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Não há prisão para a alma: a história de Sór Juana Inés de La Cruz

O desejo avassalador de escrever preso em um corpo de mulher. Uma prisão de poucos espaços. Às mulheres, o espaço da vida religiosa, do casamento, das costuras, dos bordados, da cozinha e o cuidado dos filhos que conservam envoltos nas barras de suas saias. Nenhum outro é permitido a elas. Em meio a esse desejo de adentrar espaços interditos, alimentado por muitas, conquistado por poucas, surgiu Juana Inés de Asbaje, mais conhecida como Sór (Irmã) Juana Inés de La Cruz, uma freira e escritora do período barroco hispano-americano do século XVII.

Juana Inés nasceu em 1651, no povoado mexicano San Miguel Nepantla, vinda de uma família pobre. Sua mãe, Isabel Ramírez de Santillana, possuía uma reputação negativa por ter tido filhos sem casar-se, porém era de descendência espanhola, chamada à época de “criolla”, uma classe social considerada acima dos povos mexicanos nativos e mestiços, mas ainda abaixo dos espanhóis de nascimento. O pai de Juana Inés foi Pedro Manuel de Asbaje y Vargas Machuca, um militar espanhol de uma província basca, que ela nunca chegou a conhecer além de pouco saber sobre a veracidade desse dado. A origem relativamente simples de Juana Inés e sua paternidade incerta geravam preconceitos nos espaços em que ela circulava e, desde muito cedo, enfrentou as barreiras sociais que lhe eram impostas.

Desde criança, Juana Inés mostrava-se curiosa e ávida por conhecimento, aprendeu náhuatl (idioma asteca) com seus vizinhos e aos três anos de idade aprendeu a ler e escrever em espanhol com ajuda da professora de seus irmãos, que a menina observava às escondidas. Quando adolescente, ficou profundamente fascinada pelos livros da biblioteca de seu avô, na qual, de forma autodidata, educou-se em diversas áreas de conhecimento. Depois desse evento, tentou persuadir sua mãe a deixá-la ir à Universidade vestida de homem — uma vez que só os homens poderiam frequentar o local —, mas a mãe não concordou, autorizando-a apenas a mudar-se para a casa de familiares na capital mexicana. Neste período, Juana Inés candidatou-se como dama de companhia na corte vice-real.

Juana Inés

A série televisiva Juana Inés percorre este momento de sua vida e é com a entrada da jovem Juana Inés na corte que o enredo inicia-se. A produção audiovisual é uma dramatização baseada em fatos da vida de Juana Inés de La Cruz, composta de sete episódios, é uma co-produção entre o mexicano Canal Once e Bravo Films. Liderada por Patricia Arriaga-Jordán, foi adicionada ao catálogo da Netflix em janeiro desse ano. A série ganhou pouco destaque entre o público da Netflix no Brasil, e mantém-se como um pequeno tesouro escondido, mas sua relevância está não apenas por apresentar a história de uma das principais figuras do século de ouro da literatura hispano-americana, mas também por ser produzida por uma mulher e estar fora do eixo EUA-Europa de produções. A série possui um impecável acabamento de produção, com uma bela ambientação e figurinos bem cuidados, inclusive, um dos primeiros figurinos da jovem Juana Inés a serem apresentados tem por referência uma das poucas pinturas da época em que ela foi retrata, de autor desconhecido. A produção conta ainda com um elenco predominantemente mexicano e foi toda realizada em espanhol.

Juana Inés viveu durante a segunda metade do século XVII, época em que o México era uma colônia da Espanha, chamado então de Nova Espanha. Para reger o território, a corte enviava para o local uma “segunda corte”, o vice-rei e a vice-rainha. Juana Inés ganhou grande prestígio ao ser querida por esta corte e estabelecer um íntimo contato com duas vice-rainhas que por ela passaram: Leonor Carreto (Marquesa de Mancera), e mais tarde, María Luiza Manrique de Lara y Gonzaga (Condessa de Paredes e Marquesa de Laguna). Da primeira, Juana Inés foi dama de companhia, com a segunda, estabeleceu um forte laço de amizade, tendo sido ela a responsável pela divulgação e publicação dos trabalhos de Juana Inés na Espanha. Entretanto, há poucos registros sobre a temporada em que Juana Inés viveu na corte como dama de companhia, e talvez por isso a série tenha escolhido explorar sua trajetória a partir desse período, no qual trabalham com liberdade poética.

