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Maternidade: não precisamos ser perfeitas

“Desde que eu tive filhos, estou sempre atrasada”. É assim que Amy Mitchell (Mila Kunis) se apresenta no início do filme Perfeita é a Mãe (2016). E ela não está totalmente errada. Estar atrasada vira uma característica bem presente quando nos tornamos mães. Pra mim virou, pelo menos. O bebê suja a fralda quando estamos prontas para sair, vomita na sua roupa, dorme, chora. São muitas variáveis que influenciam a logística. Os bebês não estão nem aí para horários e padrões ou convenções sociais, eis aqui uma verdade. Depois que eles crescem, essa realidade não diminui, porque são muitas demandas e muitos pratos para conseguir manter girando no ar; como é o caso da protagonista, que faz tudo sozinha e, obviamente, está sempre correndo de um lado para o outro naquele ritmo frenético de quem precisa dar conta de tudo o tempo inteiro.

O filme é uma comédia daquelas com muitas cenas exageradas, câmera lenta e palavrões e, sinceramente, quando me sentei para assisti-la, num sábado à noite com meu marido, depois de colocarmos nossa filha de quase três anos na cama, não esperava reflexões profundas sobre a vida nem nada do tipo; só queríamos algo leve depois de um dia no batente. Mas, no meio do filme, a gente já ria daquele jeito nervoso de quem passa por coisas muito semelhantes. Não foi difícil sentir uma identificação com as personagens. Não tanto por viver coisas iguais ao pé da letra, mas sim pelos sentimentos, pelas intenções dos atos, por algumas vontades que, mesmo que tenham acontecido numa tela ficcional e dentro de um recorte social muito diferente do meu, ainda conseguem ser os mesmos.

Gosto de conversar sobre coisas aparentemente improváveis, então é claro que podemos abrir esse diálogo sobre o peso da perfeição na maternidade a partir de um filme exagerado. Não é preciso estar num divã, não precisa ser na cena indie. Os insights podem vir de qualquer lugar, a qualquer tempo, basta que a gente se abra pra isso. Os grandes estereótipos funcionam como lente de aumento mesmo, para que a gente enxergue essas pequenas situações que são normalizadas dia após dia, mas que, vistas mais de perto, estão muito longe de serem normais. Por exemplo, dificilmente você e eu almoçaríamos uma marmita de macarrão enquanto dirige em alta velocidade, ou precisaríamos causar a desordem num supermercado para sentirmo-nos mais livres. Mas dá para entender o recado; porque ele é muito claro: não existe esse lugar sagrado, esse pedestal que nos colocam a partir do momento em que nos tornamos mães.

Quem se beneficia da ideia de que ser mãe é padecer no paraíso? A quem interessa a aura de plenitude e amor incondicional da mãe, esse ser que tudo suporta e tudo dá conta? Com certeza, não é por nós mesmas que existe tudo isso. No filme, enquanto a personagem principal prepara refeições, leva os filhos na escola e em outras atividades, trabalha e dá conta dos projetos escolares do filho e de aguentar os julgamentos alheios, seu marido cochila durante a tarde inteira depois de duas reuniões de trabalho — nem parece que os dois dividem o mesmo ambiente (não por acaso, ela o chama de terceiro filho). Ao mesmo tempo, a amiga, Kiki (Kristen Bell), é a esposa submissa ao marido que tem que lidar com quatro filhos além de todo o resto. Apenas a mãe solo, Carla (Kathryn Han), não leva a vida tão a sério. Na vida real ser uma destas mães está longe de ser tranquilo, mas só o fato de não ter que se preocupar com homem dentro de casa atuando como um peso morto soa quase como uma realidade a ser invejada. Contudo, Perfeita é a Mãe não chega a essa ponto: as três se tornam amigas e vão curtir a vida juntas de um jeito meio irresponsável, é verdade, mas sem julgamentos entre si.

