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Mulher-Maravilha: os 75 anos do ícone

Ainda não era nascida nos anos 1970 mas, quando criança, em meados da década de 1990, lembro de ter assistido a um episódio da série de TV da Mulher-Maravilha gravado em VHS com Lynda Carter no papel da princesa amazona. Naquela época eu já estava me apaixonando por animes e assistia Sailor Moon recorrentemente, mas fiquei admirada mesmo assim com a heroína que arrancava a verdade dos criminosos envolvendo-os com seu laço, que era forte, inteligente e corajosa.

Para uma menina faz enorme diferença se ver representada na mídia, principalmente se essa representatividade vem por meio de uma heroína. Em um mundo dominado por Batmans, Supermans e Cavaleiros do Zodíaco, é essencial que meninas possam se identificar, que tenham um modelo para olhar e saberem que podem ser tão incríveis e poderosas quanto qualquer garoto.

Foi o que senti quando comecei a assistir Sailor Moon, e foi o que senti quando assisti aquele episódio aleatório de Mulher-Maravilha há tanto tempo. Claro que, na época, eu não fazia ideia do que a palavra representatividade significava ou que, anos mais tarde, estaria escrevendo textos em um site só de garotas e com viés feminista, mas eu sabia, dentro do meu coração de criança, que era muito importante ter uma heroína que fosse como eu.

No ano em que a Mulher-Maravilha completa 75 anos de existência é importante revisitar a personagem e entender um pouco de sua trajetória e origem. Desde seu lançamento, em 1941, passando por transformações nos quadrinhos, entre séries animadas e de televisão, além de sua primeira aparição cinematográfica e filme solo para estrear em 2017, a Mulher-Maravilha entra em seu novo ano de vida mais atual do que nunca.

Origem

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Mulher-Maravilha na década de 1940

Pioneira feminista nos quadrinhos, a Mulher-Maravilha foi criada pelo psicólogo William Moulton Marston, também conhecido por Charles Moulton, em 1941, a pedido do editor Max Gaines. Gaines sentia que faltava algo de novo nas histórias de super heróis que publicava na época e encarregou Moulton de criar um personagem diferente.

Moulton, ainda ponderando sobre como seria o personagem, sabia que gostaria que esse novo herói abraçasse o amor e a paz no lugar da violência e da guerra, algo tão comum no meio. Muito embora os ideais do novo herói estivessem claros na mente de Moulton desde o início, foi Elizabeth Marston, esposa do psicólogo, a responsável por acender a fagulha que levaria a criação da primeira super heroína e da Mulher-Maravilha como a conhecemos.

Esse background criativo fala muito sobre o desenvolvimento da Mulher-Maravilha enquanto personagem. Moulton incentivava tanto o movimento sufragista quanto o feminismo, e isso, lembrem-se, era o início dos anos 1940. Para ele as mulheres deveriam ser tão livres e independentes quanto quisessem, e deveriam ter a opção de continuar os estudos em universidades se assim o desejassem — o que era o caso de Elizabeth, que possuía três diplomas de nível superior, era mãe e trabalhadora. Outro fato importante a respeito de Moulton era que ele vivia um relacionamento poliamoroso pois, além de Elizabeth, também se relacionava com Olive Byrne — outra mulher a inspirá-lo na criação da guerreira amazona e sobrinha de uma importante feminista do século 20, Margaret Sanger —, e os três viviam na mesma casa e cuidavam juntos de seus respectivos filhos.

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O visual clássico da Mulher-Maravilha, talvez o mais replicado na mídia

O pensamento de Moulton se diferenciava dos psicólogos da época em outros aspectos além do apoio irrestrito ao feminismo. Para ele os quadrinhos não deveriam ser vistos como meras distrações para crianças, mas como ferramentas de valor educacional que poderiam propagar ideias e pensamentos com facilidade. Em 1940, Moulton até mesmo publicou um artigo intitulado “Não Ria dos Quadrinhos” em que, junto de Olive, sob o pseudônimo de Richard Byrne, defendia exatamente o valor dessa mídia na vida dos jovens. No artigo os dois ponderam que os jovens se dedicavam muito mais a estudar seus quadrinhos do que os livros didáticos e aí estaria uma oportunidade de ensinar de maneira diferente os valores em que acreditavam.

De acordo com a professora de História em Harvard e autora do livro The Secret History Of Wonder Woman (A História Secreta da Mulher-Maravilha, em tradução livre), Jill Lepore, em artigo para a revista do Instituto Smithsonian, Diana foi concebida por Moulton.

