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Malhação: viva a diferença e viva Cao Hamburguer

Garotas muito diferentes entre si que acabam virando amigas não é uma narrativa nova. Quatro Amigas e Um Jeans Viajante, Agora e Sempre, Maldosas, W.I.T.C.H., Vivendo e Aprendendo são apenas alguns exemplos. Mas dentro das 25 temporadas do seriado Malhação, exibido desde 1995 na Rede Globo, isso é algo inédito. Em 22 anos, é a primeira vez que a série tem cinco protagonistas. Todas garotas, todas diferentes em suas vidas e seus passados — as cinco conectadas de repente pelo mesmo vagão do metrô.

Malhação: Viva a Diferença é ambientada em São Paulo e começa com uma manhã chuvosa característica da metrópole. Keyla (Gabriela Medvedovski), Lica (Manuela Aliperti), Tina (Ana Hikari), Ellen (Heslaine Vieira) e Benê (Daphne Bozaski) se encontram no mesmo carro do metrô quando o trem para. Uma manhã quieta, as cinco estão sozinhas dentro do vagão. Keyla, grávida, começa a sentir as contrações do parto. É naquela hora que as cinco acabam ligadas por uma situação inusitada: as outras quatro garotas têm que ajudar a fazer o parto da criança.

Com passados diferentes, personalidades que se chocam e vidas opostas, as cinco se unem por uma amizade forte. Ao insistirem na amizade, suas vidas e também as vidas das pessoas ao redor se modificam: é a diferença que agrega e enriquece suas percepções do próximo. As escolas que as garotas frequentam, uma particular e outra pública, tomam conhecimento do espaço coletivo que compartilham no bairro da Vila Mariana a partir do entrelaçamento das vidas das Garotas do Vagão, como elas ficam conhecidas. As questões sociais e financeiras diferentes nas vidas das meninas vêm à tona a cada capítulo da temporada, no ar desde maio de 2017.

Uma aula de multinarrativa, cada uma das meninas tem problemas que são resolvidos com ou sem a ajuda das outras. Tina tenta emplacar uma carreira de compositora, ao mesmo tempo em que vive em pé de guerra com a mãe rígida. Ellen busca novas formas de trabalhar com seu interesse, a programação, enquanto todos os adultos ao seu redor continuamente tentam desencorajá-la, além de lidar com o racismo diário que vem acoplado à cor de sua pele. Keyla se vê às voltas com um filho recém-nascido, querendo voltar o mais rápido possível a estudar e procurando pelo pai do bebê. Lica precisa enfrentar o pai, um diretor de escola retrógrado, também lidando com o estranhamento da melhor amiga e o divórcio dos pais. E Benê tenta entender o mundo ao seu redor, as emoções que tenta sentir ao aprender piano e as dinâmicas dos relacionamentos interpessoais.

Apesar da série ter vivido muitas temporadas boas, Malhação: Viva a Diferença tem uma qualidade superior difícil de ser igualada pelas outras. Não só pelo trato com os personagens e suas passagens pela turbulência da vida, mas também com a condução das narrativas. Viva a Diferença conseguiu o que poucas ou quase nenhuma temporada de Malhação havia conseguido até o momento: atingir um nível narrativo que vem sendo comparado a novelas de outros horários da emissora, que é referência internacional no que diz respeito à qualidade técnica de seus folhetins. De forma extraordinária, a atual temporada de Malhação caiu nas graças do público e tem quem diga ser a melhor novela no ar atualmente. É uma das poucas que conseguiu manter a qualidade narrativa durante toda a sua duração, o que pelo menos as três anteriores, Pro Dia Nascer Feliz, Seu Lugar no Mundo e Sonhos, não souberam fazer.

O merchandising social de Viva a Diferença está tão intrínseco à narrativa que nem percebemos ele lá, seja no romance a la Romeu e Julieta entre o garoto negro e a descendente de japoneses, no racismo sofrido pela garota que ganha uma bolsa no colégio particular, ou no garoto abusado pelo pai alcoólatra. Em outras temporadas, o marketing social acabou sendo raso e muitas vezes sem sentido. O mal uso dos clichês e romantização de relacionamentos abusivos era o que não faltava na novelinha. Impossível não citar a temporada anterior, Pro Dia Nascer Feliz, com a primeira protagonista negra, Joana (Aline Dias), era infernizada por sua irmã loira, Bárbara (Bárbara França) em todos os capítulos; ou ainda a temporada Sonhos, onde o relacionamento abusivo vivo por uma das personagens principais, Karina (Isabella Santoni), foi apresentado como romântico, reforçando ideias obtusas sobre consentimento, tema tão importante para o público alvo. Numa cena, o “mocinho” Pedro (Rafael Vitti) finge que a maçaneta do banheiro está quebrada para ficar trancado com a mocinha lá dentro. Até mesmo em Seu Lugar No Mundo o uso de clichês foi feito de forma apressada: drogas e desaparecimento de jovens negros terminaram no sequestro da protagonista, Luciana (Marina Moschen), mais uma para a extensa lista de mocinhas sequestradas durante todos esses anos que a novela está no ar.

