Categorias: LITERATURA

Lock & Key de Sarah Dessen: sentimentos, camadas e intersecções

Passei anos conhecendo Sarah Dessen apenas pelo nome, até me deparar com uma pilha de obras dela na seção de livros em outros idiomas da livraria. Os livros estavam ali, à disposição, e eu estava ali, na ânsia de adquirir algo novo. O único título que eu conhecia, Just Listen, estava em falta, então pedi para minha amiga escolher qualquer um daquela pilha e me entregar. Saí de lá com um livro chamado Lock & Key, sem ideia alguma do que eu poderia esperar dessa experiência literária. E que bom fiz isso. Não sou uma pessoa de encontro às cegas, mas dessa vez me surpreendi, pela profundidade que a história alcança como um livro do gênero jovem adulto.

O livro é narrado pela perspectiva da protagonista, Ruby Cooper, uma adolescente de 17 anos que, após ser abandonada pela mãe, passa dois meses morando sozinha até ser descoberta pela assistência social e levada para morar com a irmã mais velha, Cora, com quem ela há muito perdera o contato. Ruby carrega ao redor do pescoço a chave da casa amarela de fazenda onde morou por último, um símbolo do lugar onde encontrara certa estabilidade após ter passado anos de sua vida morando em locais mais deploráveis depois que sua família ruiu.

A mãe de Ruby era alcoólatra e não tinha senso algum de responsabilidade, consequência de uma série de eventos que se seguiram em sua vida: a gravidez da adolescência, um casamento sem amor, um futuro promissor jogado fora. Cansada de viver em um ambiente cheio de brigas e abusos, Cora, a protetora, saiu de casa aos 18 anos para cursar a faculdade e construir um futuro, deixando Ruby, na época com oito anos, inevitavelmente para trás. Desde então, Ruby vivera apenas com a mãe, mais tomando conta dela do que o contrário, sendo a intermediária da mãe em negociações e sua companheira no trabalho noturno que consistia em retornar bagagens perdidas de volta aos seus respectivos donos para uma transportadora. Ruby a acompanhava nessas viagens, e assumiu o serviço como se nada tivesse acontecido quando a mãe fugiu. Ela estava acostumada a tomar contar de si mesma. Logo, ao se ver em um mundo totalmente diferente ao chegar na casa de Cora e seu cunhado Jamie, presidente executivo de uma popular rede social, é a essas memórias que ela se prende ao longo de toda a narrativa.

Depois de uma vida de abuso e negligência, os grandes desafios de Ruby passam a ser a adaptação à nova vida — privilegiada, confortável, estável — e a (re)conquista de confiança. Ela se transfere de uma escola pública para a particular Perkins Day em questão de dois dias, deixa para trás os “amigos” de sua outra vida, e se vê cercada por novas conexões as quais ela, a princípio, estava determinada a não fazer. Claro que a resistência não dura muito — em questão de amizade, logo na primeira noite ela conhece Nate Cross, o garoto atlético e amigável que mora na casa ao lado e que sem perguntar ajuda Ruby a dar uma desculpa a Jamie quando ela foi pega tentando pular a cerca para fugir de casa. Eles passam a conviver cordialmente quando Jamie faz um acordo com Nate em conseguir uma carona para Ruby ir à escola todas as manhãs, e apesar do distanciamento da garota, a paciência, o respeito pelo espaço dela e a simpatia e confiança constantes aos poucos vão baixando suas barreiras.

Lock & Key é um livro sobre sentimentos entrelaçados, humano do começo ao fim. A primeira impressão que temos de Ruby é que ela é toda desconfiança, mas ao passo em que ela vai relembrando momentos cruciais do seu passado, percebemos todas as mágoas que ela guarda dos vários abandonos das pessoas importantes em sua vida. E a presença dessa mágoa deixa evidente o quanto aquelas pessoas importavam para ela, o quanto ela as amava independente das circunstâncias ruins. É certo que o amor que ela conhecia até então era fraternal, nutrido especialmente pela mãe e a irmã, porém, a decepção com elas que Ruby conheceu tão cedo, danificou suas outras formas de amar. Toda relação que ela tivera foi sem compromisso, sexo apenas; contato humano nos momentos de necessidade. Ela tinha todo o potencial para seguir os passos da mãe e se render ao ressentimento e ao vício. Ser resgatada por Cora depois de tantos anos sendo deliberadamente afastada dela, como descobrimos depois, é uma grande reviravolta em sua vida. Não apenas por estar sob um teto com água quente e eletricidade e todas as provisões mais confortáveis que uma pessoa pode desejar, mas por ter entrado pela primeira vez em um ambiente onde a família é um alicerce firme e as definições que ela conhece da palavra precisam ser renovadas. É um processo de aceitação constante e não tão fácil de ser enfrentado.

