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De frente com Valkirias: Kathryn Ormsbee fala sobre assexualidade, internet e Anna Karienina

Em agosto, falamos sobre o incrível Tash e Tolstói, romance young adult que reúne em uma só história uma personagem assexual, uma discussão interessante sobre as intersecções entre nossas vidas on-line e off-line — coisa ainda rara no universo da literatura para adolescentes — e um papo nada novo sobre a importância de sermos honestos com nossos sentimentos. Tudo isso acontece quando Tash, a protagonista, vê sua websérie, uma adaptação moderna de Anna Kariênina, viralizar na internet e enfrenta mudanças importantes como o fim do ensino médio e novas dinâmicas familiares. Assim como na vida, tudo acontece ao mesmo tempo, e que o livro consiga ser leve, divertido, com personagens complexos e interessantes é muito mérito da autora, a norte-americana Kathryn Ormsbee.

Nascida e criada no estado do Kentucky, Kathryn hoje mora em Austin, no Texas. Tash e Tolstói é seu único romance publicado no Brasil, mas a autora possui outros títulos no currículo, como a série infantojuvenil The Water and The Wild e o young adult Lucky Few. Assim como sua protagonista, Kathryn já produziu uma websérie de baixo orçamento, Shakes, e hoje apresenta ao lado de sua irmã o podcast de true crime Family Plots. Fã de Anna Kariênina, ela diz preferir Dostoiévski a Tolstói e tem Anne Elliot como sua heroína literária favorita. Kathryn também se identifica como demissexual e bateu um papo com a gente sobre escrever sobre assexualidade num mundo saturado de sexo, seu processo criativo na hora de trazer a internet para o universo dos seus personagens — e fazer isso parecer real —, trabalhar ao lado de leitores sensíveis e, claro, quais os seus headcanons assexuais na cultura pop.

Kathryn Ormsbee é a primeira convidada do De Frente com Valkirias, nossa seção de entrevistas, que pretende ser um espaço para conversar com mulheres incríveis sobre seus trabalhos, experiências, favoritos da cultura pop e outras coisas que fazem o olho brilhar.

A primeira coisa que nos chamou atenção no livro é o quão bem você captura e retrata a relação das personagens com o mundo on-line e a dinâmica específica desse meio.  Sabemos que é um desafio para autores contemporâneos escreverem sobre a internet, porque ela muda muito rápido — e isso não é só para a tecnologia em si, mas também para como nos relacionamos com ela. Mas você traz esses elementos de um jeito muito orgânico, natural, em Tash e Tolstói. Como foi o seu processo? Quais foram as dificuldades que você teve e como você as resolveu?

KATHRYN ORMSBEE: Primeiro, obrigada! Fico feliz que esse aspecto da história tenha parecido realista para vocês. Assim como a Tash, eu co-criei uma websérie (Shakes, uma adaptação moderna de várias peças de Shakespeare) e gerenciei as redes sociais, o marketing e a conta de YouTube do projeto. Então dá pra dizer dizer que eu fiz até que um bom trabalho de campo antes de escrever esse livro. Muito das interações de internet da Tash e da Jack foram espelhadas nas minhas, tanto em um nível pessoal quanto profissional. Quando escrevo romances contemporâneos, eu tento criar todos os cenários da forma mais realista possível, tanto para os personagens como para a realidade. Frequentemente, eu enceno essas situações como se fosse um improviso de uma pessoa só, lendo os e-mails em voz alta e imaginando comentários on-line em contas de Twitter, YouTube e Tumblr. (Sim, é meio esquisito.) Eu também me esforcei para construir o acesso à internet na rotina da Tash, porque, como uma millennial, essa também é a minha experiência: a internet é só mais um aspecto cotidiano e muitas vezes blasé da vida.

Você tem alguma dica para pessoas que querem incluir internet e cultura pop em suas histórias, mas não sabem como fazer soar natural?

K.O.: Eu sugiro todos os métodos acima, mas acho que o mais importante de ter em mente é que uma boa ficção retrata a vida como ela é. Se você não experienciou o aspecto da vida que você quer escrever a respeito, você deve consultar outras fontes para que consiga captar corretamente a vida como ela é. Isso significa pesquisa dura e fria, mas, mais frequentemente, isso significa sentar com um monte de pessoas que tenham vivido aquela experiência. Então se você quer incorporar internet e cultura pop em um livro, mas você não é muito ativo on-line ou não gosta de conversar sobre as últimas novidades de entretenimento com amigos, entreviste pessoas que são assim e que gostem disso. Talvez você se surpreenda com o que aprender!

