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“O que é lembrado, vive”: a natureza selvagem e a solidão íntima de Nomadland

Chloé Zhao é, sem dúvida alguma, uma das melhores e mais íntimas diretoras trabalhando no cinema hoje. Com longas-metragens como Songs My Brother Taught Me e Domando o Destino no seu currículo, a diretora e roteirista cresceu em Pequim e, eventualmente, mudou para Londres, onde foi criada pelo pai. Suas experiências de uma vida diversa fazem parte orgânica das suas criações, assim como o fato de que ela prefere sempre colocar pessoas “normais” ou “locais” para atuar nas suas produções, dando autenticidade e realidade para aquilo que pretende explorar. Mas suas escolhas não necessariamente dariam certo caso Zhao não fosse uma cineasta extremamente talentosa, com uma voz que aborda assuntos íntimos de forma natural e sensível.

Tanto em Songs My Brother Taught Me como em Domando o Destino, os protagonistas são interpretados por atores que nunca apareceram nas telas antes — e que também fazem versões parecidas das suas próprias jornadas. O primeiro longa da sua carreira mostra a rotina de uma família superando suas próprias limitações, enquanto o segundo é sobre o peso das suas escolhas e como arcar com as consequências delas. O cenário árido é comum nas duas e apesar de ambas tratarem de assuntos complicados e até mesmo tristes, Zhao faz uma mistura pertinente ao balancear esses temas com momentos que são sensíveis, calorosos e humanos. O desempenho incrível que Zhao extrai de atores inexperientes é algo que vale a pena mencionar, bem como a forma que ela conta histórias de pessoas reais, extremamente íntimas e verdadeiras, sem fazer com que a trama se torne documental. Com Nomadland, seu novo filme e sua terceira produção, no qual assina a direção e o roteiro, no entanto, ela escolheu seguir por um caminho um pouco diferente.

Nomadland

Baseado no romance homônimo da escritora Jessica Bruder, a história de Nomadland acompanha uma mulher aposentada, Fren, vivida por Frances McDormand, vencedora do Oscar de Melhor Atriz por seu papel em Três Anúncios para um Crime. Apesar do elenco ser recheado de figuras reais — como é costume nas produções de Zhao — aqui a diretora optou por colocar McDormand, uma atriz incisiva e muito famosa, para viver o papel da protagonista. Além de estrelar a produção, ela também atua como produtora. E a cada momento do longa fica claro o quanto a parceria deu certo. Nomadland não só é um dos grandes favoritos na temporada de premiações, como também chegou a levar o Leão de Ouro, no Festival de Veneza, e o prêmio do público no Festival de Toronto. Sem contar suas várias indicações ao Globo de Ouro e seu favoritismo ao Oscar.

Atenção: este texto contém leves spoilers

Nomadland começa quando Fren perde sua casa em Empire, Nevada. Seu marido, que era funcionário de uma companhia de mineração, morreu apenas alguns meses antes após ser diagnosticado com câncer. Por viver em uma comunidade querida, ela escolhe não deixar o local, apenas para ver sua casa tomada de si pouco tempo depois. Sem filhos ou qualquer vínculo que a prenda em apenas um lugar, Fren passa a morar na sua van e procurar empregos temporários. É assim que ela conhece Linda May (uma das pessoas que interpreta ela mesmo), responsável por apresentá-la para uma iniciativa chamada Rubber Tramp Rendezvous, uma reunião de nômades que se encontra sempre no deserto. Esse grupo diferente de pessoas não só apresenta uma nova possibilidade para que ela possa seguir sua vida, como também oferece um senso de comunidade, ainda que diferente do que ela estava acostumada. Ao longo do filme, a jornada de Fren é explorada pelo seu novo estilo de vida e como ela tenta constantemente lidar com seus sentimentos de luto e perda em relação ao marido, sua casa e a vida que levava antes.