“(…) para estabelecer entre crianças e jovens um padrão de feminilidade forte, livre e corajosa; para combater a ideia de que as mulheres são inferiores aos homens, e para inspirar as meninas a terem autoconfiança; para conquistas no atletismo, nas ocupações e nas profissões monopolizadas por homens porque a única esperança para a civilização é a maior liberdade, desenvolvimento e igualdade das mulheres em todos os campos da atividade humana.” 

O próprio psicólogo escreveu em um artigo com o intuito de justificar sua criação, que a Mulher- Maravilha é uma propaganda do que ele acreditava ser o novo tipo de mulher que deveria governar o mundo.

Penso que Moulton não fazia ideia de como sua criação transcenderia seu tempo: a Mulher-Maravilha acabou por ser considerada um dos maiores ícones da cultura pop do sexo feminino e foi, por anos a fio, a maior definição nos quadrinhos do que era uma super heroína. A personagem reunia ativismo feminista em uma embalagem simples e de fácil acesso o que, aliado ao momento cultural efervescente em que o mundo estava, contribuiu para que a amazona caísse nas graças do público como uma personagem bem-sucedida, decidida, forte e empoderada. Para se transformar em um ícone, e um ícone feminista, não demorou muito. A Mulher-Maravilha era a personificação em quatro cores do movimento feminista.

Quadrinhos

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Mulher-Maravilha em sua nova trama sob o selo Rebirth da DC Comics

Com 75 anos de vida é desculpável o fato de a personagem ter sua história e trama de origem recontadas tantas vezes. Sua primeira aventura foi publicada ainda no ano de sua criação, em 1941, e refletia o empoderamento e valores feministas. A Mulher-Maravilha surgiu em um tempo em que as mulheres eram encorajadas a se unirem às forças de trabalho e, dessa maneira, a personagem refletia o poder e a independência feminina. Com os Estados Unidos enfrentado uma guerra mundial, era de se esperar que as tramas dos quadrinhos refletissem aquilo que acontecia na vida real.

Estreando em All Star Comics #8 em dezembro de 1941, a Mulher-Maravilha ganhou uma revista própria em julho de 1942. De 1941 até a morte de seu criador, em 1947, a amazona foi um importante ponto de suporte para a mudança da dominação masculina nos quadrinhos de super-heróis. A Mulher-Maravilha estava entre os homens, assim como o Superman, para proteger a Terra e disseminar a verdade e a justiça, e foi ela a responsável por criar a abertura para que outras personagens femininas pudessem aparecer nos quadrinhos e alçarem voo. Se hoje temos personagens como Batgirl, Supergirl e tantas outras, foi tudo por causa da Mulher-Maravilha.

Sua história de origem sofreu alterações algumas vezes, mas, a princípio, Diana é filha de Hipólita, rainha das amazonas e governante da Ilha de Themyscira, povoada apenas por mulheres guerreiras. Hipólita criou uma figura do barro e, de tão apaixonada por sua escultura, a rainha pediu aos deuses que a dessem vida, no que foi atendida. Recentemente mudaram sua história de origem, fazendo-a filha de Hipólita e Zeus, deus do Olimpo, o que faz de Diana uma semi-deusa. Enviada ao mundo dos homens, Diana tem por missão propagar a paz e defender a verdade e a vida.

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All Star Comics #8, a estréia da Mulher-Maravilha em 1941

Em qualquer uma de suas origens, a princesa amazona possui habilidades que rivalizam com as do Superman, e faz parte da Trindade da DC Comics junto do Homem de Aço e do Batman. Apesar das diferentes origens e dos diferentes uniformes, é possível dizer que a essência da personagem permaneceu a mesma desde sua criação, mantendo-se em um cuidadoso equilíbrio com as características idealizadas por Moulton a não ser em um período sombrio após a morte de seu criador.

Nas mãos de outros roteiristas e desenhistas, a amazona deixou de ser feminista, teve seus poderes neutralizados e transformou-se em uma mulher comum — o que era esperado das mulheres no pós-guerra visto que, com o retorno dos homens, elas não eram mais necessárias como força de trabalho e deveriam voltar ao lar para serem novamente submissas e relegadas a ter filhos e cuidar da casa. Nas tramas dessa época, em meados de 1950, sem seus poderes e como mortal, Diana preocupava-se com roupas, sapatos, penteados da moda e romance, algo que, certamente, teria horrorizado Moulton. O que acontecia nas histórias dessa Mulher-Maravilha era simplesmente o que se esperava das mulheres naqueles anos: submissão e vulnerabilidade.