Na atualidade, muitos rumores são levantados sobre a orientação sexual de Juana Inés: a leitura de diversas de suas cartas e de seus poemas de ocasião abre margem para que se interprete que sua elogiosa poética dedicada às vice-rainhas, especialmente María Luiza, tenha sido uma profunda paixão. Juana Inés nunca escreveu abertamente sobre o assunto, mas alega em sua carta “Respuesta a Sor Filotea de la Cruz” que nunca escreveu coisa alguma por sua “própria vontade, senão por rogos e preceitos alheios”. No entanto, o teor de seus versos é ainda hoje questionado e as opiniões dividem-se entre os que defendem que seriam declarações de amor e os que acreditam que os escritos são apenas uma cortesia comum à época. A série se mantém na primeira hipótese, representando na ficção, cenas de um amor lésbico de Juana Inés.

Juana Inés

A série tem como foco as questões mais íntimas da vida da grande escritora, especialmente sua relação com os estudos e sua intensa ligação com a escrita. Entretanto, o compartilhamento explícito de seus escritos é pouco explorado, ainda que o texto dos diálogos trabalhe com diversas alusões ao conteúdo de seus versos. A série aborda, particularmente, a forma como Juana Inés adota os votos religiosos em busca de um espaço para se dedicar à sua vida intelectual e como, neste caminho, enfrentou a hierarquia clerical. No episódio seis (“Detened la Mano”), Juana Inés comenta “Meu único pecado é ser mulher”, frase que define sua luta e os percalços expostos na série. Em um tempo em que ser mulher era estar aprisionada a atividades consideradas menores, Juana Inés precisou escolher entre o casamento e a vida espiritual — ela ficou com a segunda opção, apesar das obrigações eclesiásticas, pois era a vida que dava a ela algum tempo para dedicar-se aos estudos.

Em sua época, Sór Juana Inés sofreu duros ataques de religiosos que desprezavam o trabalho intelectual das mulheres e esforçavam-se por relegá-las a seus espaços-prisões. Sua resposta a eles veio por meio da escrita, visto que, em seus trabalhos, Juana Inés defendia o direito das mulheres estudarem e cultivarem suas mentes, igualando suas capacidades a dos homens, e suscitando questionamentos sobre diversas crenças a respeito da condição feminina. Pela repercussão de seus escritos, Juana Inés foi chamada de A Fênix da América e também A Décima Musa, seus trabalhos eram apreciados por toda a alta sociedade da capital da Nova Espanha. A maior parte de sua obra, composta de versos sacros e profanos, canções e peças teatrais, foi escrita no período em que passou como freira na Ordem das Jerônimas, os 27 anos finais de sua vida. Juana Inés dedicou-se intensamente aos estudos e reuniu livros e obras artísticas em sua biblioteca no convento, porém, ao aventurar-se pelo universo da teologia, foi duramente repreendida pela cúria dirigente da Igreja Católica. Foi então que perdeu o acesso à sua biblioteca e, pouco tempo depois, em 1695, faleceu em decorrência de uma peste que assolou o convento.

A série nos permite visualizar a trajetória de resistência de Sór Juana Inés diante da condição imposta à mulher em sua época, mas também problematizar o machismo presente na sociedade contemporânea, que ainda reserva à mulher espaços que são a ela interditos. Em tempos onde somos atraídas por representações de mulheres poderosas e subversivas no cinema (como Mulher-Maravilha), e por destacar o discurso de personagens femininas que levantam questões de gênero e discutem sobre o machismo em seus grupos (como Hannah na série 13 Reasons Why e Samantha na série Dear White People), é importante reconhecermos também o pensamento de mulheres que construíram essa luta desde séculos antes de ser nomeada. Agora, ao passo de um clique, temos a chance de adentrar na história desta que é considerada a primeira feminista das Américas, que, em seu tempo — em plena Inquisição e período colonial mexicano — lutou pela emancipação intelectual da mulher.


As referências para a construção desse texto ficam também como outras sugestões:

Para ler a obra completa de Sór Juana Inés de La Cruz é preciso procurar por edições em espanhol. No Brasil, diversos de seus poemas foram traduzidos na edição Letras Sobre o Espelho, organizada e traduzida por Teresa Cristófani Barreto em 1989, pela Editora Iluminuras. Para saber mais sobre sua biografia, em português temos a tradução em 1998, pela Editora Mandarim, da obra do crítico e poeta mexicano Octavio Paz intitulada Sóror Juana Ines de La Cruz: As Armadilhas da Fé. E, em 1990, foi lançado o filme Yo, la Peor de Todas, dirigido por María Luisa Bemberg, cujo enredo foi baseado nos estudos de Octavio Paz.

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