias revolucionárias contemporâneas.

Salma Hayek em Frida.

Em um panorama geral, dois dos estereótipos mais comuns em personagens interpretados por latinos são os traficantes de drogas pesadas, intrépidos e espertos, e os católicos praticantes, frequentemente obcecados com sua religião no continente com maior percentual de cristãos no mundo. Sem medo de contribuir para a parcela estereotipada, o filme Maria Cheia de Graça (2004, Joshua Martson) faz uso de ambos os tropos em diferentes intensidades, contando a história de Maria Alvares, menina de 17 anos que vive à beira da pobreza em uma casa de dois quartos com a irmã, a mãe e a avó, até que um dia recebe uma proposta de trabalho irrecusável: ganhar o equivalente a 10 milhões de pesos colombianos para levar 70 pacotinhos de heroína dentro de sua barriga até os Estados Unidos. Longe das personagens sofridas encontradas em dramas do submundo das drogas, Maria é engenhosa e rápida, e o filme acha em Catalina Sandino Moreno, terceira atriz latina a ser indicada ao Oscar de Melhor Atriz, uma implacável Monalisa sul-americana.

Produções sobre o tráfico de drogas talvez sejam aquelas que mais empregam latinos na TV e nas telonas. Dramas como Narcos e El Chapo, assim como o filme Cidade de Deus, abordam as complexidades da migração das drogas da América Latina até o resto do mundo, em tramas que se distanciam de obras de ficção para se tornarem cada vez mais parte do dia a dia de cada um de nós. É isso que torna a jornada de Maria tão envolvente: o filme se afasta de questões geralmente culturais e se torna real pro cenário em que vivemos, tão comum que é impossível não torcer pela personagem principal quando ela finalmente chega em Nova York. Em um momento do filme, Maria ironicamente passa por um outdoor que diz “O que importa é o que está dentro de você”. Intencional ou não, essa cena é só mais uma das tendências que torna o filme genuíno, mas não sensacionalista ou político; ao invés disso, é sobre como pessoas comuns reagem à situações de desespero.

O sonho americano também se concretiza como parte importante do imagético do filme. Quantas histórias já não lemos, assistimos e presenciamos de pessoas desesperadas em suas condições atuais, ansiando para serem bem sucedidas em outras terras? Quantas famílias voaram de Cuba, de Porto Rico, da Colômbia para os Estados Unidos com a expectativa de deixarem para trás suas vidas miseráveis e reconstruírem seus sonhos por meio da esperança oferecida pela vastidão do território americano? Massacrada por anos de exploração, que deixaram a pobreza intensa como maior consequência e provaram que os maiores vilões do continente são os sistemas econômicos desiguais, a América Latina pode não ser um continente de muitas oportunidades, certamente não é um que gera fascinação como os EUA ou a Europa, mas as histórias contadas nessas terras inspiram sonhos e desejos ardentes, que só a perseverança do seu povo é capaz de concretizar.

Catalina Sandino Moreno em Maria Cheia de Graça.

Mas, como esperado, todos os caminhos levam à Roma, o aclamado apogeu cinematográfico de Alfonso Cuarón. O filme segue o olhar cauteloso e tímido de Cleo (Yalitza Aparicio), babá e doméstica de uma família de classe média alta num bairro luxuoso do México dos anos 70, e, por meio de afeições e situações familiares, consegue evocar sentimentos tão preciosos que eles se acumulam ali, naquela área entre o pescoço e o peito, sufocantes, prontos para sair. E eles saem, de fato, especialmente depois que a presença de Cleo se faz absolutamente essencial não só para família que a empregou, mas também para o espectador comum que não consegue mais enxergar os cenários mexicanos sem a perspectiva cuidadosa e solitária da protagonista.

Em diversas maneiras, a obra lembra o excelente filme brasileiro Que Horas Ela Volta?, eternamente injustiçado pela Academia e merecedor de, no mínimo, uma indicação para Melhor Filme Estrangeiro. Congruente à atuação de Regina Casé, Yalitza Aparicio consegue criar uma presença etérea e amorosa em relação àquelas crianças, agindo como uma verdadeira mãe substituta e evocando imagens que fazem o espectador se identificar com facilidade. Vasculhando a memória, consigo recordar dos meus próprios fortes sentimentos de afeição pelas moças que cuidavam de mim quando eu era criança, e essa equidade constrói uma carga emocional muito mais pesada no filme, ao mesmo tempo que levanta a questão das empregadas domésticas como pilares essenciais na criação das crianças da classe média de toda a América.

