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Jessica Jones: o peso de ser uma super-heroína

Passaram-se três anos desde que começamos a acompanhar as aventuras solitárias de Jessica Jones (Kristen Ritter), super-heroína que, mais tarde, viria a integrar a equipe de Os Defensores ao lado de Demolidor, Punho de Ferro e Luke Cage. Lançada em 2015, a primeira temporada de Jessica Jones, a série, foi recebida com altas expectativas: uma produção da Marvel em parceria com a Netflix protagonizada por uma mulher cujo maior combustível era a raiva e que fugia totalmente daquilo com o qual estávamos acostumadas. Até aquele momento, a Marvel havia desenvolvido apenas uma série centrada em uma personagem feminina, Agent Carter, posteriormente — e precocemente — cancelada pela rede norte-americana ABC, enquanto a promessa de um filme protagonizado pela Viúva Negra de Scarlett Johansson era mantida em suspenso. Três anos se passaram desde então: onde chegamos nesse meio tempo?

Em lugar nenhum, pelo menos quando se fala no Universo Marvel: nenhum filme foi protagonizado por uma super-heroína, e ainda que Capitã Marvel tenha previsão de estreia para algum momento de 2019, o filme solo da Viúva Negra permanece tão misterioso quanto uma lenda urbana. Apenas a Vespa (Evangeline Lily) de Homem-Formiga conquistou o direito de ter seu nome no título de um filme, embora continue a dividi-lo com um homem. Nas séries, o cenário não é muito melhor: se, por um lado, temos a força de personagens como Daisy Johnson (Chloe Bennet) e Melinda May (Ming-Na Wen), de Agents of Shield, por outro, esse número continua a ser muito pequeno em comparação. É então que entra Jessica Jones, a heroína relutante que escolhemos amar, ainda que ela nem sempre seja capaz de retribuir tais sentimentos.

Se a primeira temporada apresentou a pessoa Jessica Jones, em seu segundo ano o universo da série já foi bem estabelecido e novos traumas surgem no horizonte da heroína. Após tratar sobre temas como abuso sexual e estupro, Jessica Jones, a série, tem uma difícil missão pela frente: manter o alto nível da produção sem a presença de um dos vilões mais complexos e icônicos criados pela Marvel: Kilgrave (David Tennant). É um risco, mas um risco que Melissa Rosenberg, showrunner da série, está disposta a correr, firmando Jessica Jones não só como um bom entretenimento, mas como uma produção relevante, que evidencia questões mais amplas do que a jornada tradicional de um super-herói havia feito até então. Assim, os novos episódios não abordam apenas os anos de abuso e superação (ou não) do trauma vivido por Jessica, mas aquilo que acontece depois: o que há no futuro das vítimas de abusos físicos e mentais? Depois de enterrar os próprios fantasmas — de forma literal ou metafórica — como seguir em frente? É possível recomeçar? São perguntas como essas que a segunda temporada precisa responder — o que ela faz, ainda que com alguma dificuldade.

Atenção: esse texto contém spoilers!

No episódio de abertura, Jessica Jones nos recebe com uma protagonista completamente exausta. Enquanto investiga um caso de traição, Jessica (Krysten Ritter) continua encontrando na bebida uma válvula de escape para seus problemas que vão desde os boletos para pagar até tentar entender seu lugar no mundo depois de passar anos nas mãos de Kilgrave. Depois de sua breve incursão no time dos Defensores, Jessica está novamente sozinha, embora Malcolm Ducasse (Eka Darville) flane ao seu redor, na tentativa de fazer parte da Codinome Investigações, e Trish Walker (Rachel Taylor) continue presente, enquanto tenta ser mais relevante para o mundo do que seu talk show no rádio permite. É por meio das tentativas de Trish de mudar sua narrativa que Jessica começa a ser levada novamente ao mistério que envolve sua recuperação após o acidente que matou sua família e a origem de sua força sobre-humana.

