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Cabelo de sereia e muito rock’n’roll: quem é Melissa Reese?

Quem é Melissa Reese?, você deve estar se perguntando. Essa também foi a primeira e principal pergunta de muitos fãs do Guns ‘n Roses quando o anúncio sobre a nova integrante da banda ganhou a internet no início do ano passado. Era a primeira vez que uma mulher se tornava um membro fixo da banda – uma novidade que dividiu opiniões. No meu caso, que já não acompanho a banda de perto há algum tempo, contudo, a pergunta só veio após muito tempo, quando vi todo o potencial de Melissa ao vivo, durante a turnê “Not In This Lifetime”, que passou pelo Brasil no final de 2016. Quem é essa mulher incrível de longos cabelos azuis que não para de dançar um minuto sequer?, eu me perguntei o show inteiro. A resposta não demorou para aparecer.

Nascida em Seattle, nos Estados Unidos, Melissa Reese começou a tocar piano aos quatro anos de idade e aos catorze já compunha suas próprias canções. Fruto de uma família de origem bastante diversa, com descendência de chineses, ingleses, espanhóis, japoneses, filipinos, irlandeses, escoceses e alemães; seu trabalho como cantora, produtora, compositora e musicista reflete muito dessas influências tão diversas que vêm de berço. Em seu site oficial, ela explica que enxerga sua música como uma consequência direta de toda a sua diversidade étnica: “Vejo meu trabalho como uma extensão das minhas raízes étnicas – existem muitas partes que se juntam e resultam no que sou”. O que não deixa de ser incrivelmente verdadeiro. Seu primeiro trabalho, LISSA, lançado em 2007, mistura referências que vão da pop music ao hip-hop, e emplacou faixas nas trilhas sonoras de diversos programas e séries da televisão norte-americana, como Keeping Up With The Kardashians e Gossip Girl. Além disso, Melissa já compôs músicas para trilha sonora de inúmeros games e emprestou sua voz para muitos deles também. Ao lado de Bryan Mantia, com quem formou o Brain and Melissa, a artista produziu músicas para jogos como ModNation Racers, Infamous: Second Son Infamous 2 – este último que rendeu, para ambos, uma indicação ao prêmio do Academy of Interactive Arts and Sciences – organização norte-americana sem fins lucrativos fundada em 1996 com foco voltado para a promoção de games – por Excelência em Composição Original.

A dupla também foi responsável pela trilha sonora de Detention, filme de terror estrelado por Josh Hutcherson (o Peeta, de Jogos Vorazes) e Shanley Caswell, que conta a história de uma jovem apaixonada pelo melhor amigo de infância que, por sua vez, é apaixonado pela sua melhor amiga; mas que vê sua vida e a de todos ao seu redor virar de cabeça pra baixo após um assassino em série passar a atormentar a vida dos jovens que conhece. Ao mesmo tempo, Melissa também trabalhou com bandas como Green Day, e foi um dos nomes por trás do sucesso “Bad Blood”, da Taylor Swift. Ou seja, muito antes de se tornar a primeira mulher a integrar o Guns ‘n Roses, Melissa Reese já era um nome conhecido e reconhecido nos bastidores da música norte-americana, uma mulher que pouco a pouco conquistava seu espaço em uma indústria estruturalmente machista.

A trajetória com a banda, por sua vez, começou quando Reese trabalhou no álbum Chinese Democracy, o último do Guns a apresentar músicas inéditas, lançado em 2008. Responsável pela mixagem das faixas, ao lado de Bryan – que na época das gravações do álbum, se dividia entre a dupla com Melissa e como baterista do Guns, posto que ocupou de 2000 a 2006 – o álbum marcou uma fase controversa da banda, mas que, ao mesmo tempo, deu início a uma parceria que, mais tarde, se tornaria essencial. Antes disso, contudo, Melissa já era próxima de Duff McKagan, um dos membros fundadores do Guns ‘n Roses e que retornou para a banda após algum tempo afastado e também esteve presente na turnê “Not In This Lifetime”. Assim como Melissa, Duff possui raízes em Seattle, onde reside com a família até hoje, e os dois se aproximaram muito a partir daí. Com o retorno de Slash e Duff para a banda, e o anúncio de uma nova turnê, ter Melissa como um dos integrantes fixos era uma consequência do talento inegável da artista e da amizade que construiu com os integrantes da banda ao longo dos anos, mas também uma forma do grupo trazer maior diversidade para dentro de si. Porque Reese não é “apenas” uma mulher talentosa, com uma bagagem imensa; ela é também uma mulher inovadora, ousada e sem medo de arriscar – qualidades que, após trinta anos de altos e baixos, a banda precisava mais do que nunca.