Uma coisa que gostamos muito sobre o livro é que não é uma história sobre sair do armário. A Tash já sabe que ela é assexual — ou pelo menos tem 99% de certeza — e ela já contou a seus amigos, mesmo que não da melhor maneira. Não é sobre descobrir a própria identidade, é sobre lidar com as consequências de ser de um certo jeito, e isso é incrível e muito difícil. O que te levou a escolher esse momento na história da Tash?

K.O.: Foi muito intencional não escrever uma história sobre sair do armário. Dito isso, eu acredito muito que esse tipo de história seja importante. Sério, a gente só precisa de mais representação assexual, ponto: assexuais saindo do armário, assexuais já assumidos, histórias dramáticas de assexuais, histórias cômicas de assexuais — pode trazer. Mas para o meu livro, eu queria dar aos adolescentes — especialmente aos adolescentes assexuais — a história de uma garota que já é confiante de sua identidade sexual, pelo menos em um nível pessoal; ela se identifica como assexual romântica no começo da história. Porque a questão é: você não precisa estar confiante com a sua identidade. Você deve pesquisar e se questionar por quanto tempo precisar. Mas enquanto você está nesse processo pode ser bom ver seus sentimentos validados na história de alguém que está um pouco mais à frente na estrada. E às vezes essa experiência de leitura pode te ajudar a articular melhor seus sentimentos ou simplesmente encorajar sua confiança na sua própria jornada de autodescobrimento. Eu espero muito que Tash e Tolstói tenha dado coragem os leitores que precisam disso.

Pra você, qual a diferença entre uma história sobre se assumir assexual e uma história sobre o que vem depois de você se assumir assexual? Quais as consequências de se descobrir como assexual e como você acha que traduziu essa experiência para a personagem de Tash?

K.O.: Acho que a maior diferença entre essas duas narrativas é onde elas acontecem. Uma história sobre se assumir assexual é normalmente mais interna, pelo menos no começo. Uma história que acontece depois que você se assume tende a ser mais externa, uma resposta para essa questão — “agora que eu me entendi melhor, como eu vivo essa vida com as pessoas à minha volta?” A Tash lida com uma questão muito real de decidir quando e como contar ao seu crush que ela é assexual. Ela lida com concepções erradas dos outros — incluindo seus amigos — em relação à assexualidade. Ela lida com sentimentos de alienação no grupo de apoio para estudantes LGBTQA+ na escola. Enquanto isso, ela está só vivendo sua vida cotidiana da melhor forma que consegue. E acho que essa última parte é importante, porque Tash — assim como todos os humanos — é complexa. Sua identidade sexual é importante, mas isso é também só uma faceta da sua grande e complicada vida adolescente.

O que eu, Clara, descobri sendo demissexual (pessoa que só sente atração sexual quando há algum outro tipo de conexão — intelectual, emocional, psicológica, etc — com a outra pessoa) e tentando explicar para alossexuais (pessoa que sente atração sexual por outras pessoas) como experiencio atração sexual é que existe uma diferença na lógica da atração. A maioria dos alossexuais não entende como alguém pode não sentir atração pelos outros ou mesmo querer se engajar em atividades sexuais da mesma maneira e frequência que eles querem. É muito difícil de fazê-los entender a lógica do espectro assexual, e você coloca isso no seu livro de diferentes maneiras — tem o Paul, o Thom e mesmo a Jack, os quais todos têm diferentes reações e jeitos de lidar com a Tash. Como foi para você escrever personagens com perspectivas tão diferentes em relação a atração e sexualidade?

K.O.: Sim! Como demi, eu vejo a conversa sobre atração particularmente desafiadora. Acho que quanto mais escolhemos ver a sexualidade em um espectro, mais conseguimos um melhor entendimento. Porque se em todos os aspectos da sexualidade — de orientação a expressão a atração — existem em espectros, as identidades da demissexualidade e assexualidade fazem perfeito sentido. Penso que o maior problema é que não existe uma conscientização a respeito da assexualidade ou representação assexual suficiente.

