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The Killing, Sarah Linden e as mulheres complicadas da TV

Quem me recomendou The Killing foi Patti Smith. Para grande infelicidade minha, não estávamos batendo um papo agradável quando isso aconteceu, mas ela fala algumas vezes sobre a série no seu livro de memórias mais recente, Linha M. Talvez você não saiba, mas Patti Smith adora séries policiais. Nenhuma das várias que acompanha, no entanto, parece ser tão especial para ela quanto The Killing, à qual dedica um capítulo inteiro, discutindo seu cancelamento bem em meio a um enorme cliffhanger e todo seu carinho por sua protagonista.

Se é verdade que nem sempre é fácil assistir a todas as recomendações que recebemos (estamos vivendo, afinal, a era do Peak TV), também é verdade que Patti Smith escreveu de uma maneira muito bonita e apaixonada sobre The Killing, sofrendo com seu cancelamento precoce daquele jeito que poderia ser eu, poderia ser você:

“Uma rede de televisão pôs um ponto final em The Killing. Existe a promessa de uma nova série, com outro detetive. Mas eu não estou pronta para abandonar Linden e não quero seguir em frente. […] O que fazer com essas pessoas que podemos acessar e dispensar através de um controle remoto, mas que amamos tanto quanto um poeta do século XIX, ou como um estranho que admiramos ou como um personagem da pena de Emily Brontë?” (p. 194).

De modo que não tive outra opção que não fosse assistir, mesmo que eu tenha um pé atrás com séries de investigação. O maior problema delas é a estrutura de caso da semana que a maioria adota, em que boa parte da duração de cada episódio é dedicada a personagens que nunca vimos antes nem nunca mais veremos e a investigação é muito simples e rápida. The Killing, que estreou em 2011 na AMC (o mesmo canal que exibia as cultuadíssimas Mad Men e Breaking Bad, o que de certa forma foi um fardo que ela precisou carregar), criada pela canadense Veena Sud, não é assim.

Sua protagonista é Sarah Linden (Mireille Enos), uma detetive da polícia de Seattle que começa a série em seu último dia de trabalho, prestes a se mudar para a Califórnia com o noivo e o filho adolescente. Só que ela se envolve na investigação do assassinato da adolescente Rosie Larsen (Katie Findlay), encontrada morta em um carro registrado pela campanha de um candidato à prefeitura da cidade. Esse é o único foco das duas primeiras temporadas, sem outros casos de fundo, e a série se divide em três núcleos: o da polícia, o da família da vítima, sobrevivendo ao luto, e o da campanha, buscando driblar a adversidade de se ver envolvida em um caso de assassinato a menos de um mês das eleições.

A dedicação exclusiva a um único caso e a delimitação inicial do espaço de tempo a apenas duas semanas não veio sem desafios. Um deles era o ritmo lento, que buscava reproduzir uma verdadeira investigação, cheia de becos sem saída e pistas que não levavam a lugar algum. Outro era o desenvolvimento de personagens — ou a falta dele. O núcleo da família Larsen é uma exploração profunda, mas repetitiva, da perda e do luto; já o da campanha política por muito tempo pareceu inteiramente deslocado.

O da polícia tinha suas próprias dificuldades. O substituto de Linden, Stephen Holder (Joel Kinnaman), aparece antes de ela ir embora. Sarah vai postergando sua demissão dia após dia, de modo que eles se tornam, na prática, parceiros, o que acontece para desagrado de ambos: Linden porque tem dificuldade de confiar nas pessoas em geral, quanto mais em seu colega pouco ortodoxo que fala e se veste como se na verdade quisesse ser um rapper; Holder porque não esperava seguir ordens, e sim conduzir a própria investigação, mas é mandado pra lá e pra cá enquanto ela não se mexe para ir embora. A maior parte do tempo de Linden e Holder é passada um com o outro, e essas são pessoas que acabaram de se conhecer, cheias de ressalvas, em um período de tempo curto demais para grandes desenvolvimentos, o que inicialmente tornava difícil sustentar a série neles. O mistério, em The Killing, era o mais importante.

E o desenvolvimento do mistério foi bastante problemático. Ao mesmo tempo em que o ritmo lento da série buscava dar a ela uma aura de realismo, a investigação do assassinato de Rosie Larsen foi baseada em uma série de pistas falsas — os famosos red herrings —, que, por mais comuns que sejam nesse tipo de narrativa, foram usados à exaustão de tal maneira que, se forem listados, tornam a coisa um pouco ridícula. Quando todas essas pistas falsas acabaram por não levar a lugar nenhum no final da primeira temporada, o público caiu em cima.

