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8 livros para ler mulheres brasileiras

No último dia 18 de julho comemorou-se o bicentenário da morte da escritora inglesa Jane Austen. Difícil pensar que alguém possa não conhecer seu nome, já que ela é uma mulher extremamente importante para a literatura e criou seu legado em uma época em que as mulheres não eram muito bem-vindas por ali. Acreditamos que ela se remexeria no túmulo se soubesse como ainda é difícil, mesmo que de forma não tão explícita. Também por esses tempos, uma livraria norte-americana se propôs o desafio de virar ao contrário nas prateleiras os livros escritos por autores homens. Resultado? Ficou quase tudo branco.

Também já fizemos parte do grupo de pessoas que, antes de pensar, dizia que era muito exagero pensar em divisão de gênero ATÉ na literatura. E sim, isso é verdade, mas a discussão é necessária a partir do momento que, quando a gente não pensa, os homens são a maioria. Não precisamos contar de novo a história de que J.K. Rowling teve seus dois primeiros nomes abreviados na capa dos livros, de forma a atrair os leitores sem que eles soubessem, ao menos num primeiro momento, que ela era mulher. Com um dado desses não tem como alguém dizer que a pauta é irrelevante.

Outra questão que também precisa ser debatida é a síndrome do vira-lata. Muita gente ainda tem preconceito com a literatura nacional e/ou acredita que a única possível seja a dos homens barbados (seja ele um conceituado Machado de Assis ou o contemporâneo Daniel Galera). As nossas próprias editoras, como será possível perceber ao longo do texto, têm receio de dar chance à nossa literatura, frente às inúmeras opções de best-sellers internacionais sendo cobiçados pelo mercado editorial.

Pensando em tudo isso foi que decidimos enumerar algumas dicas literárias especiais e maravilhosas que talvez nunca nem passaram pelo seu radar. Com vocês, algumas obras de arte escritas por mulheres brasileiras.

Luna Clara & Apolo Onze, por Adriana Falcão

“As sete meninas estavam tão brilhantes de felicidade naquela noite que até arranjaram sete namorados. Enciumadíssimo, Apolo Dez ameaçou reclamar.
— Filha minha não…
Madrugada discordou radicalmente.
— Não o quê? As filhas são minhas também e filha minha sim.”

Adriana Falcão é uma dessas pessoas que pode falar para todo mundo e deixar boquiaberto seres humanos de todas as faixas etárias. Com uma linguagem muito própria e a capacidade excepcional de criar um mundo inteiro, os livros da autora são desses em que você deseja mergulhar para nunca mais sair. Luna Clara & Apolo Onze é assim, um livro para todas as pessoas do mundo, encantador para adultos e crianças. É com personagens de nomes incríveis — Aventura, Doravante, Madrugada, Equinócio e Odisseia — que Adriana vai contando histórias de amor, de espera, de desencontros e de tudo o que há no meio de Desatino do Norte e Desatino do Sul.

Os personagens são todos fortes e donos de personalidades inigualáveis — desde seu Erudito, o homem de colecionava histórias, até Pilhério, o papagaio que recitava o dicionário. E as mulheres de Adriana são mulheres fantásticas, que se espalham pela história sem medo de sonhar, de se fazer ouvir, de buscar tudo aquilo em que acreditam. — Comprar!

Todos Nós Adorávamos Caubóis, por Carol Bensimon

“Soledade era pequena e, de noite, era ainda menor. Parece que a desvantagem de crescer no interior é que todo mundo pode estar conversando sobre você ou sobre seus pais em todas as salas de jantar iluminadas em um raio de três quilômetros. Por isso o melhor é não dar munição ao falatório, ou ao menos era o que Julia dizia quando eu perguntava sobre como tinha sido passar a adolescência inteira em um lugar daquele tamanho.”

Carol Bensimon disse certa vez em sua coluna no blog da Cia das Letras que ela era muito diferente de Elvira Vigna em seu processo criativo. Segundo Carol, enquanto Elvira tem um compromisso com a verdade e experiências já vividas, seu movimento é o de procurar pelo livro em outros cantos. E foi assim que Carol escreveu Cora, a protagonista e narradora de Todos Nós Adorávamos Caubóis. No início do livro, Cora está pronta para partir em uma aventura. Ela e sua melhor amiga, Julia, vão entrar no carro e sair em uma viagem sem planejamento por cidades do Rio Grande de Sul. Mas, não é só uma história sobre duas amigas viajando sozinhas quando todo mundo acredita que elas não deviam estar viajando sozinhas — não que isso seja pouco, é só que o livro vai além.