Durante a primeira temporada, temos apenas vislumbres do que pode ter acontecido à protagonista durante o período em que ficou internada nos laboratórios da IGH. Agora, a pergunta que temos feito durante todo esse tempo — o que realmente aconteceu? — começa a ser respondida. Mesmo que não esteja disposta a lidar com assuntos tão doloridos, como a morte da família, Jessica acaba sem saída quando Trish, em busca de um furo de reportagem que a tire da sombra de seu alter-ego adolescente, Patsy, insiste em ir mais fundo na investigação sem se importar com os gatilhos que pode despertar em Jessica. Não demora muito para que Trish coloque um alvo em si mesma ao lidar com um mundo que desconhece, fazendo com que Jessica precise intervir. A investigação coloca ambas em rota de colisão com uma pessoa mais poderosa do que a própria Jessica, e logo Simpson (Wil Traval) ressurge para alertá-las do que pode acontecer caso Trish não suspenda sua busca.

A história mantém um bom caminho ao se utilizar de temas mundanos em um mundo de ficção, fazendo com que a audiência possa, em alguma medida, relacionar-se com os problemas enfrentados por Jessica. Com um ritmo diferente (mais lento, contido, sem uma ameaça óbvia) e a ausência de um único personagem para assumir o manto do vilão, Jessica Jones reforça a ideia de que nem só da dualidade entre bem versus mal são feitas as histórias de super-heróis. Os seis episódios iniciais não entregam muito do que está (ou melhor, de quem) perseguindo Trish ou o que isso tem a ver com Jessica, mas nada soa tão sério quanto a ameaça que Kilgrave representara. Depois de um primeiro ano tão bem amarrado e fundamentado em temas densos, a segunda temporada parece perder um pouco da mística que se transformou na marca registrada de Jessica Jones ao deixar o público no escuro por tanto tempo. É o carisma dos personagens que nos mantêm presas à trama, mais do que a narrativa em si, porque queremos saber o que vai acontecer com eles — o que só ocorre após a metade da temporada, quando o mistério em volta do perseguidor de Trish é revelado.

Em um plot twist inesperado, descobrimos que a pessoa que vem perseguindo a radialista é ninguém menos do que a mãe de Jessica, Alisa Jones (Janet McTeer). Resgatada do acidente junto da filha, sua recuperação foi mais longa e dolorosa, fazendo com que o responsável pelos experimentos, Dr. Karl Malus (Callum Keith Rennie), decida que é melhor para todos — e para sua própria pesquisa — que acreditem que Alisa, assim como o irmão e o pai de Jessica, tenha falecido em meio aos destroços do acidente de carro. Dessa forma, Dr. Malus poderia continuar com sua pesquisa em uma cobaia que não seria reclamada por ninguém enquanto Jessica era levada para viver com Dorothy (Rebecca De Mornay) e Trish.

It’s a Mother-Daughter Thing: Jessica e Alisa

Jessica Jones

Um dos pontos mais interessantes da segunda temporada de Jessica Jones é justamente a inserção de Alisa na trama. Além do pouco que foi contado a respeito da vida de Jessica anteriormente, a figura da mãe — assim como a do pai e do irmão — não passam da idealizações de uma mulher que não se lembra tão bem assim de como era a sua vida antes do acidente que a transformaria para sempre. Jessica teve a vida interrompida e, no luto que se seguiu, construiu para si um passado em tons de rosa, um lugar que ela poderia revisitar na memória, caso quisesse, e em que tudo seria perfeito — algo bem diferente daquilo com o qual ela se depara quando abre os olhos pela manhã. A entrada de Alisa vem para desmontar esse passado de faz-de-conta, apresentando a Jessica uma realidade que ela escolhia, de maneira inconsciente, ignorar.