Ao longo de seus quatro anos, The Killing foi cancelada não só uma, mas duas vezes, só para ser ressuscitada logo depois em ambas: a primeira pela própria AMC, a segunda pela Netflix, para onde migrou. O modelo Netflix, sem hiatus e a semana de pausa entre um episódio e próximo, beneficia em muito uma história como a criada por Veena Sud, porque assistir em maratona torna mais fácil ignorar os eventuais problemas de roteiro em detrimento de suas qualidades, que foi o que aconteceu comigo.

Mas por que The Killing funcionou, afinal? E onde foi que ela não só funcionou como foi ótima?

A princípio, não foi em termos de enredo. O mistério envolvendo Rosie Larsen é interessante o suficiente e a série lida de maneira adequada com alguns temas mais espinhentos, como o sensacionalismo midiático que não respeita as vítimas de crimes brutais e suas famílias (nem o trabalho dos investigadores), ou a corrupção policial e política. Mas tudo isso foi abordado apenas de passagem. Para piorar, essa trama contou com alguns estereótipos raciais complicados, especialmente considerando que dizem respeito a um grupo tão pouco representado na ficção, o dos povos indígenas americanos.

A terceira temporada veio para mudar um pouco as coisas. O foco dessa investigação é uma série de assassinatos de jovens garotas que vivem na rua, que se prostituem e que são tratadas com grande descaso principalmente porque, aos olhos da sociedade, são invisíveis — uma realidade que é bastante reforçada pelo texto da série. (Como nada pode ser perfeito, essa trama trouxe uma morte particularmente dolorosa que, embora faça sentido para o enredo, serviu principalmente para trabalhar a desintegração psicológica de um personagem masculino — algo que estamos cansadas de ver). O outro núcleo da temporada é uma prisão de segurança máxima, na qual acompanhamos os últimos dias de um homem no corredor da morte, interpretado brilhantemente por Peter Sarsgaard. “Six Minutes”, de longe o melhor episódio de toda a série, é inteiramente focado nessa prisão, e é uma verdadeira aula sobre as implicações extremamente questionáveis da pena de morte.

“Mas eu vou precisar ver duas temporadas inteiras antes de a coisa ficar boa?”, você talvez esteja se perguntando. Isso depende da sua disposição para sacrificar o enredo mais coeso e amarrado do mundo para ter bons personagens, atuações e atmosfera. A minha é grande. Um dos episódios que mais me atraíram foi “Missing” (o mais mal avaliado pelo público), que suspende a investigação por uma hora para focar apenas em Linden e Holder, isolados em meio a uma situação estressante, que permite que eles entendam melhor um ao outro — e que nós os entendamos melhor também —,  o que finalmente dá bases sólidas para essa relação que precisou ter força para carregar a série, e conseguiu.

O universo de The Killing é tão cinza quanto os quase cem por cento de dias nublados que funcionam de pano de fundo para ela. Nenhum personagem é incorruptível e nenhum é sem vícios ou falhas, em menor ou maior escala. Sarah Linden surgiu em plena “Era de Ouro” da televisão, época marcada por diversos Homens Difíceis protagonizando histórias. Eles iam de personagens moralmente ambíguos, mas profundamente humanos em sua essência, a anti-heróis completos que, ao fim de seus arcos dramáticos, já pendiam muito mais para o lado dos vilões. Salvo algumas exceções, esses protagonistas eram praticamente todos homens. Linden não é uma anti-heroína, mas é uma mulher difícil. O caso Rosie Larsen a consome a ponto de ela negligenciar as necessidades do filho menor de idade e se tornar cada vez mais passional no modo de conduzir seu trabalho — tornando-se, nesse meio tempo, a “pior policial do planeta”, como foi muito acusada. Mas o maior crime de Sarah? Ela não é gostável. Ela não se esforça para ser simpática, ela não se esforça para agradar ninguém. Sua obsessão a leva a quebrar regras, a desconsiderar os sentimentos de outras pessoas, a negligenciar sua vida pessoal. Leva seu filho a perguntar como ela pode se preocupar mais com uma desconhecida morta do que com o bem estar dele.

