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O fim de Girls, e o que significa ser uma garota das garotas

Existem séries e séries. Algumas séries são aclamadas pela mídia e outras nem tanto. Girls sempre esteve no limbo entre ser querida e odiada. Afinal, é uma série de meninas brancas, escrita, à época, por uma garota branca de vinte e poucos anos, que conta a história de garotas brancas tendo que viver na mais badalada cidade do mundo — e como tudo isso é muito difícil. Com uma protagonista fora do padrão, o linguajar diferente, nudez e sexualidade sem glamour e sem vergonha, e a forma de conduzir a história que nada tem a ver com as mais comuns comédias americanas, Girls pode não ser revolucionária, mas é inegável que tenha conquistado seu lugar ao sol.

No último domingo, dia 16, Girls, depois de seis temporadas, chegou ao fim — com uma bagagem de erros e acertos quase proporcionais, mas com acertos muito mais memoráveis. As meninas que estampam as fotos promocionais passaram, no curso desses cinco anos no ar, de odiosas à odiadas, desculpadas a, por fim, compreendidas, e então tudo novamente. Um ciclo inevitavelmente real e cru, na forma de garotas que erram, e erram muito, erram sem querer e às vezes querendo, e, no fim do dia, são só humanas. E mulheres. Mulheres que não podem errar.

O clima da reta final da série foi, desde o início da temporada, abraçada e celebrada, e acompanhamos o desenrolar do relacionamento das quatro garotas individualmente, mas também como pessoas que mantiveram uma amizade por um longo tempo e que veem esse relacionamento, aos poucos, mudar.

Marnie Michaels (Allison Williams), em uma atitude mesquinha e pouco louvável, trai seu atual namorado, Ray (Alex Karpovsky), com seu ex-marido, Desi (Ebon Moss-Bachrach), com quem manteve uma relação problemática desde o início. O relacionamento entre ela e o músico sucumbiu diante de uma dependência química negligenciada por um e não percebida pelo outro. O ápice da história envolve Marnie e Hannah (Lena Dunham) numa tragicomédia, em que elas tentar manter um Desi em abstinência à distância, fora de uma cabana no meio do nada.

O enredo romântico de traição com o ex replica um dos melhor episódios de Girls (“The Panic in Central Park”, sexto episódio da quinta temporada), protagonizado por Marnie. Nele, ela discute com Desi — na época, ainda seu marido — acaba se encontrando com Charlie Datollo (Christopher Abbott), seu ex-namorado com quem há tempos não mantinha contato. A relação que ambos mantiveram à sua época também era problemática: um casal que estava junto há muito tempo, Marnie não gostava de Charlie da mesma maneira que ele, mas não conseguia abrir mão do conforto de estar em um relacionamento conhecido, de alguém que, sempre que saía de sua vida, fazia falta. Após o reencontro não tão apaixonado quanto foi sexual, Marnie descobre que Charlie também se tornou dependente químico. Tudo isso, mais uma vez, debaixo do seu nariz, sem que ela sequer desconfiasse.

Marnie é a personagem que mais recebeu críticas no decorrer da série. Insegura e imatura, sua coleção de deslizes é imensa. Em busca da fama, Marnie coloca-se em situações vergonhosas. Girou, andou e correu pela tão sonhada independência, mas, no fim, não conseguiu dar conta dela. Volta para a casa da mãe, depois de tentar vender seus pertences — falsos, ditos reais — e receber um balde de água fria da vida. No último episódio da série, Marnie decide ajudar Hannah em algo que apenas Hannah poderia ajudar a si mesma. Seu final é um mar aberto de opções, por onde Marnie, por tudo que demonstrou, fica à deriva.

Jessa, interpretada por Jemima Kirke, por sua vez, envolve-se com Adam (Adam Driver), ex-namorado de Hannah, sua melhor amiga, ainda na temporada passada. De um triângulo amoroso que nada tem de amoroso ou de triângulo, visto que Hannah e Adam não estavam mais juntos, Jessa teve para si algo que não havia tido até então: amor. Os dois têm um relacionamento destrutivo, mas é inegavelmente real. Em um dos episódios mais sensíveis da temporada, Adam e Jessa acham de bom tom que Adam passe a viver com Hannah para poder ajudá-la em um momento difícil. Jessa tentar retornar para sua antiga vida, boêmia e promíscua, mas percebe que aquilo não faz mais parte da sua realidade. Adam vive um dia leve e apaixonado, e completamente fora da realidade: quando confrontado por Hannah, não consegue admitir que está apaixonado por Jessa — sua resposta não responde a pergunta literalmente, apenas o sentimento que está ali, pleno, mas bem escondido.

