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O Conto da Aia e o medo que mora em todas nós

O Conto da Aia, da escritora canadense Margaret Atwood, sempre esteve na minha lista de “livros que quero ler”. Anos se passaram sem que eu me mexesse para mudar o status do livro — de “quero ler” para “lido” — em minha estante e somente agora, empolgada pela adaptação que o serviço de streaming Hulu estreará logo mais em abril — sob o título The Handmaid’s Tale e estrelado por Elisabeth Moss, tirei a poeira do exemplar e me coloquei a ler. Sabia que a história era intensa e repleta de metáforas, só não sabia que levaria um soco no estômago a cada virar de páginas.

Assim como alguns livros que fizeram sucesso recentemente — Jogos Vorazes e Divergente, só para citar alguns — O Conto da Aia também é uma distopia porém, diferente do que vemos na sagas de Katniss e Tris, aqui não há uma escolhida que salvará a humanidade da ruína. Nesse futuro, os Estados Unidos como conhecemos não existe mais e está dominado por uma sociedade extremamente religiosa e patriarcal que, por meio de um golpe militar, tomou o poder e controla com mãos de ferro todos os seus indivíduos: a nova República da Gilead. Não fica realmente claro como tal golpe aconteceu, mas disputas pelo poder acabam por desencadear catástrofes ambientais e, aliados a isso, o totalitarismo e o fundamentalismo religioso se mesclam, moldando um novo e rígido sistema social nada mais que desesperador — principalmente para mulheres.

É nesse contexto que conhecemos Offred, uma mulher que teve sua vida antiga tirada de si e agora é uma Aia do novo regime. Aos poucos descobrimos, por meio da vivência de Offred, que a fertilidade humana caiu a níveis baixíssimos e, dessa forma, toda mulher em idade fértil ou que já teve um bebê é obrigada a corroborar com a manutenção do novo sistema. Todas essas mulheres passam por um treinamento cujo objetivo é engravidar, passar pelo parto e amamentar seus bebês até que seja hora de entregá-los aos Comandantes e suas esposas. Esqueça o livre arbítrio, esqueça a autonomia: cada uma das Aias está presa a esse sistema e dele fará parte até o fim. O nome Offred, inclusive, que significa “De Fred”, vem por meio do nome do Comandante para o qual a Aia é destinada, contribuindo para mais um apagamento na vida da mulher: até o seu nome é retirado para enaltecer seu status de objeto de um homem.

“Espero. Eu me acalmo e me componho. Aquilo a que chamo de mim mesma é uma coisa que agora tenho que compor, como se compõe um discurso. O que tenho de apresentar é uma coisa feita, não algo.”

Offred narra sua experiência nessa nova sociedade enquanto relembra momentos de sua vida  anterior a República de Gilead. As mulheres desse novo mundo são separadas e categorizadas, sendo a figura da Aia a mais emblemática, importante e discriminada. Como a fertilidade humana não é mais a mesma, as Aias — vestidas sempre em longos trajes vermelhos, quase como freiras, cobrindo os rostos com chapéus brancos de abas largas — são necessárias para assegurar não apenas a manutenção do novo regime, como da vida em um todo.

As vidas das Aias são vigiadas de perto por Comandantes e suas esposas, que anseiam pelos bebês que elas possam vir a gerar; pelas Tias, mulheres responsáveis por educar as Aias, ensinando-as a se colocarem como submissas e prestativas, concentrando-se apenas em engravidar e não se mostrar como uma ameaça às esposas estéreis; e pelas Martas, mulheres que não podem mais gerar bebês e se dedicam aos trabalhos domésticos nas casas dos grandes líderes da Gilead. Há, ainda, aquelas mulheres descartadas pela sociedade, enviadas para longe, e aquelas que vivem na clandestinidade, em bordéis frequentados pelos mesmos líderes que as repudiam.

“Estranho lembrar como costumávamos pensar, como se tudo estivesse disponível para nós, como se não houvesse quaisquer contingências, quaisquer limites; como se fôssemos livres para moldar e remoldar para sempre os perímetros sempre em expansão de nossas vidas.”

É quando Offred está chegando à casa de um novo Comandante que a história ganha força e contornos ainda mais assustadores. Procurando descobrir outras pessoas que possam fazer parte de uma resistência ou ter notícias de sua família e amigos, perdidos durante o golpe, Offred descobre que os segredos e a dinâmica desse mundo novo são ainda piores do que ela poderia imaginar. Qualquer desvio do curso é punido com a morte, não há mais individualidade ou direito ao próprio corpo. Atwood, por meio de sua trama inventada, nos mostra como direitos conquistados por meio de muita luta podem ser extintos pelo uso da força e como a religião pode ser utilizada de maneira equivocada como justificativa para mandos e desmandos, privilégios para poucos e a ruína de muitos. As mulheres desse novo mundo não podem ler, escrever ou falar sem que lhes seja permitido; elas perderam o direito de trabalhar, de estudar. Uma das primeiras manobras do novo regime, aliás, é tirar qualquer tipo de autonomia da mulher, passando todo seu dinheiro para a custódia dos homens da família, deixando-as dependentes e sem saída.

