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O Conto da Aia e como a maternidade é uma grande questão de gênero

O que é ser mãe?

“Ainda hoje persistem diversas concepções essencialistas em relação ao que significa “ser mulher”; com relação a “ser mãe” não é diferente. Apesar de considerarem que todas as mulheres têm (ou ao menos deveriam ter) o “dom” para a maternidade ou um instinto materno, “diversas revisões históricas acerca da instituição familiar sugerem que a exaltação ao amor materno é algo relativamente recente. O vínculo maternal “tradicionalmente descrito como instintivo e natural é um mito construído pelos discursos filosóficos, médico e político a partir do século XVII. Antes, o que predominava era um sentimento que beirava o desinteresse dos pais em relação aos filhos.”

Escolhemos iniciar o texto com esse trecho retirado do capítulo “Desmistificação da maternidade: o verdadeiro desafio de ser mãe”, do livro #MeuAmigoSecreto, do Coletivo Não Me Kahlo, lançado no ano passado pelas Edições de Janeiro. Ao longo do capítulo, as autoras expõe diversas reflexões acerca da construção da maternidade ao longo da história, citando, inclusive, as amas, que eram as verdadeiras responsáveis pela nutrição e pela criação das crianças de famílias abastadas em uma época onde praticamente não existiam os conceitos de infância e de maternidade. Com o boom da obra O Conto da Aia, por conta da adaptação seriada, atualmente no ar no serviço de streaming Hulu, foi impossível não pensar incansavelmente no assunto.

No livro, Margaret Atwood consegue reunir, em uma mesma narrativa, dois conceitos que são, tecnicamente, inseparáveis: a maternidade e a fertilidade. Ambas são discutidas em meio a um futuro distante, não muito distante do nosso, em que os Estados Unidos, após um golpe, se tornaram a província de Gilead e as mulheres perderam todos os seus direitos. Elas são controladas por homens, são propriedades deles, objetos sem quaisquer direitos sobre a própria liberdade ou destino.

o conto da aia

Nesse contexto, mulheres são vistas como meras reprodutoras e com finalidade específica: procriar e assegurar a continuidade da espécie. Despida de todos os seus direitos conquistados a duras penas, as mulheres de O Conto da Aia não possuem outra opção que não seja utilizar a fertilidade como moeda de troca em um mundo que as despreza por todo o resto. As não férteis são consideradas não-mulheres e enviadas para as Colônias, onde realizam serviços pesadíssimos em péssimas condições, expostas à radiação, vindo a morrer em uma média de três anos. Mulheres fora da idade reprodutiva, por sua vez, tornam-se tutoras das moças mais jovens que virão a ser as aias, treinando-as para o melhor cumprimento de suas funções.

Fizemos esse resumo do livro para dar uma contextualizada. O texto não é sobre ele, mas sobre as reflexões que ele nos trouxe e que são totalmente cabíveis nessa semana das mães em que a proposta é, justamente, discutir a maternidade. Pensando em tudo o que foi exposto, perguntamos de novo: o que é maternidade?

Na sociedade contemporânea, ela pode ser um juízo de valor — como, aliás, quase tudo que está relacionado às mulheres. Uma mulher casada sobe pontos na escala da sociedade. Uma mulher que tem filhos sobe um tanto mais. Um filho no colo para ser o ápice do sucesso, um troféu a ser celebrado. Em Gilead as coisas funcionam exatamente da mesma forma, mas em circunstâncias muito adversas. A fertilidade virou moeda de troca, mas as aias não tem status por isso: elas só precisam dar luz a uma criança para um casal de pessoas privilegiadas que a criará. Elas são apenas o útero ou, como é dito no livro, o receptáculo. O bebê que dão à luz é entre à esposa de um comandante (título que se refere, na obra, ao mais alto escalão do governo) de alta patente, e a aia não tem sequer a possibilidade de se sentir mãe. Não é permiti que a aia crie um laço com o filho e, assim que se recupera do parto, ela é movida para a próxima família de grande status para repetir o mesmo ciclo. As aias que tiveram filhos antes da extinção dos Estados Unidos permanecem apenas com a lembrança deles, visto que, com a ascensão de Gilead, mães, filhos e famílias inteiras foram separadas pelo governo.

No mundo contemporâneo, o que significa o status supostamente privilegiado de mãe? Ao contrário do que coloca John Green em A Culpa é das Estrelas, não é uma montanha-russa que vai apenas para cima. Se é mesmo uma subida, é também um percurso cheio de armadilhas, cheio de cobranças e julgamentos. Amamentou de menos. Amamentou demais. Largou a criança para ir ao trabalho. Largou o trabalho para ficar em casa cuidando da criança. Deu doce para o filho. Não deu doce para o filho. Deixou o neném ver televisão. Não deixou o neném ver televisão — em resumo, um mar sem fim de comparações e dedos apontados. Ser mãe parece, realmente, algo como padecer no paraíso — e não é a toa que existe um famoso ditado para consagrar esse fato como verdade.

o conto da aia

Os paralelos entre vida real e ficção mostram que muito do que se vê em O Conto da Aia se respalda na maneira como a maternidade é tratada em nossa sociedade. Realidade e ficção se entrelaçam ao demonstrar que, mesmo de formas diferentes, a maternidade é sempre um assunto recorrente para um mulher — exista ou não o desejo de ter filhos. No caso do livro de Atwood, às mulheres não é dada escolha: se você é fértil, você é útil para Gilead e terá filhos. Enquanto na sociedade contemporânea, a questão da procriação é sempre jogada nos ombros da mulher como se ela fosse a única responsável por fazê-lo. Seria cômico se não fosse problemático o fato de que uma função que só pode ser exercida por dois sexos em conjunto recaia, sempre, para o lado feminino — mas como uma questão de responsabilidade, e não empoderamento, visto que já é quase 2020 e ainda discutimos o aborto, que não é visto como aquilo que de fato é: uma possibilidade de escolha da mulher. O peso da responsabilidade é todo dela, mas o Estado ainda quer legislar sobre o seu corpo.

O Conto da Aia mostra um futuro distópico onde a maternidade se divide entre aquelas que possuem o status necessário para criar um bebê e aquelas que são apenas o meio para um fim. Nenhuma delas, no entanto, tem controle sobre o seu destino enquanto mulher. Não sabemos muito sobre as esposas no livro, nem se o desejo pela maternidade é real e não compulsório, visando apenas o status dentro da sociedade em que essas mulheres estão inseridas, mas no que se refere às aias, ou pelo menos no que se refere a Offred, sabemos o quanto a identidade de mãe era importante e indissociável de sua antiga persona.

A maternidade, com suas cargas e mitificações, está entre uma das maiores disparidades da desigualdade de gênero — e, como tal, deve ser problematizada e discutida. Durante essa semana, nós, do Valkirias, estamos nos propondo a falar sobre o assunto. Como as mães são representadas? Como a cultura aborda o conceito de maternidade? Quais estereótipos permanecem sendo utilizados na caracterização de mães e da maternidade?

Vamos descobrir juntas.

Texto escrito em parceria por Analu e Thay.


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2 comentários

  1. Uma coisa que me assusta muito em O Conto da Aia é saber que Margaret Atwood não colocou nada nesse livro que já não tenha existido ou existisse ainda. É bem perturbador isso.

    Ótimo texto!

    1. Olá Sybylla! Que bom que gostou do texto. Esse livro é realmente assustador por causa disso, muito do que ela falava me dava socos no estômago porque parece que está muito próximo da nossa realidade, que bastava um estalinho acontecer tudo isso, sabe? ;/

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