Somente da década de 1970 a Mulher-Maravilha voltou a ser a personagem empoderada e independente de sempre, novamente carregando as características que a fizeram tão especial. A volta às origens de Diana aconteceu por conta da jornalista Gloria Steinem que, indignada com os caminhos que a história da princesa amazona estavam tomando, incomodou os editores da DC Comics até que, enfim, eles concordaram em devolver a personagem à sua glória anterior. Em 1972, Steinem colocou na primeira capa da revista Ms. uma imagem icônica da personagem e os dizeres “Mulher-Maravilha para Presidente”. Foi também na década de 1970, mais especificamente em 1975, em que a série de televisão protagonizada por Lynda Carter teve início, pavimentando, a partir daquele momento, o caminho para séries com protagonistas femininas.

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A primeira capa da revista Ms. em 1972 e, 40 anos depois, a capa comemorativa

Em 1987 o quadrinista George Perez assume o título da Mulher-Maravilha e se torna responsável por escrever novas histórias com a colaboração de Gloria Steinem. Juntos eles pretendiam devolver o prestígio de que a princesa amazona desfrutava antigamente, apoiando-se em tramas que exaltassem as características pelas quais Diana deveria ser conhecida, de acordo com eles, como ícone do feminismo. Apesar da fase de Perez como roteirista ter durado meros cinco anos, foi uma época repleta de histórias fortes e empoderadas da Mulher-Maravilha.

Outra série de histórias incríveis da super heroína está presente na fase Os Novos 52. Com tramas escritas por Brian Azzarello e arte de Cliff Chiang, essa nova versão da personagem trouxe algumas alterações em sua mitologia, mas manteve a essência da antiga criação de Moulton. A série passou por um período sombrio quando o casal David e Meredith Finch assumiu a revista, mas tudo voltou às boas quando Greg Rucka resgatou a personagem em meados dos anos 2000. E é Greg Rucka o responsável pela atual renovação da super heroína sob o selo Rebirth que teve, com arte em parceria de Liam Sharp e Matthew Clark, a primeira revista lançada no último 8 de junho. Essa nova versão pretende fazer com que a Mulher-Maravilha retorne às suas raízes para poder se reencontrar.

Animações

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Mulher Maravilha, Liga da Justiça

Uma personagem emblemática como a princesa amazona não ficaria longe das séries animadas por muito tempo. A primeira aparição da Mulher-Maravilha em desenho foi em 1972 no The Brady Kids em um episódio em que ela e os protagonistas vão parar na Grécia antiga. De 1973 a 1986 a Mulher-Maravilha também foi uma das personagens principais em Superamigos, talvez um dos desenhos mais conhecidos pelos fãs e produzido por William Hanna e Joseph Barbera.

As tramas de Superamigos eram simples e nos episódios os super heróis mais poderosos do universo se uniam para lutar pela justiça combater o mal e servir a humanidade. A Mulher-Maravilha protagonizava ao lado de Superman, Aquaman, Batman e Robin diferentes tramas e lidava com diferentes tipos de ameaça enquanto embutiam em seus discursos lições educacionais. Foi no desenho dos Superamigos que tomou forma a emblemática Sala da Justiça, uma espécie de sala de controle onde os heróis se reuniam e discutiam a respeito das missões que enfrentariam. Apesar de alguns outros heróis terem sido criados exclusivamente para a série animada, a Mulher-Maravilha foi a única representante feminina de poder durante muito tempo.

Em 1993, a princesa amazona foi protagonista de uma série própria após a DC ter fechado uma parceria com a Mattel. A série, batizada de Wonder Woman and The Star-Riders seguia um pouco daquilo que acontecia em She-Ra, misturando enredos de ação com um mundo de fantasia. Mais tarde, em 2001, uma nova animação surgiu, Liga da Justiça, com a intenção de adaptar de forma mais fiel e menos infantil os quadrinhos da Liga da Justiça da América, prestando uma homenagem à equipe original enquanto investia em uma visão diversificada em aspectos culturais e raciais. Dos animadores Bruce Timm e Paul Dini, essa nova versão das histórias trazia a Mulher-Maravilha como membro fundador da Liga da Justiça ao lado de outro heróis conhecidos como Superman, Batman, Flash e Mulher Gavião.

Muito embora a versão das animações seja a de uma Mulher-Maravilha mais juvenil, isso não impediu o sucesso entre os fãs — mesmo que tenha acontecido um quase romance com Batman entre as tramas. Outro título que tem uma interpretação diferente de Diana Prince e foi lançado agora, em 2016, é a DC Super Hero Girls. Na trama, a heroína que conhecemos será adolescente e nova aluna da Super Hero High e, junto dela, também estarão outras personagens icônicas da DC como Hera Venenosa, Supergirl, Batgirl e Arlequina. Apesar do tom mais ameno e juvenil, a série animada vem em um momento oportuno: com a representatividade tão em debate e meninas ansiando por super heroínas em quem se inspirar, é importantíssimo que exista uma história com personagens tão diversas, complexas e empoderadas desde a adolescência.