Muito mais do que optar por uma narrativa em que a super-heroína precisa impedir o vilão de cometer atrocidades, Jessica Jones escolhe lidar com outro aspecto importante do passado de sua protagonista. As relações entre mães e filhos rendem um sem fim de materiais a serem abordados pela cultura pop, e não é por acaso que It’s a mother-daughter thing abre esse tópico, uma referência clara e direta à Gilmore Girls. Mas, diferente de Rory e Lorelai Gilmore, Jessica e Alisa não puderam crescer juntas enquanto mãe e filha, e, mesmo quando se recuperam do acidente que interrompeu suas vidas, permanecem privadas do reencontro e da convivência por conta da intromissão de um médico e sua pesquisa. Por mais que Dr. Karl acredite estar revolucionando a medicina, o que ele faz passa a quilômetros de distância de qualquer ato ético.

Quando Jessica e Alisa se reencontram, muito já mudou na vidas das duas para que uma conexão imediata seja possível. Enquanto Jessica precisou lidar com o luto durante a adolescência, viver de favor na casa de Dorothy e, mais tarde, sobreviver a Kilgrave, Alisa esteve reclusa por anos enquanto Dr. Karl aprimorava seu “tratamento” e controle da raiva. As intervenções feitas por Karl em Jessica, responsáveis por criar sua super força, também foram feitas em Alisa, mas com resultados ainda mais intensos. Se Jessica tem um gênio forte e resolve boa parte de seus problemas com os punhos, Alisa também o faz, mas em um nível mais perigoso. Embora tenha sido preciso esperar por metade da temporada para que o reencontro acontecesse, quando ele ocorre é com um salto de qualidade na narrativa: ainda que a história de origem de Alisa seja diferente na série em relação aos quadrinhos, é possível surpreender os fãs de maneira positiva com essa nova trama.

A dinâmica familiar de Jessica — pelo menos aquela da qual ela se lembrava — precisa ser rearranjada quando Alisa volta para sua vida. Momentos de nostalgia e saudades são substituídos pela crua realidade de um casamento que não estava indo tão bem quanto Jessica se lembrava e um acidente que, no final das contas, não foi culpa de Jessica — algo que a protagonista joga na cara da mãe quando esta lhe diz, após anos de dor e sofrimento, que a culpa da batida do carro foi única e exclusivamente do pai, que era um péssimo motorista e se desentendeu com Alisa enquanto dirigia. Receber a mãe de volta em sua vida — e, principalmente, uma mãe que é uma bagunça, cheia de sentimentos fora de controle — faz com que Jessica tenha que reorganizar suas lembranças; tudo isso enquanto fazem café da manhã, viajam em um trailer e discutem, coisas que toda mãe e filha vivem um dia. E é isso o que transforma o relacionamento entre as duas, mesmo com todas as feridas abertas, em algo tão crível e genuíno.

Apesar do que aconteceu com Alisa e sua maneira torta de resolver suas questões com Trish, tudo o que ela deseja é proteger Jessica. A filha foi tudo o que lhe restou da família, e mesmo que não consiga recuperar o tempo perdido, estar ao lado dela é importante e fundamental para sua recuperação. Jessica, enquanto isso, sabe perfeitamente que a mãe é uma assassina com pouquíssimo controle sobre sua mente, mas deseja salvar sua vida mesmo que isso custe sua própria liberdade. Para coroar uma perfeita adição a uma temporada um pouco sem rumo, há o momento em que as duas agem como uma dupla de super-heroínas perfeitamente entrosada no derradeiro episódio “AKA Playland”. Por um breve momento, mãe e filha conseguem vislumbrar um futuro e uma vida juntas enquanto estão em uma road trip e salvam uma família de um acidente de carro enquanto se conectam de maneira única — e talvez pela primeira vez em suas vidas. É inovador ver uma série de super-heróis destacar o relacionamento entre mãe e filha, principalmente se as duas personagens em questão tem poderes especiais. Não é algo visto com frequência e faz a segunda temporada de Jessica Jones realmente valer a pena. Mas então há Trish Walker.