The Killing fala muito sobre maternidade. Há uma porção de mães retratadas na série: mães que gostam de ser mães, mas que não conseguem lidar com algumas situações extremas que lhes são impostas; mães que não queriam ser mães e negligenciam seus filhos até ser tarde demais; mães que abrem mão de seus filhos por escolha; mães que abrem mão de seus filhos porque sentem que é o melhor para eles. A série desconstrói, episódio após episódio, o mito de que meninas nascem preparadas para serem mães, de que a maternidade é algo inato, e não construído. Ao mesmo tempo, o texto de The Killing constantemente nos convida a tentar entender essas mulheres, ainda que suas ações sejam problemáticas, especialmente quando colocam menores de idade, vulneráveis por natureza, em risco.  A complicada relação de Linden com a maternidade a colocou, é claro, em algumas das muitas listas de piores mães da TV, inclusive uma que questiona: “existe alguma coisa mais destrutiva que uma mãe completamente obcecada com sua carreira?” A negligência de Linden em relação a seu filho obviamente não é desculpável (e ela está bem ciente disso). Mas e os pais? O pai de Jack Linden simplesmente desapareceu de sua vida.

Será que esse desequilíbrio entre os números é por acaso?

Tamanha preocupação com a profundidade dada à representação da maternidade ou da face profissional de mulheres não existe por acaso. The Killing foi criada por uma mulher, mais da metade de seus episódios foi escrita por pelo menos uma mulher e mais de um terço deles tiveram diretoras. Pode não parecer muito, mas é consideravelmente mais que a média oferecida entre 2015 e 2016 pela televisão e os serviços de streaming. O que esses números representam? Como os estudos de Martha Lauzen demonstram ano após ano, as obras criadas por mulheres tendem a ter mais roteiristas e diretoras mulheres, além de mais personagens femininas.

E isso provavelmente tem impacto diante das câmeras também. Além de retratar uma gama de personagens femininas complexas, a câmera de The Killing nunca objetifica as atrizes que tem em cena. Ao mesmo tempo em que Sarah é apresentada como uma mulher sexual, sua imagem — e a de outras mulheres — não é sexualizada para atender ao olhar masculino. Para além disso, a construção da figura de Sarah também é interessante quando deliberadamente não atende a diversos padrões arbitrários de feminilidade socialmente impostos: ela veste roupas largas, não usa joias, não usa maquiagem e carrega rugas aparentes na testa, algo bastante significativo numa indústria que se recusa a deixar que as mulheres aparentem a idade que têm. Mas Sarah jamais é apresentada como (ou quer ser) “um dos caras”, ou é considerada diferente (significando melhor) “das outras garotas”, e também não é livrada de comentários machistas. Essa oposição não existe ali.

Mesmo que Sarah Linden siga a cartilha dos protagonistas complexos (e, eventualmente, a dos moralmente ambíguos também) que tanto premiamos nas últimas décadas da televisão, a resposta a ela foi consideravelmente menos positiva do que a reservada a seu parceiro, frequentemente considerado o mais interessante da dupla. Holder é de fato um personagem interessante, com sua relação complicada com o vício e sua profunda vulnerabilidade. Mas sempre o entendi como servindo à narrativa de Linden. Sarah foi uma criança abandonada, que passou de lar a lar sem nunca ter um lugar que fosse realmente seu, de modo que ela tem sérios problemas de confiança, é fechada e, somando-se a tudo isso, sua obsessão a isola cada vez mais. Holder funciona como uma espécie bússola para ela, lembrando que existe o mundo lá fora, mas é principalmente seu maior amparo e, em meio à própria instabilidade, a estabilidade para ela — papel geralmente reservado às personagens femininas nas narrativas dos homens complicados (“em si mesma a mulher não tem a menor importância”, já dizia a famosa citação de Budd Boetticher).

Um artigo no The Mary Sue usa outra Sarah, a Manning (Tatiana Maslany), de Orphan Black, para discutir a diferença de tratamento que damos a personagens com falhas quando são homens ou mulheres. Se olharmos para o discurso criado em torno desses personagens que um dia foram arruinados pelas circunstâncias, perceberemos que parecemos sempre mais dispostos a sentir empatia pelas dores dos personagens masculinos — que em muitos casos são redimidos e humanizados pelas personagens femininas em suas narrativas, frequentemente demandando algum sacrifício pessoal da parte delas. Mas a redenção não é tão facilmente conquistada pelas mulheres.

