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Killing Eve: quebrando paradigmas nas narrativas de espionagem

Um psicopata inteligentíssimo é capaz de orquestrar crimes sem solução ao redor da Europa, até que um agente secreto igualmente inteligente começa a trabalhar em seu caso. O que ocorre em seguida é uma caçada repleta de adrenalina, até que, finalmente, o vilão é alcançado. É uma história de gato e rato, mas também uma competição de egos, que frequentemente se vale de tensão sexual para completar essa imagem de fantasia luxuosa. Pense em James Bond e Jason Bourne, e tantos outros filmes de ação genéricos e masculinos, mas essa é a espinha dorsal dos oito episódios de Killing Eve: a fórmula centenária de narrativas de espionagem.

A tática é, por si só, emocionante de acompanhar visto que é feita para manter o espectador nervoso e favorece apetitosos cliffhangers ao fim de cada episódio, mas não seria o suficiente para nenhuma produção atual conseguir público e prestígio. Não seria um exagero dizer que a série da BBC America comprou o desafio robusto de reinventar um gênero, e muito menos afirmar que ela conseguiu realizar o feito com a mesma maestria de sua protagonista assassina. Afinal, seus recordes de audiência e a enxurrada de resenhas positivas estão aí para provar isso, ainda que o Emmy a tenha ignorado quase que por completo. Mas a questão é: como Killing Eve foi capaz de reconstruir o gênero da espionagem em apenas uma temporada de oito episódios?

Atenção: este texto contém spoilers!

Inverter o gênero, mas reconstruí-lo também

Killing Eve

Para começar, invertendo o gênero das protagonistas. Temos a psicopata russa Villanelle (Jodie Comer) e a agente do MI-6 Eve Polastri (Sandra Oh) na linha de frente. A vilã é coordenada por uma organização que se denomina Os Doze e seu único contato oficial com aqueles que determinam quem ela matará se dá por meio de Konstantin (Kim Bodnia), que também é a única pessoa pela qual Villanelle parece mostrar o mínimo de simpatia. Eve, por sua vez, tem como braço direito em sua caçada o simpático Bill (David Haig), seu chefe de anos que se torna seu subordinado no momento em que ela é recrutada para o MI-6, o grau mais “sério” do serviço secreto britânico.

Engana-se, no entanto, quem pensa que Killing Eve é só mais um exemplo da recente tendência dos remakes com elencos femininos. Com créditos de produção igualmente dominados por mulheres, a série de Phoebe Waller-Bridge traz ares novos para uma dinâmica originalmente criada como uma fantasia cheia de testosterona, na qual não há espaço para a humanidade de nenhuma personagem além do protagonista, e os efeitos colaterais da caçada de um assassino são ignorados em prol da manutenção desse espaço glamouroso de drinks, carros luxuosos, armas e bond girlsKilling Eve, por sua vez, traz o thriller de espionagem para a vida real. Ainda que Villanelle viva em uma certa fantasia, habitando um charmoso flat parisiense cujo closet é recheado de roupas de haute couture, ela se trata de uma fantasia que o dinheiro pode facilmente comprar. Eve já é a imagem da classe média londrina, levando uma vida modesta em uma casa mediana com seu marido, Niko (Owen McDonnell), professor de matemática que também é instrutor de bridge.

Inevitavelmente, a série explora as reverberações do machismo na vida de Eve, mas realiza a tarefa sem recair nos extremos e didatismos que algumas produções julgam necessários para mostrar essa realidade. Quando sua rotina se torna mais pesada e arriscada, Niko se preocupa e tenta convencê-la a repensar suas ambições. Mas ainda que haja uma visão de gênero no fundo de tudo isso, as ações do marido, que é frequentemente retratado como mais sentimental do que sua esposa, aparecem mais como um ato de preocupação genuína do que uma tentativa de imposição patriarcal. De certo modo, os impulsos de Eve são mais “masculinos” do que os de seu marido. É nela que existe a ambição de participar de algo maior, de criar uma carreira aspiracional, invejada, fazer uma mudança no mundo; enquanto ele é o parceiro que parece muito contente em fazer parte da ordem “comum” das coisas.

A BBC, em geral, conserva o talento (indispensável, mas raro) de reproduzir cenários reais sem que isso pareça um esforço. O elenco demonstra a diversidade racial característica de uma metrópole como Londres, e o seu número notável de mulheres em posições de poder nunca parece artificial — nos últimos tempos, inclusive, dramas policiais britânicos estrelados por mulheres parece ter se tornado um subgênero especial, com novas adições a cada ano, cada uma com diferentes graus de sucesso e inovação, onde Happy Valley, The Fall e Collateral, todas da emissora, são alguns exemplos. Ao mesmo tempo, suas protagonistas emulam a dualidade das grandes produções do gênero: se Eve é uma heroína que tem a perspicácia e a ambição de um galã, Villanelle tem o ar debochado e prepotente dos vilões.

