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Joanne: Lady Gaga de bota e chapéu cor-de-rosa

De chapéu cor-de-rosa. É assim que Lady Gaga surge para seus pequenos monstros em seu aguardado quinto álbum solo, Joanne. Para quem já usou vestido de carne, latas de refrigerante no cabelo e saiu de dentro de um ovo, chocando a si mesma  (e ao público, só que de um jeito diferente) no tapete vermelho, um chapéu não deveria fazer cócegas, certo? Contudo, vulnerabilidade é a promessa de Gaga para seus fãs nesse novo trabalho, cujo título é em homenagem à uma tia que ela nunca teve a chance de conhecer, cuja morte prematura, aos 19 anos, abalou toda a sua família, e também a apresentação de uma faceta da cantora que nós ainda não conhecemos — a de Stefani Joanne Angelina Germanotta, nome que consta em seu registro de nascimento e que antecede Lady Gaga.

Antes de estourar com Just Dance, seu primeiro single, Gaga, ainda em seus dias de Stefani, apresentava suas primeiras composições — e sua já impressionante voz — em bares de jazz e dive bars em Nova York, sua cidade natal. Dive bar é o termo em inglês usado pra designar pubs e bares de reputação duvidosa, o conceito do nosso boteco pé sujo transportado para a realidade americana, que provavelmente também remete ao romantismo dessa coisa linda que é a América. Foi num desses bares — mais especificamente o The Bitter End, onde ela fez seu primeiro show como Lady Gaga, e onde se apresentou várias vezes ainda como Stefani, a garota do piano — que na noite de quinta, 20, Lady Gaga mostrou ao público as músicas de Joanne (lançado oficialmente ontem, 21, e já disponível no Spotify), um novo passo em sua carreira, direto de onde tudo começou.

As referências familiares e autobiográficas das letras combinadas com a promessa de uma volta às raízes significam também uma mudança de sonoridade na sua carreira. Perfect Illusion, o primeiro single do novo trabalho, é carregado de rock, seja pela assinatura de Kevin Parker, do Tame Impala, na produção (junto com Bloodpop e Mark Ronson, que vai aparecer bastante ao longo do álbum), ou pelas guitarras de Josh Homme, líder do Queens of The Stone Age. Mas é no chapéu cor-de-rosa que usa na capa de Joanne que Lady Gaga entrega a maior referência sonora do álbum: o country.

Para uma mulher nascida e criada em Nova York, parece estranho dizer que suas raízes estão na música country, cujo berço é a cidade de Nashville, no Tennessee, a mais de mil quilômetros de distância de Manhattan. Entretanto, em diversas entrevistas Gaga fala sobre a influência que a música de Johnny Cash, Dolly Parton e Garth Brooks teve na sua formação, por ser a trilha sonora de sua infância, a música que seu pai ouvia em casa e um dos sons que alavancou seu gosto pela música. E se Taylor Swift foi capaz de pegar seu jatinho e fazer o caminho inverso — de Nashville para a Nova York brilhante de seu 1989 — por que não deixar Lady Gaga buscar a si mesma nos bares escuros da América profunda, com botina, short curto e chapéu?

Para tanto, a cantora foi atrás de um nome de responsa para guiá-la nessa jornada — agora sim, direto de Nashville: Hillary Lindsey, cantora e compositora americana e também dona de dois Grammy por Melhor Música Country, que está por trás de três faixas de Joanne: “A-YO” (provável próximo single), “Grigio Girls” (que parece algo que Jenny Lewis faria) e o baladão “Million Reasons”, que tem tudo pra ganhar versão em português feita por alguma das rainhas do sertanejo brasileiras, porque é o tipo de música que merece um toque dessa nossa coisa linda que é o Brasil.

Além dos nomes já citados, Joanne traz parcerias de Gaga com Father John Misty, em “Sinner’s Prayer”, cujas bases parecem saídos da trilha sonora de alguma dessas empreitadas country do diretor Quentin Tarantino; Beck, uma colaboração encontrada no meio do caminho — sério, o cantor topou com Mark Ronson na rua e aceitou o convite espontâneo para dar seus 20 centavos para tia Joanne (boatos que Gaga, fanzoca do músico, foi como todas nós, a boa fangirl, quando ele apareceu no estúdio) – que acabou se tornando “Dancin’ In Circles” (de acordo com a própria Gaga, uma ode à masturbação), que até agora eu não decidi se é a música da Gwen Stefani, da Lady Gaga ou o “Alejandro” de Joanne (e digo essas duas coisas como grandes elogios); e Florence Welch em “Hey Girl”, que na cabeça de Ronson deveria soar como um dueto de soul direto dos anos 70, e que na minha cabeça é algo como uma música que as duas cantam juntas numa discoteca dos anos 70, cobertas de lamê da cabeça aos pés, abraçadas como num karaokê.