Além da atuação de McDormand e da forma como Zhao consegue arrancar desempenhos íntimos e verdadeiros de figuras que não necessariamente estão acostumadas com o ofício de atuar na frente das câmeras, o filme consegue se destacar pela forma quase episódica pelo qual conta seus eventos. A história de Nomadland se desenrola de forma lenta, mas isso não atrapalha a experiência, pelo contrário. O objetivo do roteiro é justamente abordar a vida solitária de Fren, assim como os contrastes que estão tão presentes na sua existência como uma mulher nômade. Se em um momento o longa mostra sua rotina cansativa e cruel em grandes corporações como a Amazon (onde ela consegue empregos temporários), em outros é possível vê-la apenas morando na sua van, na mais profunda natureza selvagem, no meio do deserto, perto de montanhas e paisagens isoladas, visitando grandes rochas e lagos. São nesses pequenos momentos, onde está exposta ao mundo natural, e não ao corporativo, que McDormand consegue se destacar como protagonista. Sua atuação faz Fren parecer mais viva do que nunca, ainda que nunca destoe completamente da sua personalidade introspectiva. É como se o cenário natural, a aventura, fizesse parte da sua essência, assim como parte essencial da vida recente que encontrou para si.

A personalidade introspectiva de Fren e a qualidade episódica da obra também é pontuada pela forma como ela está sempre ao redor das pessoas, escutando-as. Seu papel muitas vezes é observar, escutar e seguir em frente. Por isso muitas das figuras que passam pela sua vida e pela produção são temporárias, não importa o quanto elas tenham histórias marcantes, ou tristes, não importa o impacto que elas tenham na tela. Isso é uma forma de pontuar como tudo é efêmero na vida de Fren, assim como sua solidão e a forma como sua rotina se desenrola. Nomadland sabe que, apesar de sermos tão importante para algumas pessoas, todos estamos apenas de passagem.

Nomadland

Existe, obviamente, uma crítica sobre desigualdade que está embutida no longa-metragem. Ao contar a história de várias figuras que caíram na estrada e como elas “escolheram” esse tipo de vida, fica claro que nem tudo ali necessariamente se encontra no espectro da escolha, de uma forma ou outra. Na roda de conversas que Fren participa, ao procurar pela comunidade, podemos ver figuras que trabalharam anos em um mundo corporativo e se deram conta, tarde demais, que perderam tudo que era importante na vida. Mas também podemos ver pessoas cujo o ato de “cair na estrada” foi apenas uma consequência diante de como a vida os tratou. Histórias de perda, pessoais ou financeiras, morte ou afastamentos, e até mesmo a procura por superar sentimentos como a deslocação social são comuns. A própria Fren é uma vítima das circunstâncias, como Nomadland deixa claro.

Em certo momento, Fren vai visitar sua irmã, que leva uma vida totalmente oposta à sua: nos subúrbios, em uma grande casa, com churrascos entre amigos e um casamento e empregos estáveis. Na ocasião, sua irmã diz que Fren sempre foi incrivelmente corajosa e que suas partidas, que começaram desde o momento que ela casou, sempre deixaram um buraco no seu coração. Tendo crescido juntas e se tornado adultas completamente diferentes, existe um abismo entre elas — pontuado pelo estilo de vida, por contexto social, por suas personalidades distintas e até mesmo pelas circunstâncias. Fren seria quem ela é no longa se as coisas tivessem sido diferentes? Seus colegas de estrada seriam também? Talvez. Existe apenas uma fração de segundo que separa o que é do que poderia ter sido, mas a crítica é ao mesmo tempo sutil e óbvia demais. Se em um momento Fren está criticando o marido da irmã, um corretor de imóveis, pela forma como ele arranca todas as finanças das pessoas para que elas possam comprar uma casa que não podem pagar, na outra ela simplesmente escuta as pessoas ao seu redor e absorve as experiências deles para si. Em troca, oferece um pouco de si, como era a vida antes do marido. Esses momentos se entrelaçam de forma orgânica, fazendo de Fren uma figura complexa. Ela é forte e resiliente, mas ao mesmo tempo é vulnerável e insegura. É humana.