No caso  de Villanelle, no entanto, um aspecto vilanesco feminino é conservado — o uso da sexualidade como arma —, mas assim como em outras instâncias, a série é capaz de se apropriar desses clichês e torná-los seus. Villanelle seduz, mas tem o controle total dos cenários sexuais nos quais se coloca. Sua atração é majoritariamente por mulheres. Ela é mostrada de jeitos desajeitados e rudes na mesma frequência que assume a pose de sedutora, e todas as suas encarnações são acompanhadas por um senso de humor, irreverência e ignorância de protocolos sociais que a ancoram ainda mais na realidade. O seu carisma, por sinal, vem justamente disso. Em entrevista à Variety, Phoebe Waller-Bridge diz que todos os crimes de sua vilã são perdoados, de certa forma, porque ela faz a audiência rir. Assistir Killing Eve sem torcer por Villanelle é quase impossível, apesar de tudo.

Uma tensão sexual inusitada

Killing Eve

Enquanto a narrativa masculina tradicional resolve colocar a tensão sexual como um de muitos benefícios de ser um “Homem Forte e Atraente”, em Killing Eve ela se dá entre ninguém menos do que a protagonista e a vilã. Para Eve, o calculismo debochado de Villanelle é fascinante, ainda que seja uma ameaça; não é difícil se encantar por Villanelle, que faz questão de dar um toque especial em cada um de seus assassinatos, entregando a morte em prendedores de cabelo folheados a ouro enquanto traja vestidos da seda mais pura.

A série de mortes que chama a atenção de Eve, compilada pela agente antes mesmo de ela ser contratada para o trabalho, acontece justamente quando Villanelle começa a exagerar na prepotência, deixando seus crimes cada vez mais escandalosos pelo simples prazer de ser inteligente o suficiente para sair impune. A dinâmica que nasce entre elas é muito parecida com aquela que sustentou as três temporadas da série Hannibal: o investigador (Eve Polastri aqui, Will Graham de Hugh Dancy em Hannibal) é tão bom em prever os movimentos do psicopata (Villanelle aqui, o Hannibal de Mads Mikkelsen na série homônima) — e tão fascinado por sua forma de pensar — que os limites da obsessão profissional e da atração se embaçam.

Ao contrário de Hannibal, que escolheu deixar a tensão sexual entre os protagonistas no terreno subtextual na maior parte da narrativa, Killing Eve se esbalda nessa questão de diversas maneiras. A orientação sexual de Villanelle é clara, e em uma cena particularmente engraçada, ela seduz uma mulher de características similares às de Eve e pede que ela encarne um roleplay no qual ela deve encontrar Villanelle, que sai correndo para se esconder pela casa. A vilã também corteja Eve, que, por sua vez, veste as roupas presenteadas pela psicopata de forma quase ritualística, em uma sequência sem falas que explora os sentimentos confusos experienciados pela investigadora em meio à caçada. Villanelle seduz porque é bonita, inteligente ou impiedosa? Ou sua maior força está justamente em fazer Eve, uma mulher que se considera completamente ordinária, se sentir igualmente desejável e esperta? É muito difícil saber.

Ainda que Hannibal tenha mantido a tensão justamente porque ela dava tração à história, o fato desse limite ser cruzado ainda dentro da primeira temporada de Killing Eve — estou falando daquela cena da finale, é claro — dá à série um horizonte ainda mais empolgante. Como colocou sua criadora, Phoebe Waller-Bridge, Eve passou da linha tanto em relação a Villanelle quanto a si mesma, e ambas ocorrências irão assombrá-la pelo resto da vida.

As semelhanças com Hannibal, a série de Bryan Fuller, não terminam por aí. Parte do que fez Hannibal popular foi sua ousadia em trilhar essa área cinza, não apenas do desejo como da moralidade. Killing Eve humaniza suas personagens de modo similar, e estende a meditação sobre a moral para o contexto mais amplo da geopolítica: a relação entre o Estado Britânico e o Estado Russo, assim como a mantida entre as protagonistas, é muito mais complicada e tênue do que aparenta ser. E a narrativa trata todas essas tensões, pessoais ou políticas, como um mero retrato da realidade, sem a pretensão de nos induzir a nenhuma conclusão. Quanto mais cinza, mais indefinido, mais próximo à loucura, melhor. Colocar mulheres nesses espaços dúbios, então, é exatamente o que a gente gosta.

