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Miranda Priestly, o diabo em pessoa

O Diabo Veste Prada é um filme com muitos exemplos de mulheres no mercado de trabalho. Muito poderia ser dito sobre Andrea (Anne Hathaway), a talentosa aspirante a jornalista que não tem nenhum interesse pela indústria da moda, mas ainda assim aceita o cargo de assistente da maior editora na área só para embelezar o currículo. Mas o elemento central da história, o diabo em pessoa, aquilo que faz o filme ser o que é, só pode ser ninguém menos que a primeira e única Miranda Priestly (Maryl Streep).

Primeiramente, é sempre importante ressaltar que ninguém está aqui para defender que Miranda Priestly é uma boa alma incompreendida pelo mundo. Ela é exigente em nível irracional repetidas vezes, tanto em questões de trabalho, quando em questões aleatórias como o café, o almoço e tarefas absurdas como conseguir o manuscrito secreto do livro ainda não publicado da série Harry Potter. O nome dela é mágico, e ela espera que todos os que trabalham para ela sejam igualmente mágicos e sobre-humanos. Miranda Priestly não tem escrúpulos quando se trata de conseguir o que quer ou proteger sua própria posição e vê com bons olhos quem age da mesma forma, o que é moralmente reprovável, mas também é uma parte inerente do meio no qual ela se encontra.

O mercado da moda é regido pelas leis da selva. Só os mais fortes sobrevivem. Por ser uma área extremamente restrita e, ainda assim, uma das poucas nas quais mulheres ocupam papel preponderante (especialmente no ramo jornalístico), a ideia corrente é que ter a oportunidade de fazer parte da indústria da moda é, por si só, um privilégio. As mulheres dessa indústria trabalham por períodos mais longos do que o comum, fazendo tarefas muitas vezes maiores que a capacidade de um ser humano normal, por salários muito baixos. Quem sobreviver a tudo isso pode, com alguma sorte, ter a oportunidade de crescer. É isso que vemos no personagem da Andy, que sacrifica sua vida pessoal ganhando uma miséria porque estar ali já e um privilégio e pode abrir muitas portas no futuro. Paralelamente, o que vemos em Miranda não é uma tirana que passa o dia com os pés para o alto dando ordens absurdas: ela também trabalha das oito da manhã à meia noite, no escritório ou em casa, sacrificando casamentos e vida pessoal, porque foi isso que a levou até ali. Miranda Priestly nada mais é do que uma personagem representando toda uma indústria com forma de funcionamento e mentalidade próprias (ainda que cruéis).

Miranda Priestly

Apesar de tudo isso, não é difícil imaginar que Miranda Priestly não teria assumido proporções tão míticas, a ponto de ser explicitamente comparada com o diabo, se ela não fosse… mulher.

Não é possível ocupar uma posição de poder sem o sacrifício direto dessa construção artificial que é a feminilidade. Fisicamente, Miranda Priestly não poderia ser mais feminina. Sempre bem vestida, bem maquiada, equilibrada em saltos imensos. Surpreendentemente, ela nunca perde a compostura e, ainda que o conteúdo da fala seja ácido, o tom de voz nunca se altera. É uma mulher em toda a sua definição socialmente construída. Ainda assim, é difícil imaginar que alguém possa usar a palavra “feminina” para descrever Miranda Priestly. Porque feminilidade e poder são conceitos mutuamente excludentes. Muito além de um padrão estético específico, a feminilidade é uma construção que implica submissão, docilidade, infantilidade, e Miranda Priestly não tem um pingo de nenhuma dessas características no seu corpo.

Mesmo quando um patrão homem é difícil como Miranda, ele dificilmente ganha o destaque que a personagem de Meryl Streep ganha nessa história. Um homem exigente, quando não é o protagonista da trama em questão, não é encarado como mais do que um contratempo, e ainda assim sua natureza humana continua sendo uma verdade incontestável derivada pura e simplesmente da sua condição masculina. Quando essa mesma posição é ocupada por uma mulher, como acontece em O Diabo Veste Prada, a conotação é completamente diferente. Ainda que a história tenha incluído diversos elementos indicando a humanidade da personagem — sempre na forma da relação com a família —, é difícil reconhecer essa humanidade sem um esforço relevante.