Contudo, o filme nunca apresenta Cleo como coitada, e é possível que isso deva-se muito ao olhar saudoso de Cuáron, que a inspirou em sua própria babá da infância. Apesar de quieta e quase-estática, Cleo apresenta desejos, alegrias e vontades próprias, ainda que, às vezes, estas entrem em conflito com a vida que precisa levar dentro da casa de seus empregadores. Essa dinâmica desigual não é ignorada no filme, e uma de suas críticas sutis é como parece que a vida de Cleo e suas aspirações não importam se não beneficiarem diretamente seus patrões. No Brasil da atualidade, empregadas domésticas ainda lutam pela emancipação econômica e social, dificultada pela falta de direitos e por uma cultura nacional que trata como normal a exploração dessas mulheres, evidenciando a pouca ou quase inexistente mudança entre os anos 70 e o século XXI.

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Regina Casé em Que Horas Ela Volta?.

Os lentos processos de mudança presenciados na América Latina também são carros-chefe na construção do imagético do filme. Não é uma piada quando dizem que faz parte da cultura latina cometer os mesmos erros incessantemente: em Roma, a presença marcante do militarismo aparece das mais variadas formas durante a película, seja sutilmente, quando as bandas de marechais atravessam as ruas entoando hinos mexicanos, seja de forma avassaladora, durante o clímax do filme, quando uma manifestação estudantil culmina em pancadaria generalizada e provoca o rompimento da bolsa amniótica de Cleo. Mesmo nos dias de hoje, é possível perceber os resquícios do militarismo ditatorial nas pseudo democracias latino americanas, e não é preciso ir tão longe quanto Cuba ou Venezuela para perceber isso — basta olhar para o Brasil. É evidente que não só nada mudou, mas também que as mulheres latinas contemporâneas continuam a ser tratadas da mesma forma dos anos 70; que disputas de terra entre latifundiários e indígenas são mais comuns do que nunca e que a infraestrutura urbana ainda é a mesma, pavimentada com prédios caindo aos pedaços, vendedores ambulantes apertando as ruas e carros de décadas atrás.

Outro aspecto que interliga as histórias desses filmes é a relação dessas quatro mulheres latinas com a maternidade. Em um cenário midiático estereotipado que caracteriza as mães latinas como sufocantes, propensas a mimar demais seus filhos e obsessivamente interessadas pela vida privada da prole, as personagens desses quatro filmes encaram a tarefa de ser mãe de formas distintas e particulares, fugindo dos padrões que se esperam de mães latino-americanas.

Logo no início de Central do Brasil, Dora confessa a Josué que não tem família, marido, filhos, ninguém. Contudo, é na disposição para resgatar o menino e tentar tornar seu sonho de conhecer o pai possível que ela acolhe a maternidade dentro de si, nutrindo um afeto pelo garoto que a faz pensar até em adotá-lo no meio do terceiro ato do filme. A figura de Josué chega para transformar como Dora age e vê o mundo, e é a inocência do menino que a inspira a ser melhor, ainda que ambos terminem o filme separados. Algo similar acontece em Maria Cheia de Graça. É após receber, logo nos primeiros minutos de filme, a notícia de que está grávida de seu namorado (e rejeitar seu pedido de casamento ao perceber que eles não se amam nem um pouco) que Maria decide aceitar a oferta de virar uma mula das drogas; é a necessidade latente de querer que seu filho tenha uma vida diferente da sua que coage Maria a, no fim, decidir ficar nos Estados Unidos enquanto sua amiga volta para a Colômbia.

Já em Frida, a gravidez da artista é a catarse de sua vida. Graças ao acidente que quase a paralisou, o útero de Frida é incapaz de manter uma criança viva, e é tocante a cena em que, na banheira, ela e Diego decidem que vão tentar manter a criança mesmo assim. O sentimento de esperança é logo esmagado pela realidade amarga algumas cenas depois, em que Frida sofre um aborto espontâneo e, após a cirurgia de remoção do feto, implora para ver seu filho enquanto Diego chora no corredor. Esse acontecimento serviu de inspiração para diversas obras dos artistas, sendo a mais famosa Henry Ford Hospital, em que Frida se desenha ensanguentada na cama do hospital, observada por seu feto natimorto e intimamente ligada a ele. Para os críticos mexicanos, esse quadro marca a transição da arte de Frida para um surrealismo inovador e quebrador de tabus, e ao mesmo tempo intimista, um espelho da própria artista.