A vida fica muito mais fácil se a gente se ajuda, diz o refrão da música numa tradução livríssima. Recentemente Lady Gaga tem falado publicamente sobre abuso sexual, como na música “Til’ It Happens To You”, trilha sonora do documentário The Hunting Ground, sobre a cultura do estupro nas universidades americanas. Ela também tem usado sua voz para advogar em favor das vítimas de abuso, como fez no caso de Kesha, que enfrentou uma batalha na justiça para se livrar do empresário que a havia estuprado, e foi apoiada publicamente por Gaga.

Presença forte também na comunidade LGBTQ, esse ano Lady Gaga participou da vigília em homenagem às vítimas do atentado ocorrido na boate Pulse, em Orlando. Seguindo a linha de “Born This Way”, considerada um dos hinos gays da nossa época, “Come To Mama” chega no final de Joanne com a mensagem de Gaga para que todo mundo se ame e pare de brigar por conta de suas diferenças.

“Why do we gotta tell
Each other how to live?
The only prisons that exist
Are ones we put each other in
Why do we gotta tell
Each other how to live?
Look what that rainbow did”

Lendo algumas críticas prematuras ao novo álbum, uma opinião corrente é que a virada country de Lady Gaga é menos autêntica e mais uma performance (forçada) de uma nova estética. Mas a performance não é justamente uma das bases do trabalho de Gaga desde… sempre? Em seu primeiro clipe, “Just Dance”, a primeira imagem que vemos da cantora é dela com um raio pintado no rosto, uma referência óbvia e direta a David Bowie em Aladdin Sane, o álbum que mudou a sua vida. David Bowie foi um artista que gostava de brincar com diferentes estéticas, identidades e eu-líricos e esse é o ponto mais forte de seu trabalho, uma coisa tão sólida ao ponto de Bowie literalmente transformar a própria morte em estética com Blackstar, seu autoelogio póstumo.

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Para virar a diva pop que a consagrou no meio musical, Stefani Joanne Angelina Germanotta se tornou Lady Gaga e é curioso como seus quatro primeiros álbuns — The Fame, The Fame Monster, Born This Way até chegar ao histriônico Artpop — exploraram o pop não só na sonoridade, mas também no conceito, com suas letras e clipes carregados de metalinguagem, as apresentações exageradas e até os figurinos que, por mais absurdos que parecessem ao olhar menos treinado, continham um argumento que remete àqueles que anos atrás começaram a refletir sobre o star system, passando por Andy Warhol e chocando o ovo de onde ela surge no tapete vermelho do Grammy de 2011.

Em 2014, Gaga se afastou do pop, trocou as roupas extravagantes por belos vestidos de gala, e lançou Cheek To Cheek ao lado de Tony Bennet, álbum que lhe rendeu  um Grammy em 2015, casando perfeitamente com a apresentação maravilhosa que fez no Oscar daquele ano, cantando “The Sound Of Music” em homenagem aos 50 anos de A Noviça Rebelde. Ah, é: Gaga também foi indicada ao Oscar de Melhor Música por “Til It Happens To You”, e suas aventuras dramáticas como personagem de American Horror Story lhe renderam um Globo de Ouro esse ano.

Ou seja, é da natureza da nossa monstrona favorita transitar por diversos gêneros e meios, uma maleabilidade que faz parte da sua identidade enquanto artista. Joanne marca uma mudança, mas uma mudança que não abafa os ecos do caminho que a trouxe até aqui. Se é uma performance, Gaga parece ter aprendido bem os passos, soando segura, confiante — e sim, mais despida da pirotecnia pop de antes — e confortável em Joanne, um trabalho que é coeso e bem produzido, e que deve agradar a todo mundo que comprar de coração a proposta dessa guinada que é, sim, ensaiada, mas nem por isso menos genuína.

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Em uma entrevista no início de sua carreira para a repórter Vanessa Gregoriadis, Gaga disse que  o que ela descobriu foi que existe muita verdade na arte e na música — até que vem uma mentira. “O trabalho do artista, essencialmente, é fazer da mentira uma verdade, mas ele desliza por ela junto com os outros.”, ela diz, “essa mentirinha é o momento pelo qual eu vivo, o meu momento. É o momento que a público se apaixona.”

Com Joanne, Lady Gaga brilha em mais um desses momentos. Estou apaixonada.

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2 comentários

  1. Para que você escreve o que está dentro da minha cabeça (o texto sobre Master of None é uma das melhores coisas que já li e o que você escreveu sobre a Taylor Switf é perfeito de tão pontual).
    Que texto maravilhoso, eu, como fã da Gaga desde o início de tudo, fico inteiramente feliz e aliviada que você conseguiu compreender o espírito dela e do álbum. Obrigada e nunca pare de escrever. Eu nunca pararei de ler o que tu escreve.

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