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Mulheres irascíveis: das histéricas às indomáveis

Em uma das minhas visitas insones ao Medium — plataforma digital/rede social em que escrever textões não é somente aceito, como encorajado — encontrei um texto que me deixou profundamente intrigada. Ela chama “Literature Needs Angry Female Heroes” (algo como “A Literatura Precisa de Heroínas Irascíveis”, em tradução minha), da Elizabeth Skoski do Eletric Lit.

No texto, Skoski fala, basicamente, sobre como a literatura historicamente perpetuou uma ideia de depressão que é mágica e elusiva, personalizada em protagonistas como Clarissa Dolloway (de Mrs. Dolloway, de Virginia Woolf) e Esther (de A Redoma de Vidro, de Silvia Plath). Mergulhadas em suas espirais depressivas e metáforas tocantes, ambas personagens — assim como diversas outras — vivem uma depressão marcada pela introspecção.

“[Esther] cai em sua depressão da forma como boas garotas o fazem: quieta, sem discussões, se culpando, refletindo. Ela se pune por suas emoções, se tomando como responsável por não sentir a mesma alegria em seu estágio na revista do que as outras garotas.”

Nesse sentido, Elizabeth levanta um ponto muito pertinente: nenhuma dessas personagens se sente furiosa, pelo menos não do jeito que ela se sente ao ter que enfrentar sua depressão. Estes modelos de personagens — modelos tradicionais, que ainda perpetuam a ideia de que uma pessoa não pode estar com depressão se não se sentir triste o tempo todo — não conseguem expressar a complexidade dos sentimentos e angústias da autora.

“Minha depressão não é sentida passivamente. Ela é sentida como uma lareira crepitando, sendo alimentada aos poucos, pronta para explodir, se acender contra o mundo.”

Por mais que o texto trate especificamente sobre as formas de retratar a depressão, principalmente nos romances protagonizados por mulheres, podemos expandir essa reflexão para além dos modelos que a literatura utiliza para escrever sobre essa enfermidade psíquica. As formações de linguagem precedem os indivíduos — “homem” e “mulher” são, primeiro, significantes que nos designam quando chegamos ao mundo. Dessa forma, a organização da dicotomia masculino/feminino é balizada principalmente pela língua e, consequentemente, é cristalizada na literatura.

“O ponto é: existem heroínas, protagonistas e mulheres reais que são irascíveis, determinadas, que ousam ser fortes, que ousam falar alto, que ousam não aceitar um “não”. O problema é que, tanto na ficção quanto na vida, elas são tachadas e rotuladas como histéricas, reduzidas a um trope que só serve como instrumento de construção de narrativas e de invisibilização das lutas dessas mulheres, e que apagam a multiplicidade — e a História — que esse termo carrega.”

Que atire a primeira pedra uma mulher que nunca foi chamada de histérica ao se exaltar.

É engraçado pensar como esse termo surgiu para designar um mal que acometia somente mulheres. Seria a doença das mulheres, uma documentada por Hipócrates em IV a.C. A histeria curiosamente era tratada apenas por parteiras, isolando a mulher do contato com homens durante a cura. Dentre os diversos estudos conduzidos pelos gregos a respeito da causa dessa doença, se mencionava principalmente a “sufocação da matriz do útero” — esse órgão supostamente poderia se mover e, por alguns motivos específicos, esses movimentos poderiam causar a sufocação.

Esses ataques histéricos poderiam se manifestar em crises histéricas completas ou menores, com agitações e amnésia. Ainda mais, as mulheres poderiam ser acometidas por paralisias funcionais, contraturas e espasmos musculares, além de dor, retenção urinária, distúrbios vasomotores. Até mesmo Platão chegou a adereçar essa doença, afirmando que a sufocação do útero era mais prevalente em mulheres estéreis ou que não mantinham relações sexuais. Ainda de acordo com ele, o útero queria “ter bebês” e a impossibilidade de tê-los ou ainda a falta de possibilidade de gerá-los deixaria o órgão mais leve e propício a se movimentar (e, consequentemente, causar essa sufocação).

Percebemos, por esse entendimento clássico da histeria, que a doença esteve sempre atrelada a uma ideia de que, para uma mulher, o não cumprimento de seus deveres morais (no caso, ter filhos) era perigoso. A noção moderna de histeria, por sua vez, veio à luz ao mesmo tempo que, entre 1880 e 1900, uma verdadeira epidemia de sintomas histéricos surgia no mundo ocidental. Estudiosos da época “concordavam em ver nas crises da sociedade industrial sinais convulsivos de natureza feminina. Assim, as massas trabalhadoras eram chamadas de histéricas quando entravam em greve”.