Tash definitivamente encontra esse problema em suas relações com Paul, Jack e Thom. Apesar de Paul e Jack aceitarem Tash, ainda existe uma confusão rolando, grande parte devido à falta de comunicação. Jack usa a internet como recurso para entender melhor a identidade de Tash e ela faz um esforço para escutar a Tash deixando de lado sua postura sarcástica e irritadiça. Paul tem uma perspectiva um pouco diferente, já que ele tem uma queda por Tash há algum tempo e está tentando entender o que a identidade dela significa em relação aos seus próprios sentimentos; como a Tash, ele tem que pensar seriamente sobre o que significa estar em uma relação assexual. Em contraste, Thom lida com a notícia na defensiva, de um jeito condescendente que, infelizmente, muitos assexuais estão familiarizados. No entanto, eu não escrevi essa história com um checklist de reações particulares que as personagens teriam em relação à identidade de Tash. Eu escrevi primeiro as personagens, e suas reações seguiram no que espero que tenha sido uma maneira bem natural.

Demis e assexuais, apesar de estarem no mesmo espectro, experienciam coisas diferentes — como no caso de um relacionamento, demissexuais conseguem sentir atração por seus parceiros, enquanto assexuais não. Você conversou com assexuais enquanto escrevia o livro? Você usou leitores sensíveis (integrante de um grupo social específico contratado para apontar possíveis problemas de representatividade em manuscritos literários)? Se sim, como isso influenciou suas escolhas para Tash e sua história?

K.O.: Sim! Eu me identifico como demissexual — uma identidade que eu nem sabia que existia quando era adolescente tentando entender minha sexualidade. Na verdade, escrevi Tash e Tolstói para ser uma história adolescente que a Kathryn adolescente precisava; eu teria dado qualquer coisa para ver minha experiência afirmada em um livro, e meu maior desejo é que adolescentes de hoje em dia consigam encontrar partes de si na história de Tash.

Dito isso, Tash é assexual heterorromântica, o que não é a minha identidade, e eu queria ser muito cuidadosa em relação a acertar na representação. Eu trabalhei de perto com uma leitora sensível que dividia a identidade da Tash, e ela me deu um feedback inestimável. Depois dei o livro para mais um monte de leitores assexuais para conseguir feedback adicional. Contudo, cada pessoa vive uma experiência diferente. Sei que existem leitores assexuais que não vão se ver na história de Tash e Tolstói, e é por isso que precisamos de mais representatividade assexual em livros para adolescentes de forma geral.

Uma das cenas mais difíceis de ler é a que Tash revela a Thom que é assexual e ele não aceita. É especialmente difícil por conta do discurso “como você sabe se você nunca experimentou?” quando claramente não se trata de experimentar. Nenhum alo-heterossexual precisou beijar pessoas de outros gêneros — ou não beijar de jeito nenhum — para saber que eles são alo-heterossexuais, então qual seria a diferença para uma sexualidade fora do padrão, certo? Mas isso é algo muito difícil de explicar quando você está sendo atacada. Então, pensando nisso tudo, gostaríamos de saber como foi o processo de criar e encontrar a voz de Tash enquanto assexual no mundo alossexual em que vivemos?

K.O.: Essa foi a cena mais difícil de escrever. É um momento de extrema vulnerabilidade para Tash, e essa situação de modo geral — uma conversa sobre relacionamento assexual — pode ser fonte de muita ansiedade para assexuais. Infelizmente, no caso de Tash, Thom lida com isso de maneira terrível. Ele consegue articular muitos dos equívocos, estereótipos e fobias que indivíduos assexuais encontram no dia a dia. Esse antagonismo também leva a uma postura paternalista, com argumentos de “você precisa experimentar primeiro” ou “você é muito nova pra saber” ou, ainda, “assexualidade foi inventada pela internet”. Esse tipo de atitude raramente é repreendida, porque vivemos num mundo repleto de sexo em que qualquer coisa distintamente não sexual é tratada como puritana ou ingênua.