Se por um lado, Guns ‘n Roses sempre fora uma banda de público predominantemente masculino – característica que fica muito clara em seus shows, por exemplo –, por outro, o feminino sempre esteve presente em sua história, fosse nos bastidores, na produção de músicas e álbuns, fosse com participação em seus vídeo clipes ou emprestando gemidos a uma música qualquer. Em “Sweet Child O’Mine”, as namoradas dos integrantes na época estão lá, protagonizando momentos de carinho ou simplesmente observando seus amados fazendo aquilo que sabem fazer melhor; da mesma forma, a modelo Stephanie Seymour interpretou diferentes personagens nos clipes de “Don’t Cry” e “November Rain” – esse último, que a imortalizou no imaginário coletivo de todos os fãs do bom e velho rock ‘n’roll. Mas essa ainda era uma representação problemática demais: por mais que estivesse ajudando a contar essa história, essas mulheres nunca desempenhavam um papel relevante na narrativa construída pela banda. Eram representações vazias, idealizadas e sem voz ativa, que diziam muito mais sobre os homens que as idolatravam e desumanizavam do que qualquer outra coisa. Era um cenário estruturalmente opressor que mostrava mulheres sendo usadas para a promoção de um artista masculino, usadas como troféu em uma performance e nada mais.

Não é difícil entender, portanto, porque a presença de Melissa Reese incomodou tanta gente: embora a banda já tenha contado com backing vocals e outras profissionais ao longo dos anos, era a primeira vez que uma mulher tinha voz ativa dentro do grupo e desempenhava um papel tão fundamental quanto o dos homens com quem dividia os palcos abertamente. Melissa se tornou uma parte da banda, não um acessório dela, tão competente, responsável e digna quanto qualquer outro. É, na verdade, muito fácil entender porque ela incomoda tanto: estamos, afinal de contas, falando sobre uma mulher jovem, que abriu espaço num terreno predominantemente masculino, e que toca de igual pra igual com homens que se tornaram figuras míticas dentro da cena do rock norte-americano. Não é uma surpresa que sua posição se torne uma afronta aos problemas estruturais que permeiam a indústria fonográfica, não apenas nos Estados Unidos, mas no mundo inteiro.

Quando fala do seu trabalho, no entanto, Melissa deixa de lado o estereótipo da mulher no rock, para se tornar uma pessoa completamente apaixonada por aquilo que faz, que acredita em seu trabalho e sempre busca fazer o seu melhor – seja no estúdio ou em cima do palco. Isso não quer dizer que ela não seja uma mulher comprometida com questões de gênero, que não seja feminista, que não apoie outras mulheres que lutam para ter um lugar na indústria da qual fazem parte. A grande diferença é que, ao invés de concentrar suas forças em falar sobre Como É Ser Uma Mulher No Rock™, Melissa prefere discutir o seu trabalho, aquilo que ela entende profundamente e que é a grande paixão da sua vida. O fato de se permitir falar sobre isso de forma ilimitada é também uma forma de lidar com o machismo, porque nos dá a ideia de um cenário em que gênero já não é mais uma questão, e que homens e mulheres vivem em pé de igualdade – um cenário que é o que buscamos, e que ao seu próprio modo, Melissa busca também. Sua força está em seu trabalho e ela não se faz de rogada em mostrar que a música é sua força motriz ao lutar por um espaço – por ela e por tantas outras.