Sua experiência não necessariamente é igual a dos seus colegas, mas todos eles são ligados por esse sentimento de perda avassalador sendo que a única resposta possível para a superação foi procurarem a estrada e o conforto de seguir em frente, sempre indo em direção a algum lugar. A essência de Nomadland flui naturalmente, mas existe uma cena que capta muito bem toda ela, em resumo. Na cena em questão, o líder da reunião dos nômades, Bob Wells (vivendo ele mesmo), e a própria Fren conversam sobre suas decisões de levar uma vida na estrada. Para ele, foi o fato de que seu filho tirou a própria vida e, não conseguindo viver em um mundo sem ele, teve que procurar alternativas para seguir em frente. O líder explica, com muita sensibilidade, que às vezes, na estrada, ele passava dias, meses ou até anos sem ver alguns de seus colegas. Mas que eventualmente eles voltavam a ser, criando assim a certeza de que, eventualmente, ele veria seu filho de novo. Talvez em um contexto completamente diferente, mas veria.

Para Fren, que não perdeu um filho, mas sim a segurança de uma vida inteira e seu maior companheiro, o sentimento é parecido. Seguir em frente, estar em constante mudança, até que ela consiga encarar sua vida sem aqueles elementos. Juntos, ainda que separados pela estrada, eles lembram. Lembram daqueles que perderam e do que ficou para trás, ainda que sempre olhando para frente. “Quem é lembrado, vive”, diz Fren.

Nomadland

Na mesma conversa já citada no texto entre a protagonista e a irmã, Fren dá a entender que fazer o que ela faz, viver do jeito que vive, entre os nômades, não era uma questão de escolha, mas sim necessidade. Isso não necessariamente exclui a crítica às grandes corporações e condições de trabalho precárias, mas torna tudo muito mais complexo e menos determinante. As coisas podem, e geralmente têm, mais de um lado, e tudo bem.

Ao mostrar a rotina solitária de Fren enquanto viaja pelos Estados Unidos, de emprego em emprego, da indústria até a natureza selvagem, Chloé Zhao cria algo muito íntimo. Mesmo que a protagonista não tenha um lugar fixo no mundo, ou um conceito convencional do que é um lar, toda sua trajetória e solidão é mostrada com um olhar inclusivo. Isto é, incluindo o público na vida de Fren e daquelas pessoas como se fossemos partes intrínsecas da sua conexão com as pessoas, com a natureza e do processos de cura que são abordados ali. No final, fica claro que o conceito de “lar” é muito mais complexo para Fren do que era no início. Como cita uma das personagens do próprio longa: “Lar é apenas uma palavra? Ou algo que você carrega dentro de si?” — uma referência direta a música “Home is a Question Mark”, de Morrissey.

Depois de anos dirigindo filmes indies e após uma campanha extensa para Nomadland — que ainda está em andamento —, a próxima incursão de Zhao nos cinemas deve acontecer em breve, com a estreia de Os Eternos. A diretora irá adaptar os personagens criados na década de 1970 por Jack Kirby e trará um pouco da tão necessária representatividade para o universo expandido do estúdio nos cinemas — e, agora, também na televisão. Apesar de ninguém saber exatamente o que esse filme será, Nomadland lembra o quanto a produção poderá se beneficiar de um olhar tão marcante, orgânico e verdadeiro quanto o de Chloé Zhao. O cinema só tem a agradecer.

Nomadland

Nomadland recebeu 6 indicações ao Oscar, nas categorias de: Melhor Filme, Melhor Atriz (Frances McDormand), Melhor Diretor (Chloe Zhao), Melhor Roteiro Adaptado, Melhor Fotografia e Melhor Montagem.