O amor existe em várias formas nesse contexto. O amor está em Cora e Jamie, que construíram uma união verdadeira nos anos em que ela esteve afastada. O amor está em Jamie e na perfeita relação que ele tem com a família, que por sua vez, faz de tudo para incluir as meninas Cooper nela e compensar tudo o que elas não tiveram. O amor ainda está na proteção incondicional de Cora, e na esperança de Ruby de um dia reencontrar a mãe e entendê-la. São amores, perfeitos ou imperfeitos do jeito que são, mas essenciais para a construção ou a recuperação de cada pedacinho da história e de cada personagem que nela permeia. Ruby não se entrega a essa perspectiva tão fácil — ela permanece firme, independente e vulnerável ao mesmo tempo, querendo fazer valer o voto de confiança que lhe deram, mas com algumas escorregadas feias (afinal, uma personagem que passou por tantos traumas está longe de ser livre de defeitos e maus julgamentos). No entanto, o tempo faz seu trabalho e aos poucos ela passa a dar o benefício da dúvida a essa nova atmosfera.

Não deixando de oferecer o que muitos livros do gênero oferecem, a proximidade de Nate e Ruby acabam levando ambos a um relacionamento. O que a princípio parece ser algo a que Ruby possa se agarrar já que Nate é um garoto honesto e genuinamente prestativo, mostra-se mais um desafio em sua vida. Com o passar do tempo e com a evolução da intimidade de ambos, fica cada vez mais evidente que vida de Nate também não é perfeita, ele guarda segredos e precisa de ajuda à sua própria maneira. E a preocupação com ele faz com que Ruby transcenda sua própria história para ajudá-lo, ponto que atinge a intencionalidade de Sarah Dessen com esse romance: criar uma protagonista que aprenda que para salvar a si mesma ela precisa (ajudar a) salvar outra pessoa.

É difícil de acreditar que um jovem adulto possa atingir níveis tão profundos em seu enredo, não é? Embora estejamos automaticamente condicionados a associar o gênero a meros romances juvenis e fantasia, existem tipos e tipos de histórias. Esta, no caso, trata de questões sérias na adolescência e o amadurecimento perante elas de forma muito eficaz.

Sarah Dessen está longe de ser pretensiosa, mas consegue escrever com maestria. Nunca havia lido um livro sem acabar desgostando de um personagem sequer (à exceção, é claro, os abusadores), mas terminei Lock & Key apegada a todos seus personagens secundários por terem sido representados de forma tão justa — da ex-namorada de Nate ao menino pentelho superdotado que compartilha a carona com eles. Todas as pontas soltas apresentadas no decorrer do livro são bem amarradas, mas o futuro das personagens fica aberto para que o leitor imagine o depois como bem entender. Lembra-me muito os finais dos romances de Jane Austen, que até hoje deixam seus leitores imaginando como suas heroínas viveram após o casamento. Chega a ser ultrajante que uma história como essa possa nunca ter o devido alcance por pertencer a um gênero que é indevidamente subestimado, e também por ter o nome de uma mulher impresso em sua capa.

Lock & Key infelizmente ainda não tem tradução, mas os livros de Sarah Dessen são publicados no Brasil pela Seguinte (selo da editora Companhia das Letras). Ainda tenho muitas esperanças de que esse título esteja na fila de próximas publicações, mas, enquanto isso, tenho certeza de que seus irmãos são tão bem construídos e tão envolventes quanto.

“Olhando para o lago, tudo o que conseguia pensar era em como é incrível um mundo inteiro poder surgir do que parece absolutamente nada.” (tradução livre)


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