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O Mundo Sombrio de Sabrina: a hora das bruxas

Prestes a completar dezesseis anos de idade, Sabrina Spellman (Kiernan Shipka) precisa tomar uma decisão que definirá o rumo de sua vida para sempre: registrar seu nome no Livro da Besta, tornando-se definitivamente parte do coven, ou manter-se em meio aos mortais. Filha de pai bruxo e mãe mortal, Sabrina cresceu entre os dois mundos — um, repleto de magia e encantamentos; o outro, com seus amigos mortais, filmes de terror e aulas no high school norte-americano. Ao se aproximar dos dezesseis anos, a serem completos no Dia das Bruxas, Sabrina precisa escolher um caminho que mudará não apenas a sua vida, mas de toda a comunidade bruxa — e mortal — que vive em Greendale.

Atenção: este texto contém spoilers!

Essa é a premissa da primeira temporada de O Mundo Sombrio de Sabrina, série inspirada no quadrinho The Chilling Adventures of Sabrina escrito por Roberto Aguirre-Sacasa (que também é o showrunner do seriado homônimo da Netflix) que, por sua vez, teve como base Sabrina, The Teenage Witch do escritor George Gladir e do artista Dan DeCarlo. Sabrina apareceu pela primeira vez no quadrinho Archie’s Mad House, em 1962, recebendo um título próprio em 1971, cuja história é base não somente para a série da Netflix, mas também para a série de comédia estrelada por Melissa Joan Hart em 1996, Sabrina, Aprendiz de Feiticeira. Em ambas as séries, como uma adolescente metade bruxa, metade mortal, Sabrina precisa balancear lados diferentes de sua vida, lidando com sua herança mágica e com os dramas típicos da adolescência ao mesmo tempo.

Órfã de pai e mãe, mortos em um acidente de avião, Sabrina vive com suas tias Zelda e Hilda Spellman (Miranda Otto e Lucy Davis, respectivamente) na casa/funerária da família em Greendale. Criada pelas tias desde bebê, Sabrina vem se preparando dia após dia para seu Batismo das Trevas, evento que acontecerá no dia do seu aniversário de dezesseis anos. Para a comunidade bruxa, o Batismo das Trevas marca a entrada do adolescente no coven e, nas palavras de Sabrina, é o mesmo que o sweet sixteen (festa de dezesseis anos) ou a quinceañera (festa de quinze anos) para os mortais. É o momento em que a bruxa será apresentada formalmente para Satã, eternizando seu nome no Livro da Besta, e embora as tias Zelda e Hilda estejam exultantes com a data, o mesmo não pode ser dito por Sabrina que não parece tão certa em abrir mão de sua vida mortal em prol dos poderes que o Diabo lhe dará em troca de sua alma. Ao assinar seu nome no Livro da Besta, Sabrina precisará deixar para trás toda sua vida em Greendale e ingressar na Academia de Artes Ocultas, o que significa também deixar para trás suas melhores amigas, Rosalind Walker (Jaz Sinclair) e Susie Putnam (Lachlan Watson), e seu namorado, Harvey Kinkle (Ross Lynch).

O Mundo Sombrio de Sabrina

Como se não bastasse ter que se afastar de tudo o que é mortal, Sabrina também se questiona a respeito das diretrizes da Igreja da Noite e as regras que precisará seguir como parte dela. Suas dúvidas crescem a cada instante, principalmente pelo fato de que, no final das contas, Satã quer ter direito sobre seu corpo, alma e autonomia, e Sabrina não vê como isso pode ser libertador ou tão especial como querem fazê-la acreditar. Entrar para a Igreja da Noite é também entrar para um grupo que tentou banir seus pais por terem se casado, visto que, na comunidade bruxa, a união entre bruxos e mortais nunca foi encarado como algo positivo, e os pais de Sabrina foram contra tudo e todos para fazer valer o amor que sentiam um pelo outro. Até o momento, Sabrina não tinha dúvidas a respeito da morte dos pais em um acidente de avião, mas as Irmãs Estranhas — trio formado por Prudence (Tati Gabrielle), Agatha (Adeline Rudolph) e Dorcas (Abigail F. Cowen) — dão a entender que pode ter algo a mais nessa história.