Esse último item fica por conta de outras mães da escola, que são uma espécie de evolução das garotas mais populares de outrora, que dominavam tudo e todos — e é por isso que as três se tornam amigas também: nenhuma se encaixa naquele cenário, não do jeito como é exigido. Ali, no ambiente escolar, acontece o mesmo que em grupos de pracinhas do bairro ou em grupos fechados pela internet afora: a importância das aparências e o apego às regras tornam-se validadores da qualidade da maternidade que exercemos. A cena da festa do bolo é uma paródia bem real do que acontece do lado de cá: muita regra, muita teoria, muita fiscalização. Nenhuma conversa sobre vida real, particularidades de cada família e os desafios de tentar adequar-se às pesquisas científicas mais recentes com a nossa identidade. É apenas uma disputa de egos entre adultos, ninguém está muito interessado nas crianças, afinal de contas, é claro que isso é o melhor para elas.

Ser uma mãe perfeita tem muito mais a ver com o que os outros pensam de você do que com a relação que você constrói com os seus filhos. Ou seja, é uma perda de tempo. Já está provado que não importa o que façamos, sempre vai ter alguém para falar que poderia ser de outro jeito, um jeito melhor, então pra que tanto desgaste em querer agradar? Não é fácil. Essa teórica tranquilidade em viver a vida sem se importar com o que dizem ou pensam não é moleza. Existem pessoas próximas que, mesmo querendo ajudar, colocam caraminholas na nossa cabeça; existe a tentativa e o erro de cada dia, e existe, ainda, o tal pertencimento: o que fazemos, no final das contas, é para pertencermos a lugares, grupos sociais e pessoas. É claro que isso é bom e que precisamos, enquanto seres humanos, fazer parte de um grupo e viver em comunidade, mas forçar demais a barra e ceder às pressões que nem sabemos direito de onde veio, torna tudo mais complicado. No fim do dia, enquanto estivermos sentindo o cansaço até o último fio de cabelo, nenhuma das vozes externas estarão lá para nos fazer companhia — muito pelo contrário, aliás.

Curiosamente, mesmo minha filha, que tem um pai presente, e em outras famílias que também compartilham esse mesmo contexto, a responsabilidade continua caindo no colo da mãe. Como se o que eles fizessem fosse apenas um favor. Enquanto ser mãe for sinônimo de acertar tudo e ter sempre certeza, vamos continuar sendo oprimidas e sentindo aquele famigerado fracasso. Porque é óbvio que essa é uma conta que não fecha. E não é preciso que feche. A responsabilidade não é só nossa. Se estou dando conta de tudo, é porque alguém não está fazendo a sua parte. É muito fácil culpar a mãe quando se está com o sono em dia e tendo sua vida afetada de forma muito pequena pelo nascimento de um bebê. Assim, a única conta que precisa fechar é a nossa saúde, física e mental.

Não existe regra que impede as mães de descansarem, badalarem e irem fazer o que quiserem, quando quiserem. Mas ninguém nos incentiva ou age com naturalidade diante do assunto; algo que o filme faz com louvor: ele entende que temos necessidades particulares, que somos humanas antes de mães, e escancara o fato de que, sim, nós também precisamos de diversão. E que muitas vezes seremos mães ruins: não por ter feito algo criminoso com as crianças, mas só por não termos atendido às expectativas externas mesmo. Não precisamos ser perfeitas. Ser uma mãe possível me interessa muito mais, tanto pra mim, que respeitarei minhas vulnerabilidades, quando para minha filha, que desde cedo vai saber que o fato de ser mãe não me isenta de cometer erros e tropeçar no meio do caminho. Os outros são os outros e eles que aprendam a conviver com nossas limitações — não é isso que nos cobram tanto a ensinar? Quem sabe assim, aquela pressa e aquele atraso comecem a dar lugar a algo mais presente e mais saudável, não porque desistimos, mas porque não estamos mais tão sozinhas.

Marina Matos é escritora, mãe e está em constante movimento. Acredita no poder curativo da palavra escrita, na meditação como pílula da calma e na maternidade como ferramenta de transformação. Anda descalça, come sanduíche depois das onze da noite e tem um desejo constante de ajudar as pessoas a gostarem de ser quem são. Siga-a no Instagram e leia mais em Travessia Materna e em Ressignificância.