O ponto é: o termo, mesmo que extinto dos manuais de critérios diagnósticos mais atuais (desde a década de 50), foi vulgarizado e atribuído quase que exclusivamente às mulheres, a ponto de continuar sendo utilizado até hoje para perpetuar a ideia de que mulheres são irracionais e emocionalmente instáveis. De uma forma ou de outra, ele ainda é delegado às mulheres que são “demais”, aquelas que interrogam, desacomodam e desafiam o status quo.

É um movimento de lógica clássico: homens são racionais e sãos, logo mulheres são histéricas e, consequentemente, doentes. A linguagem que incorpora a histeria como atributo feminino é apenas a porta de entrada para outros adjetivos pejorativos como “louca” e “raivosa”. O que persiste é a vontade de tachar aquelas que ousam desafiar a ordem como perturbadas e doentes, estigmatizando, também, as doenças mentais.

A jornalista e PhD em estudos midiáticos Anne Helen Peterson, por sua vez, utiliza um termo mais interessante para designar essas figuras: são as mulheres indomáveis, essas que desafiam o que é uma boa feminilidade, desviando de alguma (ou de todas) as características que as mulheres devam manter sob controle.

O termo “mulheres indomáveis” foi cunhado por Kathleen Rowe, no livro “Unruly Woman: Gender and the Genres of Laughter” (de 1995, sem versão em português). A obra foi uma das primeiras a explorar como as mulheres comediantes (geralmente voluptuosas, barulhentas, que fazem piadas rebeldes e sarcásticas) — principalmente Mae West e Roseanne Arnold — usam o humor e o excesso para minar normas e autoridades patriarcais. Ele foi resgatado por Anne em seu novo livro, “Too fat, Too slutty, Too loud: The Rise and Reign of the Unruly Woman” (Muito gorda, Muito promíscua, Muito escandalosa: A Ascensão e Reinado da Mulher Indomável’, em tradução livre).

Essas mulheres indomáveis, então, amplificam aquelas coisas que nos parecem tremendamente ruins, desagradáveis ou degradantes: elas falam muito alto o tempo todo, elas ousam aceitar seus corpos mesmo estando fora dos padrões impostos pela sociedade, elas ousam envelhecer do jeito que lhes convêm. Aqui, poderíamos muito bem falar de Hillary Clinton, Serena Williams, Melissa McCarthy ou Madonna. Todas essas mulheres excederam as expectativas; elas produziram suas próprias narrativas ou se rebelaram contra aquelas que as restringiam ou as desagradavam — em suma, ousaram ser indomáveis.

Ainda, podemos pensar no movimento de Rachel Antonoff, designer de moda que criou uma camiseta para sua linha de outono em que se lê “Hysterical Female”. O design ganhou alguma projeção quando algumas famosas — como Zooey Deschanel— postaram em suas redes sociais o seu trabalho. A questão aqui é que ambas — tanto Antonoff quanto Petersen — estão pensando em recursos linguísticos, visuais e de mídias que possam operar mudanças no jeito como as mulheres indomáveis são retratadas. Aqui, elas concordam com Skoski: precisamos de heroínas irascíveis, precisamos continuar pensando as formas desafiadoras de ser mulher como saídas possíveis. A histeria como doença, mesmo tendo sido fundamental para o surgimento da Psicanálise, por exemplo, é o grande exemplo de uma sociedade (não tão distante) que adoecia e aprisionava mulheres com suas normas sociais. Grande parte desta dominação está em suas produções discursivas, que nos obriga a nos organizar em relação a questões como a falta e o desejo.

Hoje, podemos pensar, por exemplo, em estudos recentes que encontram a prevalência de primeiros episódios depressivos até três vezes maiores em meninas de entre 11 e 16 anos quando comparadas com meninos da mesma faixa etária. A sociedade ainda adoece as mulheres, mas seus recursos linguísticos são tão sofisticados que ainda se atribui esse adoecimento a fatores biológicos intrínsecos.

Dessa forma, operar uma nova produção — seja da ressignificação da histeria ou da ascensão das mulheres indomáveis — é uma ferramenta poderosa de subversão discursiva que pode fazer muito bem para o modo como a sociedade trata as mulheres. Ainda mais, ajuda a desestigmatizar doenças mentais como a depressão, uma vez que, entendidas em toda a sua complexidade emocional e não reduzidas a estereótipos de puro descontrole, as mulheres podem falar sobre suas dificuldades e problemas.

Já dizia Elizabeth Skoski: “Dizem para nós irmos atrás do que queremos, mas riem de nós quando demonstramos irritação ou frustração quando ninguém nos dá a chance de conseguir essas coisas. Precisamos de mulheres que desafiem essa narrativa. Precisamos de mulheres que mostram sua raiva”. Acrescento: precisamos de mulheres indomáveis.

1 comentário

  1. Texto didático e pulsante para fundamentar e dar suporte à remoção do machismo de nossa sociedade. “Sei que há léguas a nos separar, tanto mar, tanto mar… Sei também como é preciso navegar, navegar…” (Chico Buarque)

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