Com uma vida pautada na repressão, a Aia ainda precisa se submeter a um “ritual” surreal em que é estuprada pelo Comandante designado, sob a inspeção da Esposa. Offred tenta manter sua dignidade se esforçando para não abrir mão de sua personalidade, relembrando fatos relacionados à sua vida anterior, ao seu companheiro, à sua mãe e filha, mas é difícil manter-se sã em um mundo que te vigia a todo instante. O Conto da Aia é uma história muito perturbadora que, mesmo passados 30 anos desde sua primeira publicação, em 1985, continua ecoando os medos de mulheres de todo o mundo. Com líderes mundiais cada vez mais misóginos e com ideais bizarros, não é difícil imaginar um mundo em que nossos direitos são tolhidos e nossa autonomia, usurpada.

“Havia lugares por onde não se queria andar, precauções que se tomava, que tinham a ver com trancas em janelas e portas, fechar as cortinas, deixar luzes acesas. Essas coisas que fazia eram como orações; você as fazia e esperava que elas a salvassem. E na maioria das vezes salvavam. Ou alguma coisa salvava; você sabia pelo fato de ainda estar viva.”

O Conto da Aia incomoda e não é uma leitura fácil: o papel de Margaret Atwood, enquanto autora, é o de provocar uma reflexão a respeito de um mundo que parece pertencer apenas ao reino da distopia, mas está sempre ali, a espreita, no nosso mundo real. Mulheres sofrem opressões, são silenciadas, perseguidas, assediadas, estupradas e mortas todos os dias — e isso não é apenas o enredo de ficção. Atwood teve a coragem necessária de abordar temas doloridos em 1985, temas esses que, infelizmente, ainda permanecem tão reais e assustadores. Se mulheres saíram de casa para dar força à Women’s March não é à toa: nós sabemos o quanto precisamos ficar juntas para fazer nossos direitos valerem.

O Conto da Aia vem com uma crítica forte ao patriarcalismo e, de acordo com a autora, não há nada em sua narrativa que uma mulher não conheça — por isso a trama toda é tão assustadora e angustiante, tão verdadeira em sua barbárie, em destacar o medo que mora em todas nós. Se precisamos do feminismo, se nos fortalecemos com ele, é para que futuros como os da Gilead não sejam possíveis.


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6 comentários

  1. Um livro maravilhoso em retratar esses medos e muito, muito assustador. Tem a pior cena de estupro que já li e não sei se quero vê-la na série…

    1. Espero que a série trate a história de maneira delicada, pra dizer o mínimo. De mulheres utilizadas como male gaze já nos basta Game of Thrones (e afins).

      1. Exatamente. Pior que escolheram um cara novo e galã pra fazer o comandante e uma amiga comentou e já me deu um medo de começarem a shipar a Offred e o comandante

  2. Estou aqui para lembra-las que no ocidente o Estado e Igreja já foram separadas,(no século 17)mas os artistas socialista ,(escritora, roteiristas da série e o produtores) nunca usariam quem realmente praticam em pleno século 21 essas coisa ,não é mesmo,não quando o inimigo é o mesmo,o Ocidente,a Civilização e a Liberdade.

  3. O livro é ruim, a série é ruim, a crítica ao cristianismo é desnecessária! O feminismo só surgiu no ocidente, porque o cristianismo permitiu! O islã é que oprime as mulheres…

    1. @Ivan Não é uma crítica ao cristianismo em si, e sim à manipulação dele que muitos – MUITOS – religiosos fazem para tentar reprimir os outros: pegam trechos e passagens da bíblia que são convenientes para eles, deturpam os significados e os expõe como se fosse a verdade absoluta, enquanto ignoram outros inúmeros textos também bíblicos que repreendem outras atitudes que eles têm. É por isso que na sociedade do livro a leitura da bíblia (leitura de tudo, na vdd) é proibida para as mulheres: justamente para exemplificar que ter uma religião, aprender sobre ela, acreditar numa realidade divina e buscar moldar seus valores morais inspirados em seus ensinamentos é completamente diferente de simplesmente se aproveitar dela e do que é conveniente para você.

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