Embora esteja no Guns há pouco mais de um ano, desde o início Melissa manteve um espaço para chamar de seu, e o fato de estar cercada por homens, muitas vezes mais velhos do que ela, não a intimida de forma alguma alguma. Ela possui liberdade para expressar suas ideias, contribui de forma criativa e acompanha de perto todo o processo de construção dos shows. No meio disso tudo, é claro, relações são construídas e quando fala sobre seus companheiros de palco, de banda, é com um carinho enorme que ela diz que eles são, ao mesmo sua, suas inspirações e irmãos mais velhos. Não existe um traço sequer de cinismo quando diz essas coisas, da mesma forma que não existe condescendência quando os outros integrantes da banda falam sobre ela e seu trabalho, o que faz absolutamente toda a diferença. Melissa não é um bibelô, ela não é um troféu: ela é uma musicista e artista incrível, badass ao seu próprio modo, e merece ser reconhecida pela excelência do seu trabalho – seja ele realizado diante ou longe dos olhares do público.

Incômodo, no entanto, é quando todo esse reconhecimento cai por terra, e a trajetória de Melissa Reese, assim como de tantas mulheres na indústria do entretenimento, passa a ser pautada pela sua aparência. Pesquisar sobre sua carreira é, ao mesmo tempo, ver o lado mais lindo e o mais feio do seu trabalho: você entende a paixão, entende o que a move e a força daquilo que nasce como uma consequência de todo esse processo; mas também percebe que isso nem sempre é suficiente, e que entre declarações de amor à música e a celebração do seu trabalho, existem pessoas que não estão realmente interessadas em ouvir sua voz, mas que se limitam a enxergá-la como um rostinho bonito numa banda de rock, com a mesma condescendência dispensada pelos seus colegas. Para ela, é suficiente ser a “tecladista gata do Guns ‘n Roses“, e o resto é apenas o resto.

O que é uma mentira absurda, é claro – mas nos lembra que algumas mentiras contadas à exaustão quase se tornam uma verdade. No entanto, essa história já foi contada muitas vezes e nós estamos cansadas dela; e Melissa, também. Ao se permitir falar abertamente sobre o seu trabalho, sobre seu processo criativo e sobre a carreira na música, ela mostra que é muito mais do que um rostinho bonito em cima do palco, e que o fato de estar onde está diz muito mais sobre seu talento e persistência e vontade de vencer numa indústria tão cruel, do que qualquer outra coisa. Melissa Reese é uma mulher talentosa, divertida, animada, competente e dedicada, e limitá-la a um rostinho bonito emoldurado por longos cabelos coloridos é a saída preguiçosa de quem prefere perder a chance de conhecer uma mulher complexa, ao invés de desconstruir os próprios preconceitos.

Quando subiu ao palco, naquele 20 de novembro chuvoso em Brasília, no Estádio Mané Garrincha lotado, foi justamente com essa versão de si mesma que Melissa Reese presenteou o público. Após se despedir desse mesmo público ao final do show, com uma alegria genuína, já no canto do palco, ela fez uma dancinha para alguém que se escondia atrás da cortina preta imensa que separava o palco dos bastidores, antes de sumir de vez. E foi ali, naquele momento tão banal, mas de puro êxtase da artista depois de tocar por mais ou menos duas horas e não parar de dançar um minuto sequer, que Melissa Reese, cabelos azuis e cílios enormes, terminou de conquistar meu coração. Era um dia ruim em uma semana ruim, e eu, molhada e exausta, vi uma garota dançar em cima do palco, meio como todas nós, celebrando o fato de ter feito mais um show, a concretização da sua paixão transformada em trabalho, e foi impossível não sorrir com ela e querer ser como ela. É a mesma mulher que diz para novos músicos que eles nunca devem deixar de trabalhar duro e colocar o máximo de amor, gratidão e carinho em suas músicas, porque a partir daí, as coisas simplesmente acontecem – nem sempre como a gente espera, mas ainda assim. E as coisas aconteceram para Melissa Reese, ela conseguiu chegar lá. Talvez amor, carinho e gratidão sejam, afinal de contas, o que precisamos para chegar também.