A dualidade da maternidade é um dos pontos principais de Roma. De um lado, Cleo age como uma verdadeira mãe para os filhos de seus patrões, acordando-os de manhã cedo com palavras de afeto, trocando-os, alimentando-os e levando pra escola, brincando com eles e colocando as crianças pra dormir à noite com canções de ninar. As responsabilidades afetivas atribuídas a Cleo são mais intensas do que aquelas desempenhadas pela mãe biológica dos meninos, e esse entendimento atinge seu pico quando, mesmo não sabendo nadar, Cleo se arrisca nas águas turbulentas da costa mexicana para salvar dois de seus “filhos” de um afogamento. Por outro lado, a confissão silenciosa imediatamente depois, quando Cleo admite que nunca quis o bebê que estava carregando, e desejou que ele morresse — até que ele, afinal, nasceu já morto —, assume o peso da realidade, a complicação que é ter seus próprios filhos e não apenas cuidar dos filhos dos outros.

Yalitza Aparicio e Marco Graf em Roma.

Central do Brasil, Frida, Maria Cheia de Graça, Roma — os quatro filmes apresentam de forma única a vivência latino-americana, por meio do olhar cuidadoso das protagonistas, evocando imagens tão intrinsecamente familiares que é impossível não se imaginar naquele mesmo cenário, experienciando aquelas mesmas sensações. Acima de tudo, esses filmes são os retratos das mulheres latinas quando em contato com seu mundo exterior. É só pensar nos eventos que desencadearam os acontecimentos do roteiro: Dora conhecer Josué, Frida sofrer um acidente de ônibus, Maria ser oferecida o emprego de traficante, Cleo engravidar. Todos são acontecimentos externos a essas mulheres, que impulsionam respostas singulares baseadas em seus mundos internos.

De certa forma, as obras contribuem para a persistência dos velhos estereótipos de mulheres latinas: sentimentais, fogosas, sexuais, geniosas. Como já dito, é infeliz que as atrizes tenham que se encaixar sempre no que já é esperado de tais personagens pra ter reconhecimento. Contudo, a verdadeira força que impulsiona esses filmes é abraçar esses tropos pré-estabelecidos e, a partir deles, tentar criar uma nova identidade para mulher latina. Há poder em perceber que você pode chorar se quiser, e pode ser mandona ou sexy a sua vontade, e essas características não a tornam menos ou mais latina — apenas a tornam humana. Nessas obras, as mulheres são permitidas momentos de vulnerabilidade sem se tornarem las lloronas, e é evidente que até mulheres bem-resolvidas como as protagonistas sofrem.

Afinal, esses filmes não apresentam somente mulheres latinas interpretando personagens latinas, mas atrizes latinas recriando nas telas as histórias que acompanham seu povo por gerações. Essas mulheres, essas personagens, essas histórias são tão explicitamente latino-americanas que ninguém mais poderia interpretar esses papéis, ninguém mais incorpora o sofrimento e a alegria de tais vidas assim como elas.

Basta saber se o despertar da cultura vai ser suficiente para fazer Yalitza Aparicio se tornar a primeira mulher latina a conquistar o Oscar de Melhor Atriz, ou o mundo cinematográfico vai persistir contando as histórias reais dessas mulheres sem oferecer nada em troca.


** A arte em destaque é de autoria da editora Ana Luíza. Para ver mais, clique aqui!

7 comentários

  1. ótimo texto, muito bom ver a opinião de outra pessoa sobre o assunto. interessante ver a associação entre Roma e Que Horas Ela Volta?

  2. Texto extremamente espetacular e necessário. Interessante como um filme de pouco mais de 1h40min pode nos dar diversos contextos e olhares acerca das situações e é maravilhoso como a escritora do texto conseguiu enxergar pontos similares (além dos óbvios) entre as obras citadas. Incrível texto, muito bem estruturado e informativo. Espero ler mais textos da escritora aqui no Valkirias.

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