Quebrando paradigmas

Killing Eve

Vilã amável e queer, investigadora de ascendência asiática, tensão sexual — e relacionamentos concretos — entre mulheres, homens em posições de submissão. Como se isso não bastasse, Killing Eve conseguiu realizar dois feitos impressionantes: Sandra Oh se tornou a primeira mulher de origem asiática indicada ao Emmy de Melhor Atriz, e, contrariando a tendência do mercado, a série foi acumulando mais espectadores ao longo de seu período de exibição, chegando ao fim da temporada com um crescimento de 47% em sua audiência.

Esse último dado prova que Killing Eve é uma série do presente — e do futuro — de uma forma que transcende a sua narrativa. No artigo responsável por salientar esse feito, publicado na WIRED, a autora menciona que a escolha cuidadosa de uma social media manager experiente (responsável por Orphan Black, outro hit da BBC America) para gerir as contas da série foi essencial: assim como feito em Orphan Black, Molly Templeton nutriu o fandom de Killing Eve com carinho, estimulando a divulgação orgânica que foi, no fim das contas, responsável pelo grande sucesso da série. Isso, junto à sua inegável qualidade técnica, garantiu uma resposta positiva de todas as frentes: fãs, críticos e investidores.

Outra coisa de que Phoebe Waller-Bridge quis se livrar propositalmente foi dos chamados fillers, episódios que são claramente colocados em uma história com o intuito de atrasar seu final. Em entrevista à Variety, ela diz abertamente que, para ela, a novidade da série girar em torno de duas mulheres não era suficiente. “O enredo também precisava seguir evoluindo de formas inesperadas”, diz. Esse objetivo é atingido principalmente por meio de um estudo da personagem de Villanelle: ainda que a ação presente — a caça — ocorra rapidamente, o passado da psicopata é revelado à conta-gotas.

O conservadorismo do Emmy, no entanto, a série não foi capaz de desafiar. Apesar da performance estelar de Jodie Comer (mais conhecida pelo papel de Chloe, melhor amiga da protagonista da queridinha britânica My Mad Fat Diary), que consegue equilibrar timing de comédia, frieza e fragilidade no papel de Villanelle, e dos diálogos instigantes e direção de arte impecáveis, a única nomeação foi para Sandra Oh. Merecidamente, é claro, e quitando uma dívida histórica devido ao incrível trabalho da atriz em Grey’s Anatomy e nunca reconhecido pela premiação, mas também seguindo o hábito do Emmy de honrar apenas atores com carreiras bem-estabelecidas quando se trata de séries novas. A própria Tatiana Maslany, que interpretava com perfeição os oito papéis centrais de Orphan Black, só foi reconhecida pela categoria no segundo ano da série, e recebeu o prêmio apenas no ano seguinte.

Com ou sem reconhecimento devido da Academia da Televisão, o importante é que Killing Eve foi renovada para uma nova temporada, que ainda não tem previsão de estreia, mas já começou a ser gravada. Tente não devorar os primeiros oito episódios tão rápido para sua espera não ser tão amarga, mas talvez isso seja impossível.

Bárbara Reis é uma estudante de jornalismo paulista de 20 anos que fala rápido demais, ainda não aprendeu a não colocar sua vida nas mãos de bandas de rock e tem o péssimo hábito de acumular livros para ler e séries para assistir.


** A arte em destaque é de autoria da editora Ana Luíza. Para ver mais, clique aqui!

3 comentários

  1. Excelente crítica. Mal posso esperar pela segunda temporada.
    Meu receio é que, por Eve ter ultrapassado o limite no último episódio, Villanelle esteja ansiosa para se vingar e isso diminua as cenas das duas interagindo na segunda temporada. Para mim as cenas que elas compartilhavam foram as melhores, adoro a tensão gerada pela expectativa de não saber se uma seria capaz de matar a outra ou não. Espero que isso não se perca.

  2. A adrenalina que essa série traz é espetacular, assim como, a critica aqui. Parabéns pelo trabalho e por favor, jamais desista de escrever resenhas Bárbara <3

  3. Essa série é melhorzinha que a maioria, mas somente a primeira temporada é boa, a segunda é razoável e a terceira é sofrível. As atrizes são maravilhosas. A única personagem que gosto é Carolyn, não suporto nem a Villanelle (psicopata) e nem Eve (sociopata), sonho que as duas se matam e sejam felizes pra sempre.

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