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Nise da Silveira: a afetividade que muda o mundo

O pensamento tradicional funciona em grande parte com base em dualismos. A partir desses dualismos são construídos pares conceituais que se contrapõem entre si — alto/baixo, forte/fraco, racional/emocional, masculino/feminino — e que buscam organizar em algum nível todos os elementos e valores que compõem o mundo. A teoria feminista denuncia que, longe de serem construções neutras, esses dualismos recebem conotação sexuada, no qual o valor associado ao masculino é sempre considerado superior ao feminino. Essa sexualização dos dualismos tem uma relação muito próxima com os estereótipos de gênero, do que decorre a mentalidade social que identifica, por exemplo, sempre as mulheres com o emocional.

Ainda que não se possa esperar que as mulheres — como seres humanos completos que podem ter propensão natural a quaisquer características, e não só àquelas associadas tradicionalmente ao feminino — correspondam sempre ao estereótipo imposto, é igualmente importante reconhecer que, como resultado dos processos de socialização, as características consideradas femininas acabam sendo com mais frequência encontradas entre as mulheres. Isso não quer dizer que as mulheres sejam naturalmente mais emocionais, cuidadoras ou pacíficas, e sim que os seres humanos do sexo feminino são socializados desde o nascimento de forma a encorajar essas características.

Longe de defender a manutenção dos estereótipos de gênero, que por si só limitam as potencialidades dos seres humanos e marginalizam aqueles que os rejeitam, é importante destruir a hierarquia entre os valores socialmente considerados femininos e masculinos para que possamos construir uma sociedade melhor. No curso da história de dominação das mulheres pelos homens, os valores masculinos, que incluem a neutralidade e a racionalidade, determinaram as características desejáveis, que deveriam guiar a vida pública, e criaram espaços que são por isso hostis e excludentes para as mulheres, que têm como únicas escolhas se conformar a esses valores ou se confinar ao espaço doméstico (tradicionalmente feminino e mais ligado à área afetiva). A busca da criação de uma sociedade mais igualitária, entretanto, passa pelo que pode ser considerado a “feminização” da esfera pública — e isso é muito mais do que a simples inclusão de mulheres nesse espaço. Um ótimo exemplo desse processo é a vida de Nise da Silveira, e pode ser observado no filme Nise: O Coração da Loucura, protagonizado por Glória Pires.

Nise, psiquiatra alagoana discípula de Carl Jung, nascida em 1905 e dona de uma história de vida impressionante, revolucionou o tratamento de pessoas com transtornos mentais através do que é tradicionalmente conhecido como “terapia ocupacional” por meio da arte. Com ênfase na re-conexão com seus sentimentos e no conceito de afetividade, ela buscava dar ferramentas para a expressão das imagens do inconsciente, visando sempre a reintegração social dos clientes (Nise rejeitava o uso do termo “paciente”). Nise foi em sua época, e pode ser considerada até hoje, uma força humanizadora da psiquiatria, expondo em cada centímetro do seu trabalho a importância da reconexão dos seres humanos com seus próprios sentimentos — tão rejeitada pela socialização masculina — para a reconstrução de seres humanos integrais e saudáveis.

Nise: o coração da loucura

O filme mostra muito claramente o contraste entre Nise e a psiquiatria tradicional, corporificada pelos outros psiquiatras que trabalham no mesmo centro, focados em terapias altamente violentas e na alienação dos clientes. O conflito é mais claramente expresso na contraposição entre a linha de tratamento defendida por ela e a lobotomia defendida por um dos outros médicos. A lobotomia, ainda muito usada na época para tratar casos de esquizofrenia, consiste no procedimento cirúrgico que rompe as ligações entre determinadas regiões do cérebro, reduzindo a reatividade emocional das pessoas a ela submetidas — o ápice da negação dos sentimentos e contraponto mais radical à ênfase na afetividade do trabalho de Nise.

Ao que parece no filme, Nise é a única médica mulher trabalhando no hospital, e é abertamente hostilizada, questionada e menosprezada pelos médicos homens. Ela não representa apenas o diferente, como o perigoso — aquilo que é, paradoxalmente, ao mesmo tempo desprezado e temido, como em geral é tudo o que é associado ao feminino. Para prosperar e conseguir algum reconhecimento para a validade e importância de seu tratamento, Nise precisou recorrer ao campo da arte, sendo inicialmente rejeitada pela sua área natal, a ciência. Como área do conhecimento, a ciência não é apenas dominada fortemente por homens, como regida por valores associados ao masculino. As contribuições de mulheres nesse campo, ainda que estejam longe de serem insignificantes, são com muita frequência omitidas, invisibilizadas, roubadas. Nesse contexto, Nise cometeu a dupla ousadia de se intrometer em um espaço que não era seu, e se recusar a jogar o jogo pelas regras estabelecidas.

Se, por um lado, Nise é essa partidária ferrenha da afetividade e da não-violência no tratamento de pessoas com transtornos mentais, por outro ela é uma defensora feroz e ferrenha dos seus clientes, que não se acovarda ou amedronta em momentos de conflito. A médica traz uma concepção completamente nova de loucura e normalidade, centrada no indivíduo ao invés da sociedade, e na dignidade humana. Ela reconhece os sentimentos e a afetividade como partes essenciais e inerentes à condição de ser humano, que precisam ser reconhecidos e manifestados para que se viva uma vida plena. Essa é uma abordagem claramente feminina, mas não por ser trazida por uma mulher — valores femininos e masculinos, igualmente válidos e importantes, estão presentes em todas as pessoas e não podem nem devem ser reprimidos, sob pena de perda de parte da nossa humanidade — e sim por trazer para o plano central esses valores identificados socialmente como femininos.

Nise: O Coração da Loucura é um filme emocionante que precisa ser amplamente assistido e discutido em todas as suas nuances, para que as lições de Nise da Silveira possam alcançar um público mais amplo do que seria possível sem esse meio. O mundo precisa conhecer essa mulher revolucionária que trouxe a afetividade e os sentimentos como formas de mudar o mundo 70 anos atrás, before it was cool.