I Want Your Cray Cray: Trish sem controle

Quando conhecemos Trish Walker na primeira temporada, não sabemos muito sobre ela além do fato de ser a melhor amiga e praticamente irmã de Jessica. Após a morte dos pais, é com Dorothy e Trish que Jessica passa a viver, ainda que isso signifique lidar com o mundo de Patsy, uma versão de Trish similar à Hannah Montana de Miley Cyrus, e uma momager capaz de deixar até Kris Jenner arrepiada. É na segunda temporada, por meio de um flashback no sétimo episódio, “AKA I Want Your Cray Cray”, que podemos ter uma ideia melhor de como foi a vida de Trish enquanto estrela teen e como aqueles anos viriam a refletir em sua vida adulta e no relacionamento com Jessica. Após alcançar o estrelato ainda criança, Trish tenta permanecer na carreira que a consagrou rompendo as amarras com o lado infantil e virginal de sua personagem, quase como Britney Spears — ou a própria Miley Cyrus — fez, e se lança em um vídeo sensual com uma música pop chiclete e sem muito conteúdo.

Nesse cenário, Trish está muito mais interessada em se divertir e beber do que qualquer outra coisa, e é Jessica quem aparece como voz da razão no relacionamento entre as duas. Enquanto Trish festeja e se droga em banheiros de baladas com pessoas que não estão tão interessadas assim em seu bem-estar quanto estão em sua fama e dinheiro, Jessica se preocupa com o fato de que precisará acordar cedo no dia seguinte para assistir às aulas na faculdade e que os novos “amigos” de Trish não são tão verdadeiros quanto querem parecer. As duas entram em uma briga e, nesse contexto, Jessica conhece Stirling Adams (Matt Vairo), praticamente um outro ponto de virada na vida da protagonista. Por meio de Stirling descobrimos o significado de vários ícones que formaram a Jessica Jones que conhecemos, desde o nome de sua agência de investigação até sua indefectível jaqueta de couro preta: tudo o que, no nosso imaginário, grita Jessica Jones veio, na verdade, de outra tragédia em sua vida.

Mas voltemos a Trish. A história de vida dela pode não envolver um acidente de carro e uma estadia forçada como cobaia em um laboratório, mas também não é tão fácil e doce como poderia ter sido. Vendida por sua mãe para um diretor de cinema muitos anos mais velho do que ela como meio de chegar ao estrelato, Trish ainda leva consigo as marcas do abuso que sofreu, mas decide reabri-las para conseguir informações valiosas a respeito da IGH — o que serve para mostrar o quanto ela está obcecada com as investigações envolvendo o passado de Jessica, um traço de sua personalidade com a qual não havíamos nos deparado até então. Trish parecia ter tudo sob controle após a saída de Simpson de sua vida, tem um novo relacionamento estável com um âncora de telejornal, algo que parece estar ficando cada vez mais sério, mas não é exatamente isso o que ela deseja. Em um momento muito marcante, Trish confessa que não quer estar com seu namorado, mas que gostaria de ser como ele: ter a carreira emocionante como correspondente de guerra, ser âncora de um telejornal de prestígio, poder fazer a diferença.

No decorrer dos episódios, a busca de Trish pela IGH começa a tomar outro rumo quando a personagem decide experimentar o inalador deixado por Simpson, dispositivo responsável por deixar o ex-soldado forte e incansável até a ação da droga se dissipar. Com seu histórico de vício, não demora para que Trish fique obcecada, também, pelo pouco de poder que o inalador lhe propicia, transformando a busca pela história de Jessica e a IGH em apenas um meio para conquistar mais poderes. Durante a segunda temporada, Trish está lutando contra o ciúme que sente das habilidades de Jessica e o fato de que não consegue mudar sua narrativa por conta própria. Quando o inalador de Simpson aparece, ele se torna o meio para um fim e Trish não pensa duas vezes em usá-lo para alcançar seu objetivo. Em sua jornada em busca de poder, o que ela vê como a única opção para fazer do mundo um lugar melhor, visto que Jessica, aquela com o dom da super força, não tem muito interesse em ser uma vigilante ou super-heroína, é tornar-se ela mesma uma super-heroína — o que a faz perder-se por completo.