Tentando encontrar um caminho viável para seu dilema, visto que Sabrina não quer ter que abrir mão de nenhuma parte de sua vida, seja mortal ou mágica, ela recorre a Ambrose (Chance Perdomo), primo que também vive na Funerária Spellman. Ambrose está cumprindo prisão domiciliar por ter participado de um plano para explodir o Vaticano, e é a ele quem Sabrina recorre sempre que precisa de um conselho ou dicas sobre feitiços. Parte da história original dos quadrinhos, Ambrose é um dos personagens mais interessantes de O Mundo Sombrio de Sabrina, reunindo humor ácido e irreverente enquanto tenta orientar sua prima teimosa no caminho das artes das trevas e bruxaria. Em um primeiro momento pode parecer que Ambrose está lá para personificar Salem, o familiar de Sabrina, mas logo o gato preto entra em cena e, ainda que não fale nessa versão da história, é parte de importantes acontecimentos ao longo dos episódios da primeira temporada.

O fio condutor de O Mundo Sombrio de Sabrina é, sem dúvida, a luta da bruxa adolescente para equilibrar seu lado mortal e seu lado mágico e como isso interfere nas vidas de todos ao seu redor. Ao não assinar seu nome no Livro da Besta, deixando incompleto o ritual do Batismo das Trevas, Sabrina bate de frente com Satã e desafia sua soberania no coven, o que desperta a ira do Diabo, uma entidade que não está acostumada a perder e fará de tudo para trazer Sabrina para suas fileiras sombrias. É dessa maneira que a solitária Mary Wardell (Michelle Gomez), professora de Sabrina na Baxter High, é morta e substituída por um demônio cujo objetivo é fazer com que a adolescente coloque seu nome no livro, cedendo sua alma a Satã. Os métodos utilizados por Wardell são diversos, e ao mesmo tempo em que tenta conquistar a confiança de Sabrina, sussurra em seus ouvidos pequenas dicas e direcionamentos, tudo parte de um plano maior que se desenvolverá com o passar dos episódios da primeira temporada, culminando em um desfecho empolgante, ainda que previsível.

O Mundo Sombrio de Sabrina

Mas não é apenas a história de Sabrina que é desenvolvida na série, e seus amigos mortais também recebem enredos próprios e muito interessantes de acompanhar. O sobrenatural parece envolver todos os habitantes de Greendale, e mesmo os mortais têm algum pano de fundo envolvendo magia para compartilhar, como é o caso de Rosalind, que começa a ter visões do futuro; Susie, que passa a conversar com o espírito de sua ascendente; e Harvey, que descende de uma linhagem de caçadores de bruxas. Ainda não é possível saber o que isso significará para os personagens no futuro, mas é divertido ver que não é apenas Sabrina e o coven a andar por caminhos mágicos, mesmo que, por hora, apenas a habilidade de Rosalind tenha se mostrado verdadeira e de alguma serventia. Do lado dos Spellman, O Mundo Sombrio de Sabrina desenvolve poucas tramas específicas, e ora nos mostra um pouco mais sobre as tias Zelda e Hilda, e ora tenta dar alguma função a Ambrose que não seja a de fiel conselheiro de Sabrina. Um dos episódios mais interessantes dessa primeira temporada, responsável por mostrar mais desses personagens significativos, é o quinto, “Dreams in a Witch House”, quando os Spellman ficam presos em pesadelos capazes de mostrar a eles o que de mais íntimo — e assustador — reside em suas almas.

Durante “Dreams in a Witch House” descobrimos o que está além da superfície de Zelda, Hilda e Ambrose, e como seus pesadelos são espelhos do que mais particular está em seus corações. Zelda, tão fria, calculista e devota da Igreja da Noite, é a tia rigorosa de Sabrina, sempre preocupada com as regras do coven e a maneira como os Spellman são percebidos pelos outros bruxos. Durante seu pesadelo, no entanto, fica claro como o amor que sente por sua irmã e família é enorme, demonstrando que pode ser frágil e amorosa por baixo da carapaça dura que vestiu para se preservar. No caso de Hilda, a tia que revela seu lado maternal e carinhoso com mais facilidade, vemos como dedicar sua vida à irmã, à sobrinha e à funerária a impediu de ter a própria família, e isso a deixa se sentindo solitária, ainda que esteja sempre ao lado de Zelda e Sabrina. Para Ambrose, enquanto isso, o pesadelo se resume a estar trancafiado na funerária e como teme ser esquecido, sem poder fazer nada a respeito que não seja esperar pelo final da sentença dada pelo Conselho dos Bruxos.