Quando Adam propõe, meio atravessado, que ele e Hannah se casem para conseguir uma casa, o choro é silencioso e tem peso de ponto final: não há mais amor envolvi ali, apenas a consideração pelo o que foi vivido no passado. Adam volta para casa, onde Jessa o espera com um sorriso, e depois de seis temporadas não há mais nada a ser resolvido entre Adam e Hannah. As duas moças se perdoam, com plena consciência de que não há mais nada no lugar onde um dia existiu a amizade delas. E esse capítulo na vida dos três está encerrado.

Entre todas as quatro garotas, Shoshanna (Zosia Mamet) é quem menos aparece na sexta temporada. Estrela de um dos episódios melhores episódios da série (“Japan”, terceiro episódio da quinta temporada), o desaparecimento de Shosh faz pouco sentido nos episódios finais. Em alguns momentos, a sensação que se tem é que Ray e Shoshanna vão em engajar, mais uma vez, em um relacionamento, mas não é o que acontece. Shoshanna vai casar! Com alguém que não se sabe quem é, que aparece em apenas um episódio — o do noivado —, e é isso.

Há toda uma vida acontecendo para Shoshanna que nós, telespectadores, não sabíamos, porque a perspectiva da história não nos permite vislumbrar. Hannah, Marnie e Jessa também não têm acesso ao que acontece na vida de Soshanna e, quando se reencontram, ela está noiva. Porque a vida é isso. Várias coisas acontecem na vida de várias pessoas, das quais não fazemos ideia. Especialmente na vida de quem nós um dia já fomos amigos.

Hannah, a estrela de Girls que de estrela pouco tem, é, talvez, a jornada mais conturbada da última temporada. De uma gravidez indesejada, Hannah faz uma escolha da qual, pela primeira vez, não poderá voltar atrás. A opção de manter a gravidez, ser mãe solo e criar o filho sem ter alcançado a estabilidade financeira, a longo prazo, é um desvio de roteiro, mas faz algum sentido. Não porque a maternidade salva: ela não salva, não é o ponto culminante da vida de uma mulher, muito menos o botão acionador de maturidade — e o episódio final confirma tudo isso. Mas é uma decisão inesperada e Girls, como sempre, nunca se utilizou de saídas fáceis. A gravidez, bem como o início da maternidade, não foi romantizada pela série. Não há brilho radiante emanando da personagem; amamentar não é algo maravilhoso, a conexão entre mãe e filho não é um presente dos deuses, algo tão bom quanto sugere o final de uma novela. É tudo muito sem disfarce e, por isso, parece uma pintura fidedigna da vida real.

Girls nunca foi uma série que almejou um clímax, um grande momento final que colocasse todos os pingos nos is. Girls foi uma série sobre uma jornada: uma jornada chamada vida, que dificilmente tem um clímax, e é muito mais mundana do que a maioria das produções do cinema e da TV — e aí está toda a graça. Não porque a vida de quatro garotas mundanas seja a melhor coisa que a televisão pode oferecer, mas porque contar uma história sobre a vida de uma maneira tão íntima, grosseira e autêntica merece sua apreciação. E a história de amizade entre quatro garotas, que merece toda a atenção, também, no fim.

A amizade de Shosh, Marnie, Jessa e Hannah foi turbulenta, carinhosa, asfixiante e necessária, como muitas amizades o são. E chegou ao fim. Amizades, como qualquer outro relacionamento, são passíveis de chegarem ao fim e nem sempre dão certo. Ou dão, por um tempo, até que deixam de dar. Ou até que a vida aconteça e cada um siga um caminho, a frequência diminua e fique por isso, sem ressentimentos. Ou dão certo para todo o sempre, nunca se sabe. Amizade, contato social, relacionamentos. Eles nos moldam, nos fazem crescer, aprender mais sobre o mundo e às vezes até sobre nós mesmos — há estudos que afirmam que há pessoas que ficam parecidos esteticamente após a convivência. Relações interpessoais são importantes. Mas quando essas trocas acontecem entre mulheres, na forma de amizade, elas são mais.