Viva a Diferença tratou de vários desses temas de forma profunda e didática, sem que os arcos narrativos fossem enfadonhos ou irreais. Por exemplo: o uso de drogas pelos adolescentes é claro, mas não demonizado. Além do uso de cigarros — Lica é pega fumando pela mãe — e bebidas, em diversas situações as drogas figuraram na novela. Duas em particular chamam a atenção: uma implícita e outra explícita, onde o “apelido” da droga foi dito claramente. Lica, Felipe (Gabriel Calamari) e MB (Vinicius Wester) estão no galpão onde os adolescentes se encontram. É claro o estado alterado dos três, que provavelmente haviam fumado maconha. Não é dito nada, mas pela atitude dos três, é capaz de se deduzir. É interessante a não demonização do uso de drogas, embora as consequências do uso sejam claras. Em Viva a Diferença não é o que você tem que importa, mas sim, o uso que se dá para aquilo.

É numa espécie de clímax do que pode ser considerada a primeira temporada de Viva a Diferença que vemos algo raramente mostrado em Malhação nesses vinte anos. Lica dá uma festa no apartamento da mãe quando esta está viajando. MB leva bebidas e compra de Moqueca um negocinho. Ao dar a droga para Lica, ele diz em claro e bom tom: “Toma aqui gata, um Michael Douglas pra te alegrar”. Michael Douglas é “apelido” da droga que tem como princípio ativo metilenodioximetanfetamina (MDMA), também presente no ecstasy. É uma droga usada na cena eletrônica — o DJ João Brasil tem uma música homônima sobre o tema — e dá um efeito eufórico ao mesmo tempo em que tira o sono.

O uso de Michael Douglas não passa sem consequências: Lica e MB vão parar no hospital. Ela, pela perda de consciência causada pela droga; ele, por se envolver em um acidente de carro ao dirigir alterado. Anteriormente Keyla também havia acabado no hospital após ter uma parada cardíaca devido ao abuso de remédios para emagrecer.

Não são apenas os dois que sofrem consequências com a festa de Lica. Fio (Lucas Penteado) é vítima de racismo por parte dos seguranças do prédio. O garoto não só é detido injusta e ilegalmente, como os seguranças ainda roubam seu dinheiro. Ao conseguir escapar, o medo de ser morto pela polícia é real ao encontrar uma viatura enquanto vaga pelo bairro dos “playba” tentando voltar para casa. Fio afirma que só foi liberado pois os policiais o reconheceram de seus vídeos de dança do YouTube.

Além do racismo escancarado sofrido por Fio, Ellen também sofre com a mudança para o Colégio Grupo. A coordenadora Malu (Daniela Galli) faz de tudo para que a garota seja expulsa da escola. Não é claro se o preconceito da professora é racial ou social, mas é fato que em quase todas as situações os dois andam juntos. E esse é o caso de Ellen, que apesar de fazer por merecer a bolsa de estudos, não é imune às humilhações da professora e de alguns colegas. A garota sofre, mas com a ajuda dos amigos, da família e de Dóris (Ana Flávia Cavalcanti), a diretora do Colégio Cora Coralina, consegue mudar o ambiente à sua volta e mostrar que lugar de negro é onde ele quiser.

Não é só a questão do racismo que Viva a Diferença trata de forma brilhante. O abuso também foi narrado às claras. A situação de Tato (Matheus Abreu), que apanha do pai alcoolista, fica tão insuportável que ele tem que sair de casa. Primeiro Das Dores (Ju Colombo) e Nena (Roberta Santiago), avó e mãe de Ellen e Anderson (Juan Paiva), o acolhem em casa. Depois é Roney (Lucio Mauro Filho), pai de Keyla, quem dá um teto ao garoto, inclusive virando guardião legal do moço.

