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Marcia, Marcia, Marcia, você é uma de nós

É uma verdade universalmente conhecida que se há uma premiação que eu amo acompanhar, essa premiação é o Emmy Awards. Eu poderia ser uma melhor leitora ou aproveitar o cinema de uma maneira mais ávida, mas a verdade é que essa que vos fala gosta mesmo é de seriar (assistir séries). As pautas monotemáticas entregam que a alma é seriadora, e sabem como é, temos que fazer o que temos que fazer. Então, este ano, quando olhei a lista dos indicados da cerimônia que vai ao ar no próximo domingo, dia 18 de setembro, fiz mentalmente um sorteio do que iria assistir: American Crime Story: The People x O.J. Simpson.

A série da FX em parceria com o Ryan Murphy (atenção: dessa vez vá sem medo, é boa de verdade) que funcionará em forma de antologia — isto é, cada temporada conta uma história diferente — tem o intuito de levar às telinhas americanas grandes crimes e tragédias do país, tudo em forma de adaptação da realidade.

Antes de discorrer sobre a trama, tomo minha posição de logo rasgar seda: se eu amei a série? Amei. American Crime Story: The People x O.J. Simpson é, para mim, o suprassumo do que a TV tem a nos oferecer nos dias atuais: uma superprodução de ótimas filmagens, com roteiro bem amarrado, um texto bem escrito, uma narrativa que não pára de fluir em momento algum e um elenco de tirar o fôlego com atuações impecáveis. Não à toa recebeu 22 indicações ao prêmio da categoria. Então, sem lamentar, imparcialidade não vai ter, não.

Em sua primeira temporada acompanhamos o grande caso de O.J. Simpson (interpretado por Cuba Gooding Jr.), ex-jogador de futebol americano acusado de matar sua ex-esposa, Nicole Brown Simpson, e o amigo dela, Ronald Goldman. O evento movimentou os ânimos dos americanos na década de 90, envolvendo nomes até hoje muitos conhecidos: vocês conhecem as Kardashians? O pai delas, Robert Kardashian (na série vivido por David Schwimmer, o eterno Ross de Friends), ex-marido de Kris Jenner, era um amigo próximo de O.J..

O julgamento do crime de duplo homicídio — que durou mais de 300 dias! — foi um dos maiores julgamentos acompanhados em terras gringas. Sua cobertura midiática foi extensiva, suas referências são tamanhas, pipocando em músicas como a da banda Good Charlotte, e mesmo na TV, em animações como Os Simpsons ou a até na gigante das comédias, Seinfield.

Além de referências e grandes nomes, o Julgamento do Século, consagrou-se e mexeu com corações e cabeças pois enfiou o dedo em uma ferida muito aberta da sociedade estadunidense que, 20 anos depois, pouco mudou: o racismo elevado e a violenta polícia do país — aqui, especificamente a suposta corrupta de Los Angeles, onde o crime ocorreu. Os números do processo confirmam seu alvoroço. Os autos do caso continham mais de 50mil páginas, foram ouvidas 133 testemunhas, e, no dia do julgamento final, mais de 150 milhões de pessoas acompanharam o veredicto ao vivo na TV, superando números como a chegada do homem à Lua e o funeral do presidente John F. Kennedy.

Na versão romantizada para TV, então, assistimos aos bastidores do julgamento do ex-jogador, pelo ponto de vista dos promotores e advogados envolvidos no caso. Caio por terra ao tentar analisar a porcentagem de fidelidade da versão televisiva ao processo em questão, contudo, ao procurar vídeos, fotos e relatos da época e comparar com àquilo que assisti é possível concluir que o trabalho da equipe envolvida não deixou por menos.

Específico à época, os Estados Unidos recuperavam-se de uma onda de manifestações contra a corrupção e o racismo da polícia. Com o caso tendo como palco o mesmo palco das anteriores manifestações, havia mais em jogo do que o duplo homicídio. De um lado, então, estava a acusação (The People, ou O Povo, em tradução livre) em defesa da vida e contra a violência doméstica (O.J. foi inúmeras vezes denunciado pela ex-esposa, Nicole, por agressões e abuso); do outro, estava Simpson e sua defesa, advogando não apenas em favor do acusado, mas do princípio de igualdade, como retratado na série, utilizando da cartada racial (race card) contra uma polícia inegavelmente racista.

Toda essa introdução prolixa, mas necessária, é para abrir espaço para a personagem sobre a qual quero falar: Marcia Clark, na série interpretada pela queridinha Sarah Paulson. Marcia é a principal promotora do caso, responsável por abrir a acusação e conduzir o processo criminal contra o ex-jogador.

Como qualquer outra mulher inserida no mundo da lei, ou no mundo em geral, Marcia Clark precisa se provar. Não é uma falácia, é uma realidade. Por meio de um incansável trabalho, ela tenta. Ela busca, planeja, e joga esse jogo que homens quase sempre ganham. Marcia também é mãe, de dois filhos, que luta para conseguir um divórcio. Enquanto pouco caso se faz sobre a possibilidade de O.J. deixar seus próprios filhos órfãos de mãe, Marcia é arrastada no chão por seu ex-marido por… trabalhar.