Penso nos meus amigos homens e sua relação com seus respectivos amigos homens. Eles são amigos, saem juntos, talvez troquem segredos, meçam o pênis ou só joguem vídeo game. Mas eles não parecem sofrer — ou porque não conseguem demonstrar, ou porque esse tipo de relação não recebe a mesma conotação para eles — do que sofre uma mulher quando uma amizade termina. Perder uma amiga dói. Dói perder uma pessoa com quem você dividiu seus momentos embaraçosos e sonhadores, ou até mesmo suas confissões mais medonhas. Mulheres, quando são amigas, se entregam, compartilham, confiam. É tudo muito orgânico e sem uma gota de vergonha. E por isso mulheres sabem o quão amargo é perder uma amiga. Então tentamos e tentamos, e tentamos mais um pouco. Mas, assim como Girls, às vezes o fim se torna inevitável. Como crescer é inevitável, o mundo girar é inevitável e mudar é inevitável.

Não acho que eles entendam o que é ser uma garota das garotas, quando eles são criados e educados para serem suficientes em si mesmos. O relacionamento entre Jessa e Adam não serviu para colocar a relação deles em jogo ou comparar o que um dia ele teve com Hannah. O relacionamento entre Jessa e Adam serviu para medir e, por fim, alinhar a amizade entre Jessa e Hannah — e ela terminou sem rancores. O ir e vir de Hannah e Marnie deixa óbvio a falta de senso de cada uma delas, mas o ir e vir de uma amizade entre duas mulheres que se recusam, entre erros e acertos, a largar uma à outra. Sosh quis colocar um ponto final na amizade com as outras três porque ela já não servia mais, e era hora de seguir em frente. Mas a amizade serviu, por anos, porque é o que acontece. Sentimos muito, erramos e acertamos, mas jamais conseguimos varrer para baixo do tapete. Você respira e sente. É isso que uma amizade feminina significa: ela nunca, realmente, deixa de significar alto.

Grupos de amigas, banheiros femininos de festas, coletivo de mulheres, todos esses lugares e situações são como pequenas casinhas mágicas: dentro delas brigamos, mas não deixa de serem casas, nossas casas, e para derrubá-las você tem que derrubar todas. Girls foi, ao longo dos anos, uma casinha mágica dentro da telinha que nós, contra todos os desafios, amamos, e perdemos no último domingo. Ela não é perfeita, nem sempre foi divertida, mas foi uma casa de mulheres. E sei que eu, sem dúvidas, vou sentir saudade.

3 comentários

  1. Ainda não terminei a última temporada, mas abri o texto sem medo pois sei que o significado da série está muito além das histórias que ela conta em cada episódio. Tive um pouco dificuldade de continuar após a penúltima temporada, por ver que é uma série feita por garotas brancas e para garotas brancas (embora eu mesma seja branca), mas esse seu texto me arrancou lágrimas dos olhos. Quem não se identificou com as crises das Girls aos 25 anos e meio (como diz a Marnie)? E quem não desejou por um momento ter amizades tão profundas e íntimas ao ponto de tomarem banhos juntas como Hannah e Jessica? Após te ler, criei coragem de terminar essa série e me deixar levar pelas decisões da vida adulta, pois agora entendo que minha dificuldade em terminar pode ter sido pelo medo de encarar na minha própria vida as relações que chegaram ao fim.

  2. Nunca um texto falou tanto pra mim como esse. Eu acompanhei Girls desde a sua estreia e vai fazer muita falta mesmo. E ao ler seu texto, percebo o quanto a amizade entre mulheres é realmente tudo isso que falaste e como eu tenho poucas amigas mulheres, na verdade, poucas amigas mulheres fora as pessoas da minha família. Eu me decepcionei tanto, mas tanto, com as antigas amigas que tive antes que fiz das mulheres da minha família as minhas duas melhores amigas, e foi uma decisão maravilhosa.
    Mas enfim, seu texto me fez entender um pouco mais a série, olhando para coisas que eu não tinha ainda formada na cabeça sobre as personagens e seus enredos. Concordei com tudo, olha. Faz sentido.

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