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Jane Austen: muito além do romance

Quando menciono algum livro de Jane Austen para uma pessoa que não está muito familiarizada com sua obra, geralmente a primeira reação é pensar que estou falando a respeito de romances açucarados, ou, como adoram frisar, de livros que deram origem a “filmes de mulherzinha“. O que eles não sabem é que os livros de Miss Austen vão muito além do simples romance.

Nascida em 1775 em uma família da baixa nobreza britânica em Steventon, Hampshire, na Inglaterra, Jane Austen teve seis irmãos e uma irmã mais velha, Cassandra, que foi sua melhor amiga por toda a vida. Filha de um pároco anglicano, Jane recebeu uma educação formal durante três anos, mas sua família não possuía recursos suficientes para manter seus estudos, então ela e sua irmã retornaram para casa e usufruíram da biblioteca bem abastecida do pai como forma de dar continuidade a seu aprendizado. Jane viveu durante o que os historiadores chamam de período Regencial (que nada mais é do que a transição entre a Era Georgiana e a Era Vitoriana), época em que as forças napoleônicas avançavam, a guerra entre França e Inglaterra continuava, mas que contava, também, com uma atmosfera relativamente liberal e de certa efervescência cultural — principalmente por conta do Príncipe Regente e da Duquesa Georgiana de Devonshire, patronos das artes, da literatura, arquitetura e  música.

Jane cresceu nesse período e passou a vida inteira em um vilarejo rural, cenário certo em praticamente todos os seus romances. Alguns críticos costumam dizer que Austen criou um mundo irreal em seus enredos por não utilizar-se dos grandes acontecimentos mundiais em sua narrativa, mas é importante lembrar que ela escreveu sobre aquilo que lhe era comum: os bailes, passeios e, claro, a vida social. A princípio pode parecer uma literatura extremamente fútil, mas é preciso olhar além da superfície para notar como a obra de Jane Austen é uma crítica a essa sociedade da qual fazia parte. Não abordar tais assuntos de maneira explícita em seus enredos não significa que a autora tenha sido alienada a respeito do que acontecia no mundo ou que não se importasse; significa apenas que ela preferia escrever sobre aquilo que lhe era conhecido.

Embora Jane nunca tenha se afastado do vilarejo em que cresceu, sua visão de mundo sempre foi muito crítica: a sociedade em que estava inserida, por exemplo, lhe serviu de inspiração para a ambientação de seus romances e fio condutor para destrinchar os valores de sua época. O que encontramos em sua obra, escrita há mais de duzentos anos, ainda é pertinente para os dias de hoje: os conflitos dentro de hierarquias sociais, a vontade de ascender socialmente, os casamentos por interesse, as atitudes que são esperadas por parte mulheres casadoiras e das famílias delas. Jane Austen escrevia sobre a realidade em que vivia e compreendia, sempre se utilizando de refinada ironia para abordar tais assuntos enquanto tecia críticas à sociedade inglesa utilizando-se de personagens femininas que nem sempre se mantinham dentro dos costumes da época.

Suas heroínas são mulheres inteligentes, perspicazes, irônicas, curiosas e valentes, cada uma ao seu modo, mas nunca perfeitas. Elas erram em seus julgamentos, ficam em dúvida, sofrem. Mesmo diante de todas as adversidades de suas vidas, conseguem balancear a razão e o sentimento de maneira a atingir seus objetivos — e um deles, diga-se de passagem, não é casar, como se espera, mas serem felizes independente do casamento. A felicidade, para as heroínas de Jane Austen, não está atrelada ao matrimônio e a construção de uma família, mesmo que, em teoria, esse seja o ideal para as mulheres do período Regencial (mas não somente para elas, como bem vemos em nossa sociedade atual).

Meu livro favorito de Jane Austen é Orgulho e Preconceito, talvez a trama mais conhecida da autora, publicado pela primeira vez em 1813 e adaptado algumas vezes para a televisão e o cinema. Nesse livro acompanhamos a história de Elizabeth Bennet, a segunda das cinco filhas do senhor e da senhora Bennet, que recusa um casamento por interesse e decide que se unirá a outro homem somente por amor. Tal atitude provoca horror em sua mãe, que tem por objetivo de vida casar bem todas as cinco filhas de maneira que elas não passem necessidades quando o pai morrer. Naquela época as leis inglesas asseguravam que a herança de uma família fosse destinada sempre ao herdeiro homem mais próximo, deixando as mulheres, mesmo no caso de uma primogenitura, desamparadas no caso da morte do patriarca. Esse foi o caso da família Bennet, composta apenas por filhas, que veria a herança de seu pai ir direto para o Sr. Collins, parente mais próximo do Sr. Bennet, e que pediu a mão de Elizabeth em casamento. Mesmo correndo o risco de viver em uma situação financeira difícil, Lizzy, no entanto, recusa a proposta por não amá-