Mulheres que trabalham ou que levam sua carreira muito à sério constantemente são diminuídas por faltarem com sua “obrigação de mãe”. Uma obrigação — e uma maternidade — que só existem pelo fato dela ser mulher. Um homem bom é aquele que provém por sua família. Hora extra? Pode fazer. Não dar atenção ao filho porque está cansado? Pode também. Uma mulher prover por sua própria família e precisar de tempo para isso? Jamais. Monstra. Não sabe o que é ser mãe. Não merece compaixão.

Se, por ventura, Marcia não tivesse filhos, não ouso negar que as manchetes seriam outras. Ela seria fria e sua vida só passaria a ter sentido após uma criança. Maternidade compulsória é algo real: há leis que asseguram essa vontade inerente ao fato de eu nascer com uma vagina. Aborto ser crime, ligadura ser proibida. Tudo isso porque todos sabem mais do que nós sobre nossos corpos, mesmo que eu desde que me conheça por gente sinta uma vontade próxima a -10 de ter um filho. Se eu quisesse um, ninguém duvidaria.

Além disso, Marcia Clark é a única mulher em um caso cheio de homens. Sua aparência física é motivo de chacota, críticas e, principalmente, pretexto para por em pauta sua capacidade profissional. Roupas sérias demais, um cabelo fora de moda, um corte ainda pior. Ela, inevitavelmente, sucumbe. E não é difícil ter empatia pela promotora: nós todas já sucumbimos em algum ponto da nossa vida.

Para piorar a situação, no auge de um dos mais importantes casos de sua carreira, uma pessoa com quem ela já teve um relacionamento acha de bom tom jogar para mídia fotos de Clark seminua. Lá em 1990 o slut-shaming (ato machista de condenar uma mulher por ter atitudes que fogem da conduta sexual aceita socialmente) já era uma artimanha muito usada.

Contudo, enquanto o principal rosto da acusação é a todo custo subestimada e atacada — pela mídia e pela defesa —, Johnnie Cochran (Courtney B. Vance), o principal advogado de O.J., é alvo de um escândalo de violência doméstica, que foi abafado com muito mais agilidade. Nada novo sob o sol, falar sobre cortes de cabelos sempre foi e ainda é muito mais agradável do que expor um homem violento.

Em certo ponto da série, descobrimos que Marcia foi vítima de um estupro quando nova. Aqui precisamos falar que esse aspecto da história foi revelado próximo ao desfecho da trama, não servindo como plot device para colocar gasolina no desenvolvimento de um personagem — ele realmente aconteceu. A revelação, pelo contrário, agregou valor ao contexto: apenas uma mulher para saber o que é viver em uma sociedade estruturalmente machista, sendo ela vítima de estupro ou não. O sentimento de raiva e impunidade fez com que Marcia torna-se promotora, buscando vingar as vítimas de abusos domésticos, sexuais e até mesmo vítimas de homicídios, afinal, a justiça nem sempre é justa com elas.

No geral, não bastasse American Crime Story: The People x O.J. Simpson ser, por si só, uma das melhores coisas que assisti no ano, ela ainda conta com uma grande personagem feminina, bem escrita, bem desenvolvida e a responsável por uma porcentagem grande do brilhantismo da série. Assistam à Marcia, eu juro que vocês não vão se arrepender.

5 comentários

  1. Ana, eu adorei essa série, a construção da personagem e a reflexão feita sobre a Marcia real.

    A coisa toda do O.J. Simpson, na minha opinião, pode ser considerada um exemplo dos problemas da cobertura midiática de crimes, mas o foco na Marcia em específico acho que é uma das facetas mais cruéis disso. O quanto ela foi julgada por coisas totalmente fora do contexto, tipo o cabelo ou a maternidade, é insano.

    Fico pensando em como seria se isso rolasse hoje em dia, mas infelizmente acho que uma Marcia de 2016 estaria na mesma.

    E a Sarah Paulson foi excelente no papel 🙂

    1. Nossa, me doeu demais assistir isso, porque não parece algo absurdo e é algo que acontece até hoje, mesmo vinte anos depois. Inclusive, adorei o discurso da Sarah no domingo, homenageando a própria Marcia, e principalmente por ter levado ela à cerimônia. Espero que a segunda temporada entregue algo tão maravilhoso quando foi essa primeira.
      Beijo!

  2. Eu adorei a série e gostei muito da tua resenha. Essa trama em volta da promotora Márcia foi muito bem explorado pela série na minha opinião, retratou com bastante honestidade como é ser mulher, e necessitar se provar o tempo todo em um mundo patriarcal. Crueldade as reportagens e comentários sobre sua roupa e estilo de cabelo, senti raiva por saber que não é ficção, é a realidade de uma sociedade machista que necessitamos combater todos os dias. Em frente!

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