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Mulheres no poder e o paradoxo do primeiro-cavalheiro

A presença de mulheres no posto de tomada de decisão é mais antiga do que imaginamos. Sem contar cargos políticos de escalão hereditário, como rainhas e duquesas, a primeira mulher a se tornar presidente foi Maria Estela Martinez de Perón, também conhecida como Isabelita Perón. Ela se tornou substituta ao entrar no lugar de seu marido na presidência da Argentina, no ano de 1974.

Depois dela, muitas outras soberanas vieram a ocupar o posto e, no ano de 2015, o número chegou a 19 presidentas e primeiras-ministras no poder ao mesmo tempo. São ou foram elas naquele ano: Dilma Roussef, no Brasil; Cristina Kirchner, na Argentina; Michelle Bachelet, no Chile; Sheikh Hasina Wajed, em Bangladesh; Park Geun-hye, na Coreia do Sul; Ellen Johnson Sirleaf, na Libéria; Portia Simpson-Miller, na Jamaica; Laimdota Straujuma, na Letônia; Dalia Grybauskaite, na Lituânia; Atifete Jahjaga, em Kosovo, Marie Louise Coleiro Preca, em Malta; Ewa Kopacz, na Polônia; Angela Merkel, na Alemanha; Helle Thorning-Schmidt, na Dinamarca; Kolinda Grabar-Kitarovic, na Croácia; Nicola Sturgeon, na Escócia; Erna Solberg, na Noruega; Catherine Samba-Panza, da República Centro-Africana e Kamla Persad-Bissessar, em Trinidad e Tobago.

Se fizermos os cálculos da relação entre países versus mulheres governantes teríamos, então, um percentual de menos de 10% de representantes femininas na política. O cenário muda quando falamos sobre primeiras-damas, em que mulheres possuem uma representação de 90%. Por definição, o termo primeira-dama refere-se, literalmente, à mulher esposa de um homem com cargo político em atividade. Quando falamos sobre responsabilidades e atividades que essa figura pública desempenha, elas são restritas, principalmente, a ações sociais. A essas mulheres reserva-se pouco ou nenhum poder de decisão, além de serem submetidas a rigorosas regras de conduta, transformando-as muito mais em figuras complementares do que ativas. Porém, já tivemos um caso bastante conhecido que comprova o quanto depende muito do próprio governante delegar atividades à sua primeira dama: o caso Michelle Obama.

Uma representante completamente engajada em causas periféricas e que trouxe atenção a assuntos antes não tratados de forma tão direta, Michelle é casada com o ex-presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, que lhe deu, durante seu mandato, toda a liberdade para tratar de campanhas importantes, fossem elas voltadas para questões sociais, de raça ou de gênero. E ela não desapontou nem um pouco: às vezes, era comum que o nome de Michelle e suas ações sobressaíssem o próprio governante — bem diferente de tantos outros casos, como no Brasil, em que a primeira-dama aparece como um mero acessório ao lado do marido. Mas e quando o papel de figurante é dado a um homem? Se todas as rainhas, primeiras-ministras, presidentas fossem casadas, a esses homens seria concedido o título de primeiro-cavalheiro. Mas o que faz um primeiro-cavalheiro? Como é sua relação com o poder e com o cargo da esposa?

Não surpreendentemente, a sociedade trata esses dois papéis de forma bastante distinta. Se às primeiras-damas é reservado o cuidado e o envolvimento com causas sociais ou trabalhos humanitários, aos primeiros-cavalheiros as atividades servem, muitas vezes, como um complemento às atividades da esposa, voltadas para questões políticas ou trabalhos com maior nível de complexidade.