O que The Killing faz em alguma medida é subverter esse padrão, ao mesmo tempo em que dá ao personagem masculino complexidade, profundidade e o próprio arco dramático ao qual muitas horas são dedicadas. Mas a protagonista ainda é claramente Linden: é ela quem está nos créditos iniciais, é ela o primeiro nome no elenco, é ela que abre e fecha as temporadas. Por que Linden é menos interessante do que Holder? Talvez simplesmente por motivos subjetivos de preferência. Mas talvez, só talvez, também porque continuamos preferindo humanizar, entender e ter empatia por nossos (majoritários) personagens masculinos de cada dia. E é por isso que narrativas como a de Sarah Linden, mesmo com suas falhas, mesmo passando longe de serem revolucionárias, ainda são importantes.

11 comentários

  1. amei essa série. mexeu muito comigo, como mulher, como mãe e também aquela que teve que fazer escolhas. mas confesso que me deu uma depressãozinha. mas amo a personagem, amo a atriz, e o final feliz que se deu na terceira temporada, foi um alívio.

    1. Também fiquei aliviada com o final. Muita gente achou que ele ficou fora do tom da série, mas achei que veio reafirmando exatamente o mundo que ela construiu ao longo dos anos, e, acima de tudo, Linden merecia um pouco de paz.

  2. Texto muito bom, Fernanda. Era desse empurrãozinho que eu precisava para, finalmente, começar a assistir The Killing.

    1. Oba, Karen, que bom saber! Espero que você goste. Pode vir me contar o que achou quando você assistir, se quiser.

  3. Nunca tinha lido um texto tão incrível sobre The Killing!
    Gratidão, Fernanda! Teu olhar pôde colocar em palavras o que nunca consegui dizer quando indicava a série para alguém, a partir de agora vou só enviar o link kkk

    Um cheiro! (:

    1. Muito obrigada, Nyele! Fico muito feliz de saber. Pessoalmente nunca tinha ouvido falar de The Killing antes de ver. Foi a própria Netflix que despertou minha curiosidade, mas acabei levando anos para assistir porque ninguém nunca tinha me recomendado. Fiquei feliz de descobrir agora que ela é bem querida por bastante gente, foi um choque saber o quanto crítica e pública criticaram lá em 2011.

  4. Ela é baseada na série dinamarquesa Forbrydelsen,essa é difícil de achar maus amei muito. É legal ver como se constroem os personagens e a própria diferença cultural.

    1. Esqueci de comentar esse *pequeno detalhe* no texto, obrigada pela lembrança. Claro que fiquei com bastante curiosidade de assistir à versão original, vou procurar!

  5. Oi, Fernanda. Eu sou uma fanática por The Killing! E justamente pela personagem Linden e sua ligação com Holder. Super inteligente, competente, complexa e sem aquele padrão de mulher sedutora e sempre bem produzida. Essa postura “acessível” me agradou muito! Eu ficava até pensando: ai, tomara que não mudem a Linden no final, como se ela precisasse de um “banho de loja” pra validar toda a trajetória complicada dela, como se fosse uma ascensão. Não foi assim. Ufa! Gostaria de mais série como ela. Mas por enquanto, vou indicando The Killing pra todo mundo.

  6. Eu amei, descobri por acaso em dia de bobeira em casa…fiquei fascinada, fiz maratona em alguns dias de folga, Fiquei triste qdo acabou, e confesso que torci mt pelos dois… Os episódios me prendiam totalmente…Uma mulher que é mae, profissional, carente..guerreira, um homem lutando contra seus fantasmas…Pessoas que realmente existem no dia a dia…e nao apenas mais um série policial que a cada dia tem casinhos novos e sem continuidade!!

  7. Oi, Fernanda! The killing entrou na minha história como um consolo. A série é dramática, cinzenta e triste mas de alguma maneira me deu força. Talvez por mostrar uma protagonista tão “de verdade”, cheia de erros, mas que nem por isso deixa de ser alguém admirável. Perdi as contas do tabto de vezes que me identifiquei com a Sarah e quis dar um abraço nela. É só uma personagem? Sim! Mas ajuda a acender as luzinhas da consciência, mexe com tua vida de alguma maneira e isso é arte. Obrigada por esse texto ❤️

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