Quando estava escrevendo o livro, passei dias tentando ver o meu mundo pela perspectiva de Tash. Todas as piadas, programas de TV, filmes, livros e artigos focados em sexo são inevitáveis, e narrativas românticas quase sempre colocam o sexo como objetivo final ou o ápice da conexão humana. Tash expressa sua frustração com esse ambiente, da mesma forma como ela se sente invisível dentro da comunidade LGBTQIA+. Por fim, as palavras de Thom são erradas e nocivas, mas ela lida com versões mais sutis desse discurso tóxico todos os dias. Dar à Tash uma voz firme diante de tudo isso foi uma experiência muito recompensadora. Eu amei criar essa adolescente falha, irreverente, determinada — às vezes determinada demais — que expressa sua voz em seu processo criativo, suas amizades, seu amor fiel  por um autor russo morto e, sim, em sua sexualidade.

Anna Kariênina é o que, de certa forma, une todos os aspectos da história. É a ideia de ser honesto e bancar seus sentimentos que cria um diálogo entre o universo de Famílias Infelizes, a família de Tash, seus amigos e suas crushes, entre o universo virtual e sua (muito real) vida sentimental. Como você decidiu que Anna Kariênina seria o livro certo para ela?

K.O.: Confissão: I heart Anna Kariênina (em português, eu amo Anna Kariênina, um trocadilho com o título original do livro, Tash Hearts Tolstói). Assim como a Tash, peguei o livro em uma livraria quando era adolescente e me apaixonei na primeira linha. Dez anos depois, ele ainda é um dos meus livros favoritos (apesar de eu gostar de Dostoiévski bem mais do que gosto de Tolstói). Eu adoro o quão complexo é o livro; Tolstói é profissional em capturar a experiência humana, e ele entrelaça muitas tramas aparentemente diferentes para criar um único magistral romance. Primeiramente escolhi Anna Kariênina porque pensei (e ainda penso) que ele renderia uma excelente adaptação na forma de websérie. No entanto, à medida que fui escrevendo, percebi que Anna Kariênina servia como uma espécie de espelho para a vida de Tash e suas próprias histórias paralelas. E agora? É uma experiência bem surreal ver meu nome ao lado do de Tolstói na capa de um livro. Ha!

Última pergunta! Todo mundo sabe que diversidade é importante e que assexuais e pessoas do espectro cinza são bem pouco representados na cultura pop. Nós temos alguns headcanons, como a Francesca, de Master of None ser demissexual ou então Charlie Weasley, da saga Harry Potter, como um cara muito assexual arromântico que ama dragões mais do que ama pessoas. Quais são seus headcanons assexuais?

K.O.: Ah, eu amei isso! Sou absolutamente a favor de Charlie Weasley assexual arromântico. 100% sim. Penso em Katniss Everdeen, de Jogos Vorazes, como demissexual e a Imperatriz Furiosa de Mad Max: Estrada da Fúria como assexual (é por isso, aliás, que o nome de usuário de Tash no fórum assexual é uma homenagem a ela). Por fim, leio Anne Elliot como demissexual. Essa interpretação é influenciada pelo fato de Persuasão ser meu livro favorito da Jane Austen e que Anne Elliot é minha heroína favorita? Absolutamente. E ainda assim faz sentido.

Entrevista conduzida por Anna Vitória Rocha e Clara Browne


** A arte do topo do texto é de autoria da nossa colaboradora Carol Nazatto. Para conhecer melhor seu trabalho, clique aqui!

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2 comentários

  1. É incrível ver o tamanho da sensibilidade empregada em todas essas palavras. <3
    Se antes eu já estava curiosa em ler o livro, agora tenho certeza de que preciso ler. (:
    Muito obrigada meninas, por me proporcionarem tamanho deleite! ;*

  2. Choro toda vez que mencionam esse livro e chorei com essa entrevista, com as palavras da Kathryn. Sobre a importância de não mostrar a personagem saindo do armário, sobre a necessidade de ter representações assexuais. Eu descobri que era aos 20 anos, por acaso, numa página LGBT e fui pesquisar mais sobre isso. Antes me dizia hétero – e sexual – mesmo sem me sentir assim. Na adolescência não tive dificuldades, mas depois dos meus 18 anos a representatividade passou a ser grande coisa para mim porque eu estou cansada de não me encontrar nos livros, filmes, novelas e séries. Não estar no grupo de héteros, cis (embora eu seja) e assexuais sempre vai soar estranho para as pessoas que são assim, não é difícil, mas eles não entendem você sentir outras coisas em relação a pessoas e sexo.

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