Já com Katarine, a K1 (Talita Younan), a situação parece se desenrolar de forma mais pesada. O namorado de sua mãe, após anos distante, volta a fazer parte da vida das duas. Porém, dessa vez ele volta diferente: a olha de um jeito estranho, abre a porta do quarto e do banheiro quando ela está trocando de roupa, dá presentes sexuais. A garota sente vergonha e culpa, mas com a ajuda de Keyla e Dóris consegue ir na Delegacia da Mulher e fazer uma queixa contra o homem. A mãe de Katarine decide não colocar o namorado para fora de casa, e a garota tem que se mudar para a casa da tia.

É interessante ver que os problemas do colégio particular diferem tão intensamente dos problemas da escola pública. Não apenas com o sucateamento do ensino público e da escola física em si, mas também com os problemas dos alunos. Enquanto os alunos do Colégio Grupo lutam pelo fim de um sistema apostilado, os do Cora têm que lidar com a superlotação de salas devido a um incêndio que destruiu uma escola vizinha. O abuso também difere: enquanto Tato é espancado pelo pai e o padrasto de K1 tenta fazer avanços sexuais na garota, Clara (Isabella Scherer) é abusada psicologicamente pela mãe ao ponto de se ferir. Não que sejam diferentes, mas os abusos físicos são tratados de forma mais urgente, talvez porque Dóris, a diretora da escola pública, seja mais presente e atenta às necessidades de seus alunos muitas vezes desamparados.

Muito na temporada é dito às claras, principalmente os problemas sociais como racismo, abuso e drogas, mas alguns assuntos também são tratados implicitamente, o que talvez tenha contribuído para o pouco entendimento da situação em que a personagem se encontra. Muitos acharam que Guto (Bruno Gadiol) era gay, até mesmo o próprio personagem. Porém, ficou claro que na verdade ele é assexual, alguém que não desenvolve atração sexual por outras pessoas. Mas isso não fica explícito em tela, a epifania de Guto vem com o trabalho nas sessões de terapia com sua psicóloga — as quais não acompanhamos em nenhum momento, o que sabemos vem apenas pela fala do garoto posteriormente.

O período em que Lica tem depressão também fica implícito. A garota se envolve em festas e drogas quase todos os dias, o que levou muitos a acreditarem que ela era apenas uma menina mimada. Mas, na verdade, a garota passava por um período conturbado. Por achar que era parecida com o pai e pensar ser incapaz de amar e ser fiel a alguém, Lica tenta lidar com esses sentimentos da única forma que sabe: álcool, drogas e música alta. Em seguida vem o quadro depressivo: não quer levantar da cama ou comer, perde a noção do tempo, se tranca no banheiro com o chuveiro ligado. São atitudes pequenas e implícitas que não parecem fazer sentido, mas quem já se encontrou em situações similares sabe exatamente o que passava com a personagem.

Já o fato de Benê ter Asperger, um transtorno do espectro autista, nunca foi dito por nenhum personagem. Sabemos que a garota é diferente dos outros, e ela exibe clinicamente todas as caraterísticas de Asperger, mas em momento algum é confirmado o diagnóstico, talvez para que não nos detenhamos muito nisso, o que é justo. Para algumas pessoas ainda é difícil compreender que é possível ter uma vida ótima convivendo com transtornos mentais. Ao mesmo tempo é também importante dar nome aos bois. Numa temporada com tanta repercussão como Viva a Diferença, muitos espectadores se espelham e se veem nos personagens.

A temporada não deixa de lado a importância dos psicólogos: Guto, Benê e Lica comentam o tempo todo que fazem consultas regulares. Luis (Ângelo Antônio), pai de Clara, também procurou um analista para a garota quando soube que a filha se auto-mutilava.

Embora seja inovadora, a temporada ainda peca na pouca representatividade LGBTQ+. Apesar de Benê e Guto serem assexuais, isso não fica explícito em tela e não há nenhuma representatividade das outras siglas do movimento. O primeiro beijo homossexual da novela aconteceu na temporada, porém foi dentro do contexto de queerbaiting. Repudiado pela comunidade, o recurso é prática comum em obras audiovisuais: dois personagens do mesmo gênero se beijam apenas por se beijar, para causar choque nos espectadores e atrair audiência. Não há narrativa por trás do beijo e não há motivo para o mesmo. Lica beija K1 em uma festa, mas as duas nunca haviam se falado antes. Em outra ocasião, Lica e Ellen dão um selinho em um beijaço organizado pelas garotas onde todos beijam a pessoa mais próxima. Qualquer bissexualidade que poderia ter sido inserida no personagem de Manuela Aliperti foi resumida apenas ao choque de um beijo em outras garotas, sem envolvimento emocional algum ou desenvolvimento da personagem nesse sentido.

Já em relacionamentos, Samantha (Giovanna Grigio) é tida como a “moderninha” do grupo. Apesar de dizer incessantemente ser adepta do poliamor e implicitamente pansexual, não é o que a narrativa da personagem mostra. Em momento algum vemos Samantha em um relacionamento com mais de uma pessoa ao mesmo tempo ou ficando com pessoas de outros gêneros além do masculino.

Ainda assim Malhação: Viva a Diferença é uma obra inovadora e pertinente aos jovens do século XXI. Talvez por isso faça tanto sucesso igualmente entre público e crítica. É difícil não se apaixonar pelas Five do metrô e seus cotidianos. Uma temporada de sucesso assim não seria capaz com a configuração antiga que Malhação vinha tendo. A transformação do formato sugerida por Cao Hamburger e sua equipe foi crucial para contar histórias importantes de jovens brasileiros que até hoje vinham sendo negligenciadas. Viva a Diferença é prova viva que o audiovisual brasileiro é tão bom quanto o estrangeiro e que se pode fazer obras voltadas aos jovens com a mesma qualidade destinada ao público adulto.

6 comentários

  1. Logo após a postagem desse texto a representatividade LGBTQ+ começou a ser melhor explorada nesses últimos capítulos da novela.

  2. Olá, pessoal! Excelente texto. Só um esclarecimento: a Síndrome de Asperger não é uma doença. Trata-se de um transtorno do espectro autista, no lado mais “brando”, digamos assim, do autismo. Sugiro que se faça a troca do termo “doença” para não gerar uma leitura equivocada nem reforçar um entendimento equivocado dessa condiçao. Abraço!

    1. Agradeço a dica, Ada. De fato, chamar autismo de “doença” é uma ofensa forte contra os autistas. E complemento (talvez corrigindo) que a Síndrome de Asperger (ou, como o DSM-5 se refere oficialmente desde 2012, “Transtorno” do Espectro Autista Nível 1) não deveria ser vista como um “transtorno” – menos ainda pelo termo “transtorno mental”, que é tão pejorativo e oneroso quanto “doença” -, mas sim uma condição neurodiversa.

      Quando chamam o autismo/Asperger de “transtorno”, fica fácil compará-lo com transtornos mentais propriamente ditos, como depressão, burnout, Tourette e ansiedade generalizada. Em todos esses casos, diferentemente do autismo, o problema é o transtorno, que traz sintomas inerentemente negativos e causadores de sofrimento, não as características humanas que caracterizam a condição (que, no caso do Asperger, podem ser tanto negativas, como as dificuldades de socialização e de compreensão de linguagem não verbal, como muito positivas, como a propensão a ter uma inteligência acima da média ou mesmo a nível superdotado, a especialização extrema numa área de conhecimento, a honestidade, a sinceridade, a lealdade e a aversão à hipocrisia) e a forma como a sociedade lida com estas.

      A própria Benê, no capítulo (do final de fevereiro de 2018, bem depois do fechamento deste post) em que se assume aspie pro pai, deixa claro que Asperger não é uma doença, mas sim uma diferença. Inclusive eu, na condição de aspie, percebo que o preconceito que aspies como ela (na ficção) e eu (na realidade) sofremos é decorrente, entre outros motivos, do preconceito de os outros nos verem como “doentes”, “transtornados” ou “menos capazes”.

      Portanto eu peço uma nova correção na forma como o autismo/Asperger é mencionado no post: que se fale de “condição” ao invés de “transtorno”.

      Grato

  3. Bacana o texto, galera! Só acho que, como o texto foi divulgado novamente hoje (06/03), esse fim merece uma atualizada, pois o tal do #limantha andou quebrando a internet e foi muito representativo nesse tempo. Apesar de ainda não ter sido tudo o que a gente queria, tratando-se da nossa TV aberta e do momento em que vivemos, foi um passo enorme e muito importante. Pra quem, como eu, cresceu com Malhação e nunca tinha visto isso, é de ficar boba vendo. <3

    1. Oi Veronica! Que bom que gostou do texto, acho que você vai curtir ainda mais a parte dois, que logo sai. 😉

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