Cora e Julia têm um relacionamento complicado. Com uma relação amorosa no passado, Cora ainda é apaixonada por Julia, mas não sabe se a amiga a corresponde. Por meio de Cora, nós vamos conhecendo toda a história das duas, desde a noite em que se conheceram e ficaram pela primeira vez até a presente viagem de carro sem destino certo. As memórias de Cora também incluem a relação com a própria família, com sua sexualidade, com a sexualidade de Julia e todas as inseguranças que surgem no meio de tudo isso. A própria Cora chega a se questionar se ser suficientemente moderna, desconstruída e feminista ainda significa ter que lidar com todas as questões e sentimentos que ela tem que lidar — um momento que, nossa senhora, quem nunca. — Comprar!

Olhos d’Água, por Conceição Evaristo

“Lembro-me ainda do temor de minha mãe nos dias de fortes chuvas. Em cima da cama, agarrada a nós, ela nos protegia com seu abraço. E com os olhos alagados de prantos balbuciava rezas a Santa Bárbara, temendo que o nosso frágil barraco desabasse sobre nós. E eu não sei se o lamento-pranto de minha mãe, se o barulho da cuba… Sei que tudo me causava a sensação de que a nossa casa balançava ao vento. Nesses momentos os olhos de minha mãe se confundiam com os olhos da natureza. Chovia, chorava! Chorava, chovia! Então, por que eu não conseguia lembrar a cor dos olhos dela?”

Já é assim, no primeiro conto, homônimo de sua coletânea, que entendemos o porquê da escolha do título e o tanto que vamos nos emocionar e nos envergonhar, entrando em contato com a realidade tão difícil das mulheres brasileiras negras e pobres. Conceição Evaristo quis deixar claro desde o início que todas elas têm olhos d’água, de tantos apertos que passam no seu cotidiano. Através dos contos curtíssimos de um livro com 114 páginas, a autora passa com maestria a sua mensagem. Só passa ileso por essa leitura aquele pior tipo de cego, o que não quer ver de jeito nenhum.

É uma das leituras escolhidas para alguns vestibulares brasileiros desde 2016 e esperamos que continue por muito tempo para que esse livro possa ser comentado e debatido em sala de aula à exaustão, para que nossos adolescentes parem de sair alienados da escola pensando que racismo é mimimi; para que eles parem de estudar, na aula de história, que a abolição da escravatura foi sensacional e não um processo cheio de problemas que traz consequências para a vida e a inclusão dos negros à sociedade até hoje. — Comprar!

Nada a Dizer, por Elvira Vigna

“No olhar dos outros, inscrito o que minha mãe chamaria de destino de mulher. Nasceu com boceta? Vai ser enganada. Traída, humilhada. E o melhor é não ligar, minha filha. Levante o nariz e siga em frente.”

A notícia do falecimento de Elvira Vigna no último dia 10 foi das mais tristes. Na nota publicada na página da autora do Facebook, soubemos que Elvira lutava contra um carcinoma desde 2012 e não tornou a doença pública para que não fosse excluída de atividades profissionais — mais uma confirmação de que a obra de Elvira Vigna é a vida de Elvira Vigna. Em um punhado de sentidos. Elvira costumava contar em entrevistas que todos os seus livros eram experiências, dela mesma, ou de pessoas que ela conhecia, mas todas experiências reais. Segundo a autora, as histórias já estavam prontas e tudo o que ela fazia era levantar uma voz. E a voz frequentemente se manifestava em uma narradora de personalidade marcante, cheia de ironias e tão autêntica que as páginas pareciam ser de carne e osso. A forma de escrever dá o ritmo dos pensamentos, de coisas ditas em voz alta.