Enquanto isso, na Academia de Artes Ocultas, Prudence é, sem dúvidas, a personagem mais interessante, ainda que seja o Padre Blackwood (Richard Coyle) a receber mais tempo de tela. Ao lado de suas irmãs adotivas, Agatha e Dorcas, Prudence personifica tudo aquilo que imaginamos de uma bruxa contemporânea, alguém que está em perfeito controle de si mesma e de sua sexualidade, e que não sente a menor vergonha de ser quem é. Ela e Sabrina batem de frente algumas vezes — o que poderia ser descartado, visto que ninguém aguenta mais ver personagens femininas brigando umas com as outras pelo simples prazer do roteiro, o que a própria Sabrina aponta algumas vezes —, mas o final de O Mundo Sombrio de Sabrina nos faz crer que uma dinâmica interessante para as duas personagens poderá ser vista no futuro. Enquanto Sabrina vive o dilema sobre se entregar ou não a Satã, Prudence sabe muito bem o que isso significa para si e sua fé — o que fica evidente quando Prudence diz a Sabrina que, por mais que ela deseje ter o melhor dos dois mundos, Satã não permitirá que isso aconteça visto que, afinal, ele é um homem, e homens não querem que mulheres tenham liberdade e poder.

O Mundo Sombrio de Sabrina

Essa, inclusive, é apenas uma das diversas passagens de O Mundo Sombrio de Sabrina que ressoam com a vida real; nem só de magia é feita a série. A produção mostra uma faceta muito positiva ao incluir em sua trama temas como feminismo, bullying, sexualidade e religião. Com um elenco majoritariamente feminino, a produção acerta ao colocar em sua pauta temas pertinentes às mulheres quando, por exemplo, mostra Sabrina, Rosalind e Susie criando no colégio o clube WICCA pelos direitos das estudantes — organização que surge após Susie ser agredida pelos valentões do colégio simplesmente por ela não se enquadrar no padrão. Susie se identifica como não-binária, ou seja, é uma pessoa cuja identidade ou expressão de gênero não se limita às categorias de masculino ou feminino. De acordo com a GLAAD, algumas pessoas não-binárias podem até mesmo sentir que seu gênero está entre homem e mulher, ou, ainda, que seu gênero está em um lugar totalmente diferente e completamente distante dos dois gêneros. Susie, por rejeitar ser rotulada como homem ou mulher, sofre nas mãos dos colegas que não a aceitam por ser diferente, mas encontra carinho e acolhimento com Sabrina e Rosalind.

A trama de Susie ecoa a história de Lachlan Watson, que a interpreta e que também se identifica como pessoa não-binária. Em vídeo gravado para promover O Mundo Sombrio de Sabrina, Lachlan diz que a trama de Susie foi o que a levou a se encantar pelo roteiro da série em um primeiro momento — a oportunidade de se fazer ouvir, e contar sua história de maneira correta, por meio da série se transformaria na plataforma ideal para ajudar outras pessoas passando pelo mesmo que Susie. Participar da série e dar voz à Susie — e tantas outras pessoas — é importante para Lachlan principalmente pelo fato de que é preciso mostrar que ser binário não é um requerimento, mas apenas uma opção entre várias em nosso mundo. No vídeo, Lachlan Watson também conta que o fato de um dos roteiristas de O Mundo Sombrio de Sabrina, MJ Kaufman, ser trans e parte da comunidade LGBTQ, ajuda ainda mais a passar a verdade da jornada de Susie em uma história que está apenas começando.

A sexualidade dos personagens de O Mundo Sombrio de Sabrina é abordada em diferentes momentos e de diferentes formas. Além de Susie e sua jornada para se descobrir como não-binária, há também Ambrose, descrito no site oficial da série como pansexual e que durante a primeira temporada se envolve romanticamente com Luke (Darren Mann) e participa de uma orgia com Prudence, Agatha, Dorcas e Nicholas Scratch (Gavin Leatherwood). Relacionar um personagem pansexual logo de cara com uma orgia não é realmente o melhor dos mundos por cair justamente no velho clichê da promiscuidade do personagem queer, algo visto em diversas representações da cultura pop. O ponto positivo é que a série não se prende a apenas essa faceta da vida de Ambrose, mostrando-o como uma pessoa inteligente e que sempre preza pelo bem-estar de sua prima, mesmo quando ela resolve meter os pés pelas mãos, entrando em dramas muito maiores do que ela consegue lidar. Ambrose, o filho mágico de David Bowie e Jimmy Hendrix, (de acordo com Chance Perdomo) poderia ter recebido mais cenas nessa primeira temporada, mas seu futuro parece promissor — principalmente se os roteiristas se lembrarem de dar continuidade ao mistério em torno do assassinato de um bruxo que chegou ao necrotério dos Spellman e que atiçou a curiosidade de Ambrose no começo da temporada, mas foi diluído com o passar dos episódios. O relacionamento com Luke também pode render boas tramas, principalmente pelo fato de que o bruxo não disse muito ainda a que veio, surgindo na casa dos Spellman de maneira pouco convencional e conquistando Ambrose com rapidez.