Miranda Priestly é o velho estereótipo da mulher bem sucedida e infeliz, quando na verdade não temos nenhum elemento que nos leve a acreditar que ela é realmente infeliz — muito pelo contrário. O papel tradicional da mulher, difundido e constantemente reafirmados pela sociedade por meio da mística feminina, como explicitou a psicóloga e escritora norte-americana Betty Friedan no livro A Mística Feminina, em 1962, é realizado no plano privado, em casa, nos papéis de esposa, mãe e dona de casa. Ainda que mais de cinquenta anos tenham se passado desde o auge da mística, o pensamento corrente ainda é o de que a realização plena de uma mulher como ser humano está nessas funções. Ainda que, em alguns níveis, tenhamos desde então começado a ocupar os espaços públicos e abrir lentamente nossas trilhas no mercado de trabalho, o imaginário coletivo segue convicto de que uma mulher que prioriza a carreira profissional, que se realiza majoritariamente no trabalho, é uma mulher infeliz e frustrada.

Miranda Priestly

Uma vez que a imagem social da feminilidade é de docilidade e submissão, qualquer comportamento que fuja desse padrão, como acontece com Miranda, é imediatamente taxado como agressivo, rude, antinatural. Diversos estudos já foram realizados e comprovaram que expressões que são consideradas neutras ou positivas quando usadas em relação a homens — “ambicioso”, por exemplo — têm conotação pejorativa quando dirigida a mulheres. Não bastasse que qualquer atitude minimamente não-passiva seja olhada com desconfiança quando vinda de uma mulher, soma-se a isso o fato de que nós temos muito mais dificuldade de nos impor e sermos levadas a sério do que qualquer homem jamais teria. Para que uma mulher seja ouvida, ela precisa superar inúmeras barreiras internas e externas e adotar uma postura extraordinariamente assertiva — que, no estado atual da sociedade, é considerada uma postura agressiva.

Se Miranda Priestly fosse um homem, ela dificilmente seria chamado de diabo. Ela seria exigente, competente, controladora, ambiciosa, um pé no saco. Mas jamais seria comparada a uma entidade religiosa que personifica o mal. Porque ela não é má, ela é apenas uma mulher em posição de poder. Por mais perigoso que isso possa ser para o patriarcado.

7 comentários

  1. Sabe quando tu lê algo tão mas tão incrível que não sabe transcrever suas reações a não ser com AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAA e !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! ? Pois é, sou eu com esse texto.
    Mandei pra todas as migas e até pra mãe que adora O Diabo Veste Prada haha
    Parabéns, como sempre os textos aqui estão maravilhosos.
    Beijinhos

  2. Como eu amo os textos de vocês! Falou tudo! Eu só assisti o filme umas duas vezes, mas olhando por outra ótica totalmente diferente – principalmente após conhecer o feminismo -, a Miranda é taxada de “diabo” apenas por ser mulher. Eu conheço diversas mulheres em posições de poder, como ela, que também são criticadas o tempo todo no seu trabalho. Mas o mesmo nunca acontece com os homens que também desempenham o mesmo cargo, e tem uma autoridade semelhante.

  3. Oi! Amei o texto e concordo com quaaaase tudo, exceto essa parte: “…quando na verdade nós não temos nenhum elemento que nos leve a acreditar que ela é realmente infeliz – muito pelo contrário”. Quando Miranda se divorcia novamente (aquela única cena em que ela aparece sem maquiagem, de roupão e descabelada), mesmo que suas palavras digam o contrário, dá para perceber que ela está sim infeliz pelo peso que sua carreira fez na sua vida pessoal.

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