Esse é o clima que tem Nada a Dizer. O romance conta a história de uma mulher que se descobre traída pelo marido e passa por uma série de processos: o de detestar a amante, o de tentar entender o que aconteceu, o de reinventar a si mesma e tentar descobrir quem ela é, que espaço ocupa, o que representa, enfim, para o marido. A narrativa é sincera e acompanha todos os sentimentos da personagem, com todas as nuances e maluquices e confusões que também sentimos. Elvira Vigna é uma gigante, com livros cheios de particularidades e singularidades comuns em histórias distintas — mais um sinal de que a história de Elvira, sua vida e suas vivências, estão presentes em cada linha. — Comprar!

Quiçá, por Luisa Geisler

“Sabe-se que ligações no meio da noite não são para bobagens: ou alguém morreu, ou alguém vai morrer, no mínimo de saudade.”

Quando vi a foto de Luisa Geisler pela primeira vez, na orelha de um de seus livros, logo pensei que ela tinha cara de amiga. Ainda acho: Luisa Geisler tem cara de alguém que poderia ser sua amiga. Uma amiga que, por acaso, tivesse ganhado o Prêmio Sesc de Literatura. Duas vezes. Quiçá é uma dessas vezes.

Quiçá é sobre Clarissa, uma menina de onze anos que vive uma rotina solitária e abandonada: os pais, um casal de publicitários bem-sucedidos, vivem trabalhando até tarde e deixam Clarissa para o apartamento moderno, os presentes caros e as atividades extracurriculares. Tudo muda quando Arthur, primo de Clarissa, vai morar na casa da família. Em uma rotina de pessoas novas e um mundo adolescente, Clarissa e Arthur vão se descobrindo amigos — e Clarissa vai descobrindo muitas outras coisas. Ao longo do livro, Luisa vez e outra faz questão de lembrar a idade de Clarissa. Onze anos. O fato é, frequentemente, um choque. Enquanto estamos mergulhados na cabeça de Clarissa, esquecemos que ela ainda é uma criança; a menina já tem cobranças próprias, preocupações e experiências de adulta. É com onze anos que Clarissa vive seu primeiro assédio, suas primeiras gigantescas decepções, um primeiro cigarro, um primeiro amigo, a primeira noção de depressão e suicídio.

A história vai e volta em uma narrativa que se reveza entre o último dia em que acompanhamos os primos e todos os outros momentos compartilhados no decorrer de um ano. Cada pedaço é como um conto que vai se costurando com o todo de uma forma que levanta e responde uma infinidade de questões. E, como o primeiro Prêmio Sesc de Literatura de Luisa pode comprovar (por Contos de Mentira), Luisa é mesmo boa nessa de contar contos. — Comprar!

A Vida Invisível de Eurídice Gusmão, por Martha Batalha

“Porque Eurídice, vejam vocês, era uma mulher brilhante. Se lhe dessem cálculos elaborados ela projetaria pontes. Se lhe desse um laboratório ela inventaria vacinas. Se lhe dessem páginas brancas ela escreveria clássicos. Mas o que lhe deram foram cuecas sujas, que Eurídice lavou muito rápido e muito bem, sentando-se logo em seguida no sofá, olhando as unhas e pensando no que deveria pensar.”

Esse trecho está longe de ser o único genial do livro — é como se a história de Martha Batalha fosse uma enorme coletânea de socos no estômago magicamente construídos com palavras —, mas foi o que escolhemos para representar porque ele resume tudo. Resume a vida de Eurídice e a de inúmeras mulheres invisíveis que tinham/têm potencial para ser brilhantes em muitas coisas e acabavam/acabam na beira de fogões e tanques. Ninguém está aqui para protestar contra as donas de casa, mas sim protestar contra o sistema que por muito tempo e, ainda hoje, em muitos casos, faz com que essa seja a única opção possível para as mulheres que, assim como os homens, poderiam fazer qualquer outra coisa.

