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Nada Ortodoxa: o valor da memória

Nada Ortodoxa, minissérie lançada pela Netflix em março deste ano, é uma coprodução germano-americana inspirada no livro autobiográfico de Deborah FeldmanUnorthodox: The Scandalous Rejection of My Hasidic Roots (2012). A minissérie narra a jornada de Esty Shapiro (Shira Haas), uma jovem nascida e criada na comunidade hassídica Satmar — uma das linhas ultra ortodoxas do judaísmo, estabelecida por judeus sobreviventes do Holocausto —, em Williamsburg, em Nova York, que foge para Berlim, deixando para trás seu casamento arranjado e, principalmente, as expectativas da tradição hassídica destinadas à ela.

A trama de Nada Ortodoxa transita entre o presente e o passado, para poder contar os motivos e as consequências da fuga de Esty. É assim que embarcamos na jornada de recomeço da protagonista e na “missão” de Yakov Shapiro (Amit Rahav), seu esposo, de encontrá-la. Tanto Esty quanto Yakov, que viaja para Berlim com Moishe Lefkovitch (Jeff Wilbusch), seu primo, encontram-se em um mundo novo e, querendo ou não, acabam descobrindo e vivendo situações inesperadas e de autoconhecimento.

Apesar da narrativa poder soar clichê e como algo “já visto”, a trama se destaca pela sensibilidade e por apresentar ao telespectador a cultura das comunidades judaicas ultraortodoxas e questões relacionadas a memória dos espaços e das marcas dos acontecimentos históricos nos grupos sociais.

Nada Ortodoxa

Nos dias de hoje, é impossível assistir uma produção audiovisual que trate dessa temática sem traçar um paralelo com a própria realidade: a derrubada de estátuas, como a do traficante de escravos Edward Colston, em Bristol, na Inglaterra, e a decapitação da estátua de Cristóvão Colombo, um explorador do Novo Mundo, em Boston, nos Estados Unidos, em manifestações antirracistas deflagradas após o assassinato de George Floyd. O caso de Floyd soma-se aos inúmeros casos de violência policial contra a população negra nos Estados Unidos (e no mundo): George Floyd é morto por asfixia, por Derek Chauvin, um policial branco, enquanto falava “I can’t breathe”, “eu não consigo respirar”.

A ação dos manifestantes de derrubar esses monumentos (re)aquecem as discussões sobre a manutenção de monumentos que prestam homenagem a figuras históricas que promoveram a escravização e o genocídio de povos africanos e indígenas. Ou seja, o mundo está debatendo o caráter simbólico dos seus monumentos e, consequentemente, a memória e a construção histórica que permitiram a conservação desses espaços. Assim como no mundo real, Nada Ortodoxa apresenta e debate questões relacionadas a memória, como seus usos e construção. No decorrer dos episódios, a minissérie deixa algo muito claro: os lugares possuem (e ressuscitam) memórias. Os espaços não estão alheios aos acontecimentos históricos, portanto, acabam adquirindo, com o passar do tempo, diferentes significados.

Logo no primeiro episódio, já em Berlim, a protagonista se enturma com um grupo de jovens músicos, de diferentes origens étnicas, e acaba acompanhando-os ao lago Wannsee. Ao chegarem ao destino, Robert (Aaron Altaras), apresentado a Esty como a pessoa que pode “falar tudo sobre a guerra”, conta a personagem que a beira deste lago se encontra a Villa Wannsee. O lugar é conhecido por ter reunido lideranças nazistas na conferência que decidiu o genocídio da população judaica, durante a Segunda Guerra Mundial. Questionado por Esty do porque eles frequentam aquele lago, Robert diz: “o lago é só um lago”.

Nada Ortodoxa

De acordo com o historiador francês Pierre Nora, a memória é viva, portanto, esse lago expressa a “dialética da lembrança e do esquecimento”, ou seja, a constante transformação do significado de um local, e, consequentemente, das memórias ligadas a ele. A minissérie apresenta, além das memórias relacionadas a “locais comuns”, como um lago ou uma praça destinada à crianças, os chamados lugares de memória, locais construídos com o intuito de resguardar uma memória coletiva. Os lugares de memória, como, por exemplo, museus, monumentos, memoriais, cemitérios e arquivos, são criados, de acordo com Nora, por que não há memória espontânea. Nesse sentido, assim como a construção de monumentos, a própria afirmação de que o “lago é só um lago”, é resultado de um processo, que não deve ser compreendido como natural, mas como consequência de conflitos, paixões e demandas sociais.

Mais adiante na minissérie, ao ser confrontada por Moishe sobre querer viver e criar sua/seu filha/filho em um lugar marcado pela morte de milhares de almas judias, Esty responde que os mortos sempre os acompanharão, independentemente do local. Nessa cena, pode-se perceber que apesar de Moishe utilizar a memória do Holocausto como um “instrumento” de coerção, ou seja, como uma maneira de fazer Esty voltar para casa, a protagonista entende que esse trauma vive com as pessoas de sua comunidade, não importando o local em que elas estejam, e que, portanto, não justifica o seu retorno a Williamsburg.

Apesar disso, a minissérie não reinventa a roda. Mas não se engane, Nada Ortodoxa não precisa disso. A minissérie entrega personagens vulneráveis e temáticas importantes, sendo, (na minha opinião) seu principal triunfo tratar a memória como algo vivo, que acompanha os diferentes grupos sociais, seja libertando ou aprisionando-os.

4 comentários

  1. Que texto gostoso de ler. A articulação com os acontecimentos recentes com a série ficou incrível. Mais uma vez fui fisgada pela escrita de vocês e irei começar essa série o mais rápido possível.

  2. O texto é um convite aberto a uma série que nos faz perceber a correlação de história e memória nos recursos audiovisuais de uma maneira direta e espontânea. Muito bom!

    1. Isso mesmo! A minissérie consegue fazer isso de maneira muito sutil, sem forçar a barra 🙂

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