A história de Trish não é, nem de longe, aquela que esperávamos. A personagem sempre apareceu como um norte para Jessica, alguém com que a protagonista poderia sempre contar, mas a trama que envolve o inalador, seus vícios e a vontade de se provar, colocam Trish em uma rota, no mínimo, estranha. Desde a aparição da personagem na primeira temporada, a audiência esperou pelo momento em que ela se transformaria na Hellcat, sua identidade de super-heroína dos quadrinhos, mas a showrunner Melissa Rosenberg parece ter outros planos. Com a busca implacável de Trish por poder, ela se coloca à mercê de Dr. Karl sem parar para pensar um minuto sequer no que a intervenção do médico causou às vidas de Jessica e Alisa. Quando chegamos ao final da segunda temporada, Trish jogou fora sua carreira, sua vida amorosa, seus amigos e sua própria índole perseguindo e combatendo moinhos de vento.

Como se não bastasse fazer com que Jessica revisitasse momentos tão dolorosos do passado, algo que ela não estava disposta a fazer, Trish usou os sentimentos que Malcolm tinha por ela apenas para conseguir o que queria. Em uma temporada repleta de erros de julgamento, terminamos o décimo terceiro episódio com um pequeno vislumbre de que, no final das contas, Trish seria recompensada por todos os seus equívocos recebendo os super-poderes que tão insanamente buscou. Seria Hellcat alguém que Jessica deve temer no futuro? Só o tempo irá dizer.

Feminismo branco: onde está a diversidade?

Não passou despercebido a maneira como a segunda temporada tratou personagens que não fossem mulheres brancas, a começar pelo incansável Malcolm. O crescimento do personagem, tanto na primeira quanto na segunda temporada, é impecável, mas parece que Jessica não dá tanto valor a isso quanto deveria. É fato que ela tem dificuldades imensas em criar relacionamentos saudáveis, mas a maneira como trata Malcolm vai além do aceitável em diversas ocasiões. É verdade que Jessica Jones é uma série que trata sobre mulheres e sua raiva, mas apenas se essas mulheres forem brancas — e essa é uma falha inaceitável em uma série que se propõe a contar histórias de mulheres e por mulheres.

Em entrevista a Vanity Fair, Melissa Rosenberg assume que realmente faltam personagens negras em papéis de destaque na trama e que apenas Malcolm tem “erguido essa bandeira” — o que ainda é muito pouco, sobretudo quando as três mulheres em que a série foca são brancas. Na segunda temporada conhecemos um pouco mais da Detetive Ruth Sunday (Lisa Tharps), mas, enquanto antagonista de Jessica, a série não lhe cede um olhar de simpatia. Além de Sunday, outra mulher negra entra em cena como uma das prostitutas contratadas por Jeri Hogarth (Carrie-Anne Moss) e outra, ainda, aparece nos últimos episódios como a nova policial responsável por Alisa Jones na prisão, a oficial Marilyn (Jennifer Fouche). Não é preciso ser adivinho para acertar que uma das personagens sai de cena sem maiores detalhes e outras duas são mortas pela conveniência do roteiro, algo de que não devia acontecer em uma série como Jessica Jones.