Eurídice é uma mulher invisível do subúrbio carioca do Rio de Janeiro por volta das décadas de 40/50/60. Ela podia fazer qualquer coisa, mas a sociedade lhe deu cuecas, panelas e um marido bastante complicado que passa a vida jogando em sua cara que ela não sangrou na noite de núpcias. Martha vai contar essa história colocando no caminho muitas verdades tratadas com ironia e alguns outros personagens também muito bem construídos que vão traçar um panorama do que era ser uma mulher nessa época — e em muitas outras. É um livro maravilhoso, necessário, e que precisa urgentemente se tornar um best-seller no Brasil até por motivos de protesto: ele quase não teve a chance de ser publicado. A Cia das Letras só se interessou por ele depois que ele foi comprado (e celebrado) por uma editora alemã. É no mínimo bizarro e no máximo bem triste que um livro tão nosso precisou ter sido reconhecido lá fora antes que alguém decidisse dar uma chance a ele aqui dentro. — Comprar!

A Cabeça do Santo, por Socorro Acioli

“A moça pensou uma coisa egoísta: ele sofria mais que ela. Que bom ver alguém que sofre mais. Que bom. Aquela desgraça de destino, seja lá como tenha acontecido, tornava a sua sina um pouco mais leve. Ela sempre achou que nunca encontraria alguém que sofresse mais que ela. Encontrou, por segundos.”

A narrativa ritmada e fantástica de Socorro Acioli não soa bem apenas em português. A autora já foi publicada em diversos países e conquistou um lugar na oficina de roteiros ministrada por Gabriel García Márquez em 2006, um dos maiores nomes da literatura mundial. E foi nessa oficina que nasceu A Cabeça do Santo. O romance conta a história sofrida de Samuel, que sai em busca de seu pai desconhecido depois que a mãe morre e lhe deixa esse último pedido. O livro começa com a caminhada exausta de Samuel até Candeia, cidade em que espera encontrar a avó e descobrir o paradeiro do pai. Ao chegar em Candeia, Samuel não encontra o pai, mas sim uma cidade praticamente vazia e uma cabeça de santo, na qual ele vai acabar vivendo.

Dentro da enorme cabeça abandonada de Santo Antônio, Samuel descobre uma coisa curiosa: ele consegue escutar todas as preces que os moradores da cidade fazem ao santo. Isso é tudo o que ele precisa para mudar de forma definitiva o destino de Candeia e, no meio disso tudo, transformar também o próprio destino. — Comprar!

Noites de Alface, por Vanessa Bárbara

“Quando Ada morreu, as roupas ainda não tinham secado. O elástico das calças continuava úmido, as meias grossas, as camisetas e as toalhas de rosto penduradas do avesso, nada estava pronto. Havia um lenço de molho dentro do balde. Os potes de recicláveis lavados na pia, a cama desfeita, os pacotes de biscoitos abertos em cima do sofá — Ada tinha ido embora sem regar as plantas. As coisas da casa prendiam a respiração e esperavam. Desde então, a casa sem Ada é de gavetas vazias.”

Apesar de parecer, pela leitura desse começo, Noites de Alface não é mais um livro nessa lista sobre a problematização do trabalho doméstico ser sempre destinado às mulheres. A casa, sem Ada, ficou inerte e sem respirar esperando por ela muito mais por se tratar de uma dessas mortes repentinas que deixam um enorme vazio do que para retratar as inabilidades domésticas de Otto.

O primeiro romance solo de Vanessa Bárbara fala de amor, carinho, companheirismo e… bem… fofocas da vizinhança, através da história da viuvez de Otto, que perdeu seu rumo sem Ada, sua esposa e grande parceira de conversas. Juntos, sem filhos e quaisquer animais de estimação, eles contavam, na vida, basicamente um com o outro e, enquanto isso, conversavam sobre a vizinhança inteira — o que nos dá a incrível oportunidade de nos deleitarmos com as descrições que Vanessa faz de seus personagens, que através de palavras criativamente escolhidas nos entrega, nunca apenas um vizinho, mas um assistente de farmacêutico que decorou todas as bulas de remédio, cita efeitos colaterais a torto e a direito e sonha em ser campeão de natação, mas ainda não sabe nadar. — Comprar!

Texto escrito em parceria por Karina e Analu.


** A arte do topo do texto é de autoria da nossa colaboradora Carol Nazatto. Para conhecer melhor seu trabalho, clique aqui!

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1 comentário

  1. A vida invisível de Eurídice Gusmão e a cabeça do santo ♥ Se encaixam na categoria de melhores livros lidos nos últimos tempos. Maravilhosos.

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