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O caso me chamou a atenção principalmente após assistir o seriado da Netflix, The Crown, cuja história acompanha a transformação da Princesa Elizabeth (Claire Foy) em Rainha Elizabeth II. Com apenas 25 anos, casada com o Duque Philip (Matt Smith) e com dois filhos pequenos para criar, Elizabeth teve de assumir o posto de seu pai, o Rei George VI, quando este adoeceu e morreu precocemente. A história foi recriada a partir do reinado da própria Rainha Elizabeth II, do Reino Unido e, embora conte com algumas liberdades, consegue ser bastante eficiente ao expor de forma clara e sem rodeios as dificuldades enfrentadas pela nova rainha, que também incluem a relação com o marido. Quando Lilibet teve que encarar essa grande responsabilidade, consequentemente toda a sua organização familiar foi abalada. Eles tiveram que sair de sua antiga residência para viver no Palácio de Buckingham, seus filhos passaram a ser educados em casa e Philip, o marido, teve que largar suas funções na Marinha para se tornar consorte político. Em um primeiro momento, a Philip é reservado um papel mais próximo ao de uma primeira-dama e não ao de um primeiro-cavalheiro: ele preocupa-se com a decoração da casa em que vivem, passa mais tempo com os filhos e não tem voz ativa sobre a função da esposa como monarca. Ele possui o mesmo nível de atenção e responsabilidade que uma primeira-dama teria, mas, ao contrário destas, não aceita a posição de bom grado.

A relação entre marido e mulher, antes harmônica, passa a não existir mais quando Philip começa a se considerar inútil em sua função. Ele começa a sair com seu amigo e Secretário Particular, Mike Parker (Daniel Ings), dia e noite, frequenta bares e clubes “para homens” e não ajuda Lilibet em absolutamente nada, pelo contrário. Quando precisa acompanhá-la em eventos oficiais, Philip está sempre de cara emburrada, como quem diz não gostar de estar ali. De sua parte, não há qualquer esforço para tornar a vida de Elizabeth mais fácil, o que eventualmente o transforma em um problema aos olhos de pessoas próximas, como a Rainha Mãe (Victoria Hamilton) e Tommy Lascelles (Pip Torrens), Secretário Particular de Elizabeth — com toda a razão.

Mas e as mulheres que são acompanhantes de governantes? Elas também não precisam abdicar de suas vidas em função do esposo? E elas reclamam, deixam de participar da vida em sociedade e exigem atenção redobrada? Dificilmente. Às mulheres, ao que parece, seguir o protocolo que uma posição pública exige, ter calma, representar a família e o equilíbrio no lar, abdicar de seus desejos e individualidades são tarefas… naturais. “Por trás de um grande homem sempre há uma grande mulher”, diz o ditado, e existem, de fato, grandes mulheres, mas que são limitadas a estar sempre um passo atrás do homem a quem representam. Como lembra a Rainha-Mãe, Philip é o príncipe consorte que teve mais liberdade na história do Reino Unido, mas seu agradecimento é ficar sempre de cara fechada. É verdade que, por fazer parte da família real, ele precisa abrir mão de muitas coisas, além de ser proibido de outras, como passar adiante o nome de sua família e cursar aulas de voo. Mas isso também acontece com as mulheres, quando não restrições maiores, e é preciso pensar por que existe essa disparidade no tratamento dispensado a homens e mulheres que ocupam as mesmas posições, a quem são feitas exigências, e como a questão insere-se nesse contexto, indo de encontro aos modelos tóxicos construídos pela nossa sociedade do que significa ser mulher e do que significa ser homem; do que significa ser primeira-dama, do que significa ser primeiro-cavalheiro.

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Ao ver todas as situações pelas quais Elizabeth II foi submetida para chegar onde chegou e analisar esse outro lado do poder, no qual nunca tinha parado para pensar antes, nota-se claramente como mulheres sofrem muito mais consequências do que homens, estejam elas de um lado ou do outro. Isso me lembra outra referência, dessa vez sem qualquer base na realidade, mas que também aborda as muitas regras da realeza: O Diário da Princesa. No segundo filme, diferente da narrativa original escrita por Meg Cabot, Mia (Anne Hathaway), agora uma princesa, precisa se casar antes de assumir o trono real. Isso praticamente a obriga a fazer parte de um casamento arranjado, sem paixão ou qualquer sentimento, conveniente apenas para o cumprimento de uma regra sem sentido. Mia enfrenta o Parlamento e na ocasião dá todos os motivos que justifiquem o absurdo da regra, seu retrocesso e teor sexista. Muitos reis governavam sem primeiras-damas, afinal, então por que rainhas não podiam estar no posto sem primeiros-cavalheiros?