O arco de Malcolm é, de fato, muito interessante, e o personagem é, ao lado de Jessica, o único com um considerável crescimento narrativo. Na primeira temporada, Malcolm passou boa parte do tempo sob o efeitos de drogas ou sendo manipulado por Kilgrave, então é reconfortante vê-lo colocando um rumo em sua vida, tentando participar ativamente da Codinome Investigações e buscando meios de se manter ocupado e produtivo. Ele não deixa de ser um personagem em recuperação, lidando constantemente com as escolhas de seu passado e isso é muito real e crível, já que lidar com vícios e viver apesar deles é uma rotina baseada em escolhas, uma luta constante entre o que é certo e o que é fácil, e que requer altas doses de coragem e persistência. É agridoce ver Malcolm, ao final da temporada, saindo da vida de Jessica e formando sociedade com Pryce Cheng (Terry Chen), o investigador que rivaliza com Jessica no começo da temporada e flana ao redor de Jerri Hogarth o resto do tempo, mas foi uma escolha acertada para se manter são e com propósitos. Se Jessica não consegue dar valor a Malcolm e o que ele significa como amigo, o melhor que ele tem a fazer é procurar novos ares, mesmo que isso aconteça ao lado de Pryce.

Jessica Jones continua, no entanto, escrevendo mulheres (brancas) de maneira excepcional, a exemplo da Jeri Hogarth. A brilhante advogada tem um arco narrativo executado com maestria na atual temporada, e sua orientação sexual é sempre tratada de maneira cuidadosa e como algo que simplesmente é. Dentro do universo Marvel, Jeri aparece como uma das personagens mais complexas já feitas: ela consegue impor respeito e, ao mesmo tempo, não dá a mínima para o que possam pensar sobre ela — e faz tudo isso enquanto se veste de maneira impecável e conduz os casos de seus clientes com muito profissionalismo. Nessa temporada, descobrimos mais a respeito da mulher que está debaixo do manto de advogada bem sucedida, e o diagnóstico de ELA (esclerose lateral amiotrófica) vem apenas para adicionar mais humanidade e fragilidade a uma personagem praticamente imbatível. Na busca por uma cura, Jeri se envolve com a enfermeira Inez Green (Leah Gibson), antiga funcionária da IGH, um relacionamento que surge como algo novo e positivo em sua vida apenas para se transformar em mais uma decepção.

Mas, se por um lado temos todas essas mulheres escritas com maestria, por qual motivo Melissa Rosenberg não é capaz de estender o mesmo cuidado às mulheres não-brancas? Nos novos episódios, além das citadas Detetive Ruth Sunday e a Policial Marilyn, a única outra mulher não-branca na trama é Sonia (Victoria Cartagena), ex-esposa de Oscar Arocho (J.R. Ramirez), o novo zelador e interesse amoroso de Jessica. Sonia não recebe a cortesia de ser escrita fora do estereótipo da latina de sangue quente, visto que a personagem aparece como uma mãe raivosa e que não concorda com o fato de não ter a guarda do filho. De forma impulsiva, ela tenta, então, fugir com Vido (Kevin Chacon), seu filho, para desespero de Oscar, que recorre a Jessica em busca de ajuda. A protagonista consegue descobrir o paradeiro de Sonia e, além de resgatar o menino, também é responsável por acalmar a mulher e mostrar que aquela não é a melhor saída para reaver a guarda do filho.

Outro ponto bastante problemático em Jessica Jones é uso das metáforas que tentam relacionar pessoas com superpoderes a populações excluídas. Dentro do contexto da série, faz sentido enxergarmos Jessica como uma pessoa passível de exclusão por aquilo que significa, já que o estranhamento com o desconhecido é algo real, mas quando vemos a protagonista branca dizer a um personagem negro como ela é oprimida por ser diferente, isso soa como algo descuidado e que tem a capacidade de deixar desconfortável quem assiste. Analogias entre super-heróis e minorias não são algo inédito — X-Men está aí para provar —, mas precisa ser feito com cuidado para que não se torne um desserviço.

Uma temporada de altos e baixos: o que esperar daqui pra frente?