Com relação às personagens femininas, O Mundo Sombrio de Sabrina consegue nos presentear com mulheres diversas e com dilemas próprios, mostrando a pluralidade de personalidades, dramas e sentimentos intrínsecos à vida. Em Sabrina encontramos uma protagonista autônoma, inteligente e corajosa ao ponto de se tornar imprudente, o que move a narrativa adiante, principalmente quando a protagonista começa a mexer com poderes e magias com as quais não sabe lidar completamente. As tias Zelda e Hilda permanecem sempre aquelas por quem Sabrina procura quando as coisas ficam muito difíceis, e mesmo que pensem de maneira diferente em alguns momentos — principalmente no que se refere ao Livro da Besta, o Batismo das Trevas e a Igreja da Noite —, Sabrina sabe que tem nas figuras das tias o porto seguro de que precisa. Rosalind e Susie atuam como os elos que seguram Sabrina no mundo mortal, assim como Harvey, mas diferente do namorado — que recebe uma trama apenas mediana —, as duas conseguem conquistar o telespectador com facilidade. O carisma de suas respectivas intérpretes — Jaz Sinclair e Lachlan Watson, respectivamente — ajuda na tarefa, e logo estamos nos importando com as tramas de Rosalind e Susie tanto quanto com a de Sabrina.

Outra personagem feminina que rouba a cena é a professora Mary Wardell de Michelle Gomez, que é traiçoeira e ácida na medida certa para nos fazer amá-la e odiá-la em igual proporção. Michelle Gomez é uma atriz muito talentosa, e Mary Wardell é deliciosamente malvada, maquinando das sombras para fazer com que Sabrina caia nas mãos de Satã sem que nem perceba o que está fazendo. Nossa intrépida protagonista até consegue descobrir, por um momento, a trama em que está inserida, mas Mary Wardell sabe muito bem o que está fazendo e logo engana Sabrina novamente. O fato é que em O Mundo Sombrio de Sabrina o protagonismo é inteiro das personagens femininas, mesmo que o Padre Blackwood acredite estar jogando o jogo bem demais com sua assembléia de homens. O que incomoda em toda essa narrativa, no entanto, é que bruxas teoricamente donas de si mesmas e de suas vontades, precisem ajoelhar perante um altar que tem o Diabo e o Padre Blackwood como figuras de poder, dois homens mesquinhos e mimados, para não dizer outra coisa.

Kiernan Shipka está ótima como Sabrina Spellman e consegue conectar todos os núcleos de sua série com muito talento — a atriz interage e tem química com todas as suas co-estrelas, de Harvey Kinkle, o namorado mais fofo e adorável que uma bruxa adolescente pode ter, a Nicholas Scratch, bruxo inteligente que promete deixar Sabrina balançada entre o mundo mágico e o mortal. O Mundo Sombrio de Sabrina mostra a que veio com uma leva de episódios divertidos de se acompanhar e que trazem, na medida certa, o tom sombrio que o título da produção evoca. Com referências que vão de O ExorcistaO Bebê de Rosemary e A Bruxa, O Mundo Sombrio de Sabrina é uma boa pedida para esse Halloween, reunindo bruxaria, feitiços, amores juvenis e um mundo divertidamente tétrico em uma roupagem feita para unir fãs antigos e novos da icônica bruxa adolescente. A primeira temporada deixa algumas pontas soltas e portas abertas para um mundo de novas possibilidades, mas precisa reparar alguns erros grotescos (usar beijos entre meninos como forma de chantagem é demais até para uma bruxa!), e dar voz — literalmente — a Salem.


** A arte em destaque é de autoria da editora Ana Luíza. Para ver mais, clique aqui!