Como a primeira temporada de The Crown, O Diário da Princesa evidencia as disparidades de gênero presentes na monarquia, seja ela uma história de ficção ou baseada com alguma liberdade em fatos reais. Entretanto, em seu segundo ano, The Crown muda o foco e passa a contar sua história em muito baseada na perspectiva de Philip, na tentativa de fazer entender o por quê do seu comportamento. Mais do que um marido inconveniente e muitas vezes insuportável, Philip é um reflexo da construção tão velha quanto o mundo de que homens e mulheres devem desempenhar funções pré-determinadas e, uma vez que fogem a esse padrão, mesmo que de forma sutil, passam a ser vistos com maus olhos. Como muitos homens criados para serem líderes e provedores do núcleo familiar, Philip temia esse olhar e não se sentia confortável em fazer parte de uma família em que ele não fosse o chefe. Como rainha, Elizabeth tem voz até mesmo sobre a mãe e a irmã mais nova, mas fora desentendimentos e discordâncias, as duas parecem menos incomodadas em lidar com a soberania de Elizabeth do que Philip.

Em vários momentos, o consorte se ressente por passar horas preocupado com cortinas, por exemplo, o que lhe parece desimportante demais, pequeno demais, feminino demais. Ele não fora educado para desempenhar esse papel e sua decepção é palpável. Mas o que há de tão errado em atividades consideradas tipicamente femininas? O que existe de tão inferior em coisas imediatamente atreladas à figura feminina? A resposta parece óbvia: ainda somos o Outro. Com o passar dos anos, conquistamos espaços que há nem tanto tempo assim nos eram negados, mas em uma sociedade patriarcal, com suas distinções arbitrárias de gênero, a conta que nos é cobrada continua alta. The Crown chama a atenção para o fato que discrepâncias de gênero afetam nossas percepções de forma mais ampla e que tanto o modelo socialmente imposto a mulheres quanto a homens são tóxicos, ainda que de maneiras diferentes. É uma perspectiva bem-vinda porque torna visível questões cujas consequências enfrentamos diariamente, mas ao focar menos na trajetória de Elizabeth — ela sim, a verdadeira protagonista da trama — é inegável que muita da sua força se perde no caminho. A redenção parece mais fácil de ser alcançada pelos homens, afinal, e colocar Philip, primeiro-cavalheiro, príncipe consorte, como centro da história, torna mais simples a tarefa de redimi-lo aos olhos do público, enquanto mulheres na mesma posição ou com o mesmo comportamento não teriam a mesma facilidade em conseguir o mesmo. Ainda é preciso ir mais longe.

4 comentários

    1. Olá Carolina! Muito obrigada pelo carinho! Estamos querendo abrir os olhos das pessoas, um textinho de cada vez <3

  1. Muito bom texto! Sensacional! Eu só acho que, mesmo colocando Philip como centro da segunda temporada, ele não foi tão redimido assim porque a reação do público não comprou tanto a ideia. Deu pra entender melhor muitas coisas sobre ele, mas não desculpa muitos – quase todos – dos seus comportamentos. Ainda assim, concordo com todo o resto do texto. Parabéns!

    1. Muito obrigada pelo seu comentário, Isabella! Pensando bem, concordo contigo porque ele é bem principal na segunda temporada, mas em nenhum momento ofusca o que a série quer mostrar sobre a rainha. E haja paciência pra um marido como ele, né hahaha! Beijinho

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