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Livre, a referência mais importante do revival de Gilmore Girls

No terceiro episódio do revival de Gilmore Girls, Lorelai (Lauren Graham) é vista lendo Livre — originalmente chamado de Wild —, livro de memórias de Cheryl Strayed publicado em 2012 e adaptado para o cinema em 2014 pela então recém-nascida produtora de Reese Witherspoon. Diferentemente do que seria natural esperar, nos quatro episódios do revival a referência literária mais importante não parte de Rory, e sim de Lorelai. Livre se torna extremamente importante para a jornada vivida pela personagem.

Atenção: Este texto contém spoilers de todos os quatro episódios de A Year in the Life — inclusive quanto às palavras finais.

Quase dez anos depois dos eventos aos quais assistimos na conclusão da sétima temporada, Lorelai continua passando por alguns dos mesmos problemas que tanto a atormentavam naquela época: a relação complicada com a mãe (Kelly Bishop) e as consequências que a falta de comunicação com Luke (Scott Patterson) trazem para seu relacionamento. Some-se a isso o luto pela morte ainda recente do pai (Edward Herrmann, falecido em 2014) e uma briga com Rory e não é tão difícil entender por que Lorelai sente necessidade de fugir, vendo na Pacific Crest Trail (ou PCT), a trilha que atravessa a costa oeste dos Estados Unidos e serve de pano de fundo para Livre, um lugar para onde se deslocar em busca de algum tipo de resposta. Porque mesmo que você nunca tenha ouvido falar na PCT, mesmo que você jamais tenha feito uma trilha na vida, tem grandes chances de a narrativa de Cheryl Strayed mexer com você.

A jornada de Cheryl Strayed

Livre foi meu livro favorito no ano passado e, se tivesse comprado uma cópia física ao invés de um ebook, hoje ele estaria repousando na minha cabeceira. 2015 foi um ano difícil e, lendo Cheryl recontar como foi perder sua mãe aos 22 anos, senti o peito apertar e as lágrimas escorrerem a ponto de não conseguir continuar por alguns minutos. É forte e visceral e ela vai no fundo da dor que sentiu, sem medo de falar dessa dor, que a machuca e que domina cada parte sua. Cheryl vinha de um lar desfeito porque seu pai era violento e abusivo, e a mãe dela é descrita quase como uma força sobre-humana, funcionando como a cola que une Cheryl aos irmãos e ao padrasto. Quando ela se vai, a unidade se desfaz e Cheryl não sabe muito bem como prosseguir a partir dali. Em meio à dificuldade que encontra em se adaptar ao resto de sua vida, ela cai numa espiral de autodestruição e não tem mais muita certeza do que está fazendo.

A PCT vem para salvá-la. O encontro entre Cheryl e a trilha parece coisa do destino, o lugar certo na hora certa. Na fila do caixa de um loja, ela se depara com um guia sobre a PCT. De repente, ela tem certeza de que trilhá-la completamente sozinha, sem nenhuma experiência, é aquilo de que precisa. Funciona quase como um chamado celestial, embora Cheryl não seja religiosa.

“Eu era péssima em crer nas coisas, mas também era péssima em descrer. Eu procurava ao mesmo tempo em que era cética. Não sabia onde depositar minha fé, ou se existia tal lugar, ou mesmo exatamente o que a palavra fé significava em toda sua complexidade. Tudo parecia possivelmente potente e possivelmente falso.”

O livro é uma narrativa muito honesta sobre tudo: perda, dor, solidão, desejo, medo, erros, a arrogância de se enfiar em uma trilha sem nem ao menos ter lido o guia por completo e todas as outras escolhas erradas que todos já cometemos e ainda cometeremos. Livre tem força porque Cheryl permite que tenha. Porque Cheryl não se culpa mais pelo passado: “E se aquilo que me faz fazer todas as coisas que todo mundo achava que eu não devia ter feito também fosse o que tinha me trazido até aqui? E se eu nunca fosse redimida? E seu já tivesse sido?”, ela se pergunta. Cheryl entende e aceita que seu passado é parte de quem ela é. Sem ele, talvez ela nunca tivesse percebido, sozinha no meio do nada (mas que na verdade é tudo), que podia carregar nas costas tudo o que precisava para sobreviver e que conseguia suportar o insuportável.

Livre
Cheryl em 1995.