E, finalmente: filme em live action!

Posso dizer sem medo de soar maluca que a aparição da Mulher-Maravilha em Batman vs Superman: A Origem da Justiça foi o ponto alto do filme inteiro — e olha que o filme tem mais de 2 horas e 30 minutos de duração. Tecnicamente, Diana Prince (Gal Gadot) não é o foco do filme, mas não consegui evitar ficar sambando na poltrona do cinema a cada aparição dela, mesmo em seus trajes civis. No momento em que ela finalmente apareceu com o uniforme completo, chutando bundas maravilhosamente, foi que eu deixei de conter minha empolgação e vibrei (junto com todos no cinema, importante frisar).

Batman vs Superman não é um filme isento de erros, porém é possível encontrar pontos positivos na inserção da Mulher-Maravilha, e até mesmo de Lois Lane (Amy Adams), na história. As duas, tecnicamente, são as responsáveis por salvar o dia e dar um jeito na bagunça que dois caras iniciaram. A Mulher-Maravilha de Gal Gadot claramente abraça sua feminilidade, mas nem por isso deixa de ser intimidadora e poderosa em uma batalha, lutando de igual para igual com Doomsday. Em Batman vs Superman, a Diana não é o interesse amoroso e não está lá para ser salva, e é a responsável por dar um jeito na briga dos marmanjos, salvando os heróis do título como se fosse apenas mais um dia de trabalho. Ela é a super heroína, afinal de contas.

O tempo de tela da Mulher-Maravilha no filme é curto — são só sete minutos no total —, mas ela rouba a cena com maestria. Claro que a gente não espera que um filme com o título Batman vs Superman passe em um teste como o de Bechdel (spoiler: não passa), mas me senti realmente emocionada ao ver o ícone que é a Mulher-Maravilha, finalmente, aparecendo em tela grande. Em 2017 teremos um filme inteirinho da princesa amazona, com direção de Patty Jenkins. Se nos sete minutos em que a vimos Diana já se parecia com tudo aquilo que sonhamos — o que foi o sorrisinho no momento da luta contra Doomsday? Aquela é a alegria da batalha que a verdadeira Mulher-Maravilha tem! — uma guerreira e inspiração como Moulton a criou para ser.

Foram necessários 75 anos para que a Mulher-Maravilha estreasse no cinema e isso tem relação direta com os ideais e essência da personagem (isso parar não entrar em detalhes a respeito da falácia de que personagens femininas não vendem). Para uma das escritoras do site The Mary Sue, Sam Riedel, desde sua primeira aparição, a Mulher-Maravilha batia de frente com o patriarcado e suas estruturas, visto que é uma personagem concebida para ser um símbolo de luta e resistência, e isso pode ter sido responsável por afastá-la por tanto tempo das telas do cinema. Enquanto somos bombardeadas com três séries diferentes de filmes do Homem-Aranha, e vários filmes do Batman, Superman e Homem de Ferro, até hoje nenhum filme com super heroína protagonista havia sido lançado.

É por essas e outras que o filme de 2017 está sendo tão aguardado. Milhares de jovens meninas estarão nos cinemas e poderão se identificar com aquela que está salvando o dia e isso significa muito, significa imensamente. Mesmo após 75 anos desde sua criação, a Mulher-Maravilha permanece um ícone feminista. Sua criação, lá em 1941, simbolizava a ideia de mulheres não são inferiores, que mulheres são tão capazes, fortes e determinadas quanto queiram ser.

Que esses 75 anos sejam apenas o começo e que venham muitos mais.

“Of all people you know who I am.
Who the world needs me to be, I’m Wonder Woman.”

6 comentários

  1. Ela não foi e nunca ira ser símbolo do feminismo! Pois luta em prol do bem estar e harmonia de todos.. homens, mulheres, crianças.. todos inocentes e vitimas de vilões nos quadrinhos. Conheça a história dela antes de usar a imagem dela (Ainda que seja so um personagem fictício) como símbolo de um movimento que ñ so prega o ódio e teoricamente a igualdade entre os géneros.. mas que na vdd so semeia a individualização dos mesmos cm cotas, regalias.

    Sou mulher, tenho orgulho disso.. td que tenho hoje conquistei com meu esforço que foi reconhecido. e isso basta!

    1. Laiz, o feminismo prega justamente a igualdade entre os gêneros. Não há essa história de individualização com cotas ou regalias, como você diz. O feminismo quer que todos tenham as mesmas oportunidades e possibilidades – e não é exatamente essa a visão da Mulher-Maravilha? Criada como um símbolo de amor e paz, o ideal da princesa amazona é proteger a Terra e disseminar a verdade e a justiça. E tem coisa mais justa do que igualdade entre os gêneros? Pois é. (:

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