Renovada na última semana para uma terceira temporada, Jessica Jones tem alguns itens pendentes na lista de coisas a fazer para não cometer os mesmos erros mais uma vez. Em uma temporada que teve todos os seus treze episódios dirigidos por mulheres, é uma pena que a qualidade narrativa não tenha acompanhado a beleza das cenas criadas por essas profissionais devido aos pequenos deslizes do roteiro. É possível ver a diferença do trabalho das diretoras em cenas específicas, como as de sexo, que parecem muito mais íntimas e delicadas do que na temporada anterior. Não há enquadramentos estranhos que visam apenas mostrar os corpos das atrizes, e isso foi algo que, como vimos em Mulher-Maravilha, faz toda a diferença na maneira de contar uma história. Mas ficamos à deriva diante do roteiro, sem saber para onde estamos indo, um ponto que precisa ser melhor trabalhado no próximo ano. A questão das personagens não-brancas também precisa ser resolvida com urgência; não apenas um sidekick, mas alguém tão bem escrito e desenvolvido como Jessica e que venha, acima de tudo, para somar à história da maior chutadora de bundas da Marvel.

Mas Jessica Jones tem seus bons momentos e permanece, sim, como a melhor série da parceria entre Marvel e Netflix. A aparição de Kilgrave, ecoando os pensamentos de uma Jessica perturbada, foi brilhante na medida em que evocou aquilo do qual, inevitavelmente, sentimos falta. David Tennant e Krysten Ritter revisitam o que de melhor fizeram na primeira temporada por meio de diálogos inspirados e interpretações idem. Ao final da temporada, Jessica finalmente percebe o peso que carrega ao ser considerada uma super-heroína, e muito disso vem do curto período de tempo em que passou em companhia de Alisa. Quando mãe e filha estão na estrada tentando cruzar a fronteira para o Canadá em busca de um recomeço, Alisa começa a sonhar com um mundo em que ela e Jessica possam se unir para salvar vidas. Essa semente de esperança parece permanecer com Jessica mesmo após a morte da mãe — ao retornar para sua vida em Nova York, ela interfere em um assalto a uma loja de bebidas e conta a história, com um pouquinho de orgulho, a um interessado Vido. Após duas temporadas relutando em se aceitar como alguém que pode fazer a diferença, Jessica parece, finalmente, ceder.

Ao ver sua vida se despedaçar novamente diante a partida de Malcolm e a morte de Alisa pelas mãos de Trish, ela não se volta para sua garrafa de whisky. Dessa vez, Jessica busca pela companhia de Oscar e Vido, juntando-se a eles em um jantar e uma vida normal — pelo menos durante aquela refeição. Jessica não se permitiu a felicidade por muito tempo, uma vez que a felicidade, para ela, sempre esteve associada à tragédia; ela não se permite a felicidade pois sabe que ela não dura para sempre — mas, por enquanto, parece tentar algo diferente para curar sua tristeza. Em um importante ponto de virada, Jessica decide parar de existir para, efetivamente, começar a viver, doa a quem doer. E sabemos que disso, ela entende.


** A arte em destaque é da editora e autora do texto Thayrine Gualberto.

4 comentários

  1. Eu amo Jessica Jones, é minha série Marvel/Netflix favorita, e amei essa análise. Mas eu, particularmente acho, Luke Cage a melhor da parceria, em qualidade de filmagem, roteiro, e trilha sonora.
    Tô amando acompanhar esse blog! E não sei como não conhecia antes! Parabéns pelo trabalho incrível de vocês ❤

    1. Obrigada pelo comentário, Amanda!
      Luke Cage é uma série excelente, né? O realismo e a crítica social do enredo fazem toda a diferença. <3

  2. Gente, eu sempre quis assistir essa série mas nunca paro de fato e digo “NÃO. AGORA IREI ASSISTIR!”, ela está na minha listinha por enquanto, mas eu irei ver -com toda certeza do universo!- , adorei seu post! Um beijo
    Yasmim Gil ♥

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