Na citação mais famosa de Walden (lida por Robert Sean Leonard num dos meus filmes favoritos, Sociedade dos Poetas Mortos), Henry David Thoreou explica que foi viver no meio do mato porque “queria viver deliberadamente [e] encarar somente os fatos essenciais da vida”. Quando Cheryl Strayed percebe que ela consegue carregar tudo de que precisava para sobreviver nas costas, ela fica surpresa com o quão simples de repente lhe pareceu sua vida complicada. A natureza inabitada e deixada em paz não quer saber por onde você andou, o que fez ou com quem. Você só precisa saber como se manter vivo.

De volta a Lorelai

É porque Cheryl é tão sincera quanto a tudo aquilo que sentiu e não procura se poupar em nenhuma situação que cada momento de iluminação que ela descreve ao longo de suas memórias não parece gratuito ou preguiçoso. Em A Year in the Life, Lorelai se junta a dezenas de outras mulheres na Califórnia que querem embarcar na longa caminhada que as espera na PCT. Sempre em dia com o mundo da cultura pop, Amy Sherman-Palladino acha um modo engraçadinho de retratar um fenômeno real pelo qual Livre foi responsável: o aumento considerável de pessoas inexperientes trilhando a PCT. “Talvez a PCT também me traga algumas respostas”, é o que pensam todas aquelas mulheres. Tem um certo tom de graça naquele grupo, que não ganha profundidade emocional que justifique sua busca, talvez porque é óbvio que tentar emular a jornada de outra pessoa só porque você a achou bonita não tem muitas chances de funcionar. A jornada de Cheryl não funciona com Lorelai porque ela nem chega a fazer a trilha, impedida de entrar ao não encontrar sua autorização.

Lorelai só encontra o que estava procurando quando vai atrás de, inevitavelmente, café. Ela não encontra, mas, no lugar, se depara com uma bela paisagem da Califórnia, em meio às montanhas. É um momento que me lembrou de um trecho particularmente bonito do capítulo “Do Sublime”, de A Arte de Viajar, no qual Alain de Botton afirma:

“A vida humana não é menos devastadora, mas são os vastos espaços naturais que talvez nos ofereçam o melhor e mais respeitoso lembrete de tudo o que nos transcende. Se passarmos algum tempo com eles, talvez nos ajudem a aceitar com mais elegância os grandes e inconcebíveis acontecimentos que molestam nossa vida e nos retornarão, inevitavelmente, ao pó.”

É em meio a essas montanhas que Lorelai, numa das cenas mais bonitas do revival, telefona para Emily, no outro lado do país, para compartilhar com ela uma boa história que viveu com o pai. Era aquilo que sua mãe havia pedido que ela fizesse durante o funeral de Richard, quando restavam alguns poucos amigos dele compartilhando memórias, e que Lorelai não conseguiu fazer. Uma boa história entre Lorelai e Richard não apaga todos os problemas que eles tiveram um com o outro ao longo da vida, assim como o “obrigada, Lorelai” radiante de Emily ao telefone também não o faz, mas ninguém esperaria que isso acontecesse. Afinal, ao longo das agora oito temporadas de Gilmore Girls, vimos episódio após episódio o quanto as relações humanas são complexas dentro da série, tanto como na vida.

Aberto o canal de comunicação com a mãe, Lorelai sabe o que tem que fazer, e não é mais tentar encontrar respostas entre as montanhas. É falar, justamente aquela coisa que ela tanto gosta de fazer, mas falar o que precisa ser dito, ainda que seja difícil. Cheryl Strayed contou em seu Instagram que ficou muito comovida com a aparição de seu livro em Gilmore Girls, especialmente porque a paisagem californiana leva Lorelai, antes de tudo, a telefonar para sua mãe. Livre é, afinal, uma história sobre uma mulher no mundo, uma história primeiramente sobre filhas e mães e tudo que existe nessa relação tão fundamental. Assim como Gilmore Girls.

E, por fim, Rory

Mas existe ainda um ponto de conexão mais básico e simples entre Livre e o revival de Gilmore Girls, especialmente se considerarmos as já tão discutidas (e polêmicas) quatro palavras finais que Amy sempre quis dar às meninas. Foram necessários dois dias para que eu processasse tudo o que vi e finalmente entendesse o quanto aquele final — ainda que não seja de modo algum inevitável — só veio para reafirmar as bases sobre as quais a série sempre se sustentou.

