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Madonna: você sabe como se sente uma garota nesse mundo?

Em 1990, logo após o lançamento do polêmico clipe “Justify My Love”, Camille Paglia escreveu um artigo no jornal The New York Times intitulado Madonna — finally, a real feminist. Em uma crítica ao clipe, “O vídeo é pørnográfico. É decadente. E é fabuloso”, Paglia desenvolve o argumento de que o ataque aos homens como categoria/classe é um erro de alguns dos feminismos e que o trunfo de Madonna estava em reconhecer o masculino. Reconhecer e entender que as ambiguidades e profundidades presentes em relacionamentos heteronormativos, o sexo, a sexualidade e o desejo, o prazer e o corpo, a colocariam na vanguarda do feminismo.

“O Feminismo diz: chega de máscaras!
Madonna diz que não somos nada, senão máscaras.”

A carreira

Esse parágrafo inicial serve para dar uma ideia do quão polêmica é Madonna Louise Ciccone. Nascida em Bay City, Michigan, a leonina se mudou, no final da década de 1970, para Nova York em busca do sonho da carreira artística, inicialmente na dança. Em 1983 lançou seu primeiro álbum, Madonna, e iniciou o que seria uma fase de sucesso absoluto na década de 1980, com o lançamento de mais três álbuns: Like a Virgin, True Blue e Like a Prayer. Cada um desses trabalhos marcou uma fase na carreira da cantora — da garota rebelde com cabelos volumosos, vestida de rendas e meias arrastão, passando pelo cabelo super curto, menos acessórios e muita androginia, até o sutiã de cone criado por Jean Paul Gaultier que habitou o imaginário da moda, tudo em uma única década. São dessa época os hits: “Everybody”, “Holiday”, “Borderline”, “Papa Don’t Preach”, “Material Girl”, “La Isla Bonita” e “Express Yourself”, para citar só alguns.

Em 1990, ela transformou tudo de novo, lançou um livro, Sex, fotografado por Steven Maisel, e outro álbum, Erotica, que marcaria sua fase mais provocante e sexualmente explícita até então. É a fase do clipe comentado por Paglia, que foi banido da MTV e altamente criticado pela Igreja Católica e por grupos mais conservadores. Foi um momento de virada na carreira da artista, que tomou nas mãos todo o seu potencial e fez o que queria, da forma como queria. Falar sobre tabus por meio de diferentes manifestações artísticas (fotografia, videoclipes e música), utilizando-se de uma estética própria, serviu não só para alavancar a carreira de Madonna, mas também para mudar os patamares de uma artista multifacetada e talentosa. Ao trazer à tona aspectos relativos a gênero, orientação sexual e práticas sexuais que ficam à margem, Madonna causou grande impacto — e recebeu inúmeras críticas, mas ganhou o apoio de grupos mais progressistas.

Todo o furor de Erotica deu lugar a uma Madonna inspirada em Marilyn Monroe em Bedtime Stories de 1994. A artista apareceu com os cabelos platinados, roupas fluidas e claras e uma atitude mais suave, nos moldes do estereótipo de “boa moça”. Para três anos depois, representar Evita Perón no filme Evita, ganhar um Globo de Ouro e sedimentar seu lugar como atriz na indústria cultural. Ainda nos anos 1990, mais uma mudança na performance pública e na imagem, com o álbum Ray of Light e o nascimento de Lourdes Maria, sua filha. O cabelo preto, o envolvimento com a cabala e as entrevistas evocaram um lado gótico-místico que marcou outro momento da sua carreira.

O século XXI trouxe uma Madonna mais pop, influenciada pelo country e pelo folk em Music, seguido de American Life, que prezou pelo conteúdo político e referências ao modo de vida americano. Aconteceu, durante a divulgação de American Life, os beijo em Britney Spears e Christina Aguilera na apresentação do MTV Movie Awards. Confessions On a Dance Floor, décimo álbum de Madonna, promove outra reviravolta, em direção à temas menos polêmicos, músicas para dançar, com influências da era disco dos anos 70/80 e da dance music e o reconhecimento através do Grammy de Melhor Álbum Dance/Eletrônico neste ano.

Hard Candy explora a fase das colaborações (com Justin Timberlake e Timbaland, por exemplo) e um som mais ligado ao hip hop e aos ritmos urbanos, sem deixar o lado pop. MDNA é um álbum mais dance e eletrônico, com parcerias com M.I.A. e Nick Minaj. Na sequência, Rebel Heart, o último dos seus álbuns de estúdio até o momento, foi bem recebido pela crítica especializada. Uma continuação melhorada de MDNA, Rebel Heart possui influências novas e antigas, desde dance music até violão, reggae e arranjos variados, contando com colaborações de Diplo, Avicii e Kanye West. Rebel Heart, inclusive, sintetiza a carreira de Madonna. É a celebração de contradições: uma artista que diz resistir à padronização da indústria cultural, mas flerta com o padrão das rádios e das novidades sonoras, que mistura influências, que quer ouvir seu coração, mas tem um lado rebelde. É um álbum com músicas dançantes e outras nem tanto, mais introspectivas. É romântico e rebelde. A abertura da turnê começa com a cantora explicitando sua vontade de revolução, de lutar pelo que acredita a despeito de todas as forças contrárias:

“Pois quando os homens daqueles ditadores fascistas vierem atrás de você com suas grandes botas de couro pra te calar e colocar uma mordaça em sua boca
Você deve estar preparado para lutar por aquilo em que acredita
É melhor você se preparar para morrer pelo que acredita
Eu quero começar uma revolução!
Vocês estão do meu lado?”

E esse discurso não fica restrito à turnê, mas apareceu também na Marcha das Mulheres, no dia 21 de janeiro de 2017, nos EUA, quando ela fez o seguinte pronunciamento: “Sejam bem-vindas à rebelião do amor. Para a rebelião da nossa recusa, como mulheres, em aceitar essa nova era de tirania. Não só as mulheres estão em perigo, mas todos os povos marginalizados. […] Digam sim, nós estamos prontas para começar uma revolução em nome da liberdade e da igualdade”.

O ativismo da artista já foi criticado algumas vezes, como o da maioria das celebridades. Não é fácil conjugar ativismo e continuar fazendo sucesso na cultura pop, falar sobre o que esperamos do mundo e o que estamos fazendo para mudá-lo mas ainda estar submetida a regras do jogo muito desiguais. Além disso, são muito válidas as reflexões sobre o lado neoliberal do feminismo de Madonna, como discute Maria Luísa Latorre, existem pontos positivos que podem e devem ser destacados, como o talento e a capacidade criativa que a fez se reinventar tantas vezes, seu envolvimento com os coletivos LGBTQIA+ antes que isso fosse uma causa da moda e seu controle sobre sua imagem e carreira.

Mas precisamos falar dos negativos também e não basta nos resignarmos que ela se declare feminista. Entre os negativos está a sexualização da artista, que Latorre critica: “vender o sexy como empoderador não é transgressor. O que tem de subversivo é que ela foi a primeira a fazê-lo e o fez dando à indústria, controlada por homens, uma imagem da mulher sexualizada que satisfaz o olhar masculino”, essa criação de uma cantora sexy e provocativa acabou criando um padrão para outras cantoras pop que sofrem para alcançá-lo e não atinge os homens da mesma maneira. Quando se restringe a poucas pessoas e não chega às outras mulheres oprimidas, o feminismo das letras de Madonna e o lado empoderador do uso do corpo perdem força.

O prêmio

Em 2016, Madonna recebeu o prêmio de Women of the Year pela Billboard. No seu discurso, relembrou Camille Paglia, a autora do início do texto que a havia criticado por se objetificar sexualmente em outro momento, e retrucou dizendo que ela era um tipo diferente de feminista. “Uma má feminista”. As declarações acabaram virando notícia e se desenrolaram com a acadêmica acusando Madonna de se vitimizar e “se perder na riqueza e na fama”. Esse discurso de má feminista encontra eco nas falas da escritora Roxane Gay ao salientar que a definição estreita do conceito de feminismo é a causa de tantos mal-entendidos:

“O feminismo essencial sugere raiva, falta de senso de humor, militância, princípios irredutíveis e estabelece um conjunto de regras para ser uma boa mulher feminista ou, pelo menos, uma boa mulher feminista branca e heterossexual — odeie pørnografia, censure de maneira unilateral a objetificação da mulher, não satisfaça o olhar masculino, odeie os homens, odeie sexo, foque na sua carreira, não se depile — ok, este último é brincadeira. Tudo isso não chega nem perto de ser uma boa descrição do feminismo, mas o movimento tem sido há tanto tempo distorcido por falsas percepções que até quem deveria ser mais consciente acabou acreditando nessa imagem essencial do feminismo.”

É problemático dizer que há um feminismo certo quando existem vários feminismos e essa discussão é tematizada nos próprios movimentos. O que Madonna e Roxane apontam é uma maneira de encarar certas práticas como prejudiciais ao(s) feminismo(s) e, a partir daí, criticá-las a partir de certos parâmetros, como usar o seu próprio corpo no trabalho ou falar sobre sexo. A hipersexualização da cantora é algo a ser discutido enquanto empoderamento, por estar inserido na lógica patriarcalista que força mulheres a utilizarem seus corpos como mercadoria, como fizemos na seção anterior. Madonna tem o mínimo de agência e escolha e decidiu por esse caminho, mas até que ponto essas decisões não são carregadas de uma estrutura que oprime e diminui as mulheres sistematicamente?

Para além das dicotomias certo versus errado, o discurso de Madonna depois de ganhar o prêmio é poderoso quando ultrapassa a abstração do conceito de igualdade/equanimidade entre sexos que é defendida pelo feminismo essencial e fala de experiências sofridas durante sua vida que revelam o machismo entranhado na indústria da música e na sociedade. É quando diz que seus pares homens, Prince e David Bowie, podiam fazer o que quisessem, inclusive flertar com o feminino em suas performances, usar maquiagem e salto, sem serem julgados por isso (ou o serem em menor escala do que ela, como mulher, quando tentava fazer o mesmo). É dizer que perdeu muitos dos seus amigos para a epidemia da AIDS e para a violência. Dizer que, se você for um garoto, não há regras, enquanto se for uma garota, só pode ser bonita e sexy, mas não esperta. E que as mulheres não têm a mesma liberdade que os homens, por isso, nos resta a autoconfiança e a amizade e apoio mútuos:

“Como mulheres, devemos começar a apreciar o nosso próprio valor e o valor de outras. Procure mulheres fortes para fazer amizade, alinhar-se, aprender, colaborar, inspirar-se, apoiar e ser iluminada.”

A sólida carreira e o status da estrela, fizeram Madonna ser tema de vários trabalhos acadêmicos, livros e artigos. Georges-Claude Guilbert, em “Madonna as Postmodern Myth”, elenca oito elementos que constituem os mitos: fortuna, beleza, ambivalência, transgressão, construção, amálgama, longevidade e culto. Acho importante destacar o ponto da longevidade como algo especialmente cruel para as mulheres famosas. Manter-se ativa e respeitada numa indústria que valoriza e exalta a juventude não é fácil:

“Sim, ela é velha agora, e isso certamente não vai mudar. Mas ela também não terminou de dançar, festejar e celebrar, e foda-se quem pensa que deveria ser: Madonna está desafiando a forma como uma estrela pop feminina de mais de 50 anos é percebida na cultura pop e como uma mulher que sua idade ‘deveria’ agir, goste você ou não. Desculpe, ela não está entrando em um vestido, cantando interpretações orquestrais de seus maiores sucessos e desaparecendo silenciosamente na obscuridade — você terá que arrastá-la gritando do estúdio primeiro.” —Bradley Stern

Essa parece ser a próxima batalha da nossa rainha do pop.

2 comentários

  1. Lindo texto sobre essa mulher que aprendi a admirar após entendê-la, não pela qualidade da música, mas por toda a arte que habita essa mente brilhante. A parte mais importante pra mim é quando ela chega a conclusão que muitas de nós ainda precisam chegar: empoderar outras mulheres é empoderar a si mesma.

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