Nem Lorelai, nem Emily, nem Richard jamais sonharam com uma gravidez aos dezesseis anos para a primeira, uma gravidez pela qual ela teve de sacrificar uma porção de coisas. Mas, se a vida a desviou dos planos, ela também trouxe Rory, sua melhor amiga e a menina dos olhos dos avós, pela qual os três obviamente nutrem um carinho imenso. Lorelai jamais planejou depender financeiramente dos pais mais uma vez depois que saiu de casa, mas ela vai em frente e pede o dinheiro por acreditar que a educação de Rory é uma prioridade indiscutível. Isso acaba aproximando a menina dos avós, os dois pilares de sustentação que ela menciona em seu discurso na formatura de Chilton. Lorelai provavelmente não queria passar de Christopher (David Sutcliffe) a Max (Scott Cohen) a Jason (Chris Eigeman) a Christopher de novo, mas no fim ela encontrou Luke, que já era seu companheiro de vida muito antes de se tornar seu marido. Tudo isso nos lembra que só porque a vida às vezes nos surpreende e muitos de nossos planos estão destinados a falhar, falhar miseravelmente, não significa que a partir dos desvios que tomamos como novos rumos não podem surgir coisas boas ou belas.

Olhar para o final destinado a Rory como intrinsecamente negativo é ignorar tudo o que a série nos mostrou ao longo de tantos anos. Não há nenhuma indicação de que Rory está infeliz, muito menos de que Rory vai deixar todas as suas ambições profissionais de lado para se tornar mãe em tempo integral para sempre — coisa que Lorelai, que termina o revival como uma empreendedora em expansão, também nunca fez. Se parece seguro afirmar que os sonhos de ser correspondente internacional de Rory ficam muito distantes, também é verdade que ela chega ao final dessa nova rodada da série dando pulinhos de empolgação com os três primeiros capítulos de seu livro. Me pergunto se é mesmo necessário chamar atenção para o fato de a literatura sempre ter sido uma das forças que moveu sua vida, uma de suas grandes paixões.

Se o revival trouxe algumas escolhas narrativas extremente questionáveis, as quatro palavras finais não necessariamente representam uma delas. Lê-las como um simples a história se repete, considerando Rory, Logan e Jess como meros espelhos de Lorelai, Christopher e Luke ignora as personalidades e escolhas próprias de cada um deles e, talvez o mais importante, a vida inteira que Rory e Logan viveram a mais que Lorelai e Christopher antes de uma segunda gravidez inesperada surgir na linha do tempo dos Gilmore.

Em Livre, Cheryl Strayed reforça que os desvios no meio do caminho são parte de quem ela é, que foram também eles que a levaram até a Ponte dos Deuses, com toda a sugestividade que existe nesse nome, para onde ela retornaria depois e enfim entenderia o sentido de sua jornada. Os desvios na vida de Lorelai a levam a Stars Hollow, onde encontra aceitação e uma forte sensação de comunidade. Os desvios da vida em Gilmore Girls permitiram que o final planejado por Amy Sherman-Palladino só acontecesse nove anos mais tarde, o que, embora seja menos impactante, funciona muito melhor do que funcionaria em 2007. Não temos como saber onde os novos rumos da vida de Rory vão levá-la, mas se tem uma coisa que Gilmore Girls sempre demonstrou com força é que, para além do óbvio, existem vários outros caminhos a seguir.


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8 comentários

  1. Esse texto está maravilhosoooooooooooooooooo! Parabens!!!!!! <33
    um dos melhores reviews que vi por esses dias 🙂

  2. Que texto sensacional! Obrigada por me ajudar a fazer um pouco as pazes com o final de Gilmore Girls e também a refletir de uma forma tão intensa sobre essa coisa louca que é a vida (e a série).

    1. Obrigada você! Fico feliz de saber que o texto te ajudou a fazer as pazes (pelo menos um pouco) com Gilmore Girls, porque a verdade é que no começo eu mesma tinha odiado com força – mas aquele final não me deixou descansar até que eu tivesse refletido bastante sobre ele. Não é um final feliz, mas não é um final trágico. É só… a vida.

  3. Nossa, super parabéns pelo texto, xará!
    Como outras meninas já comentaram, eu também não tinha gostado nenhum pouco do revival, e em especial, menos ainda do final.
    Entretanto, sua opinião foi super refreshing e me fez rever meus próprios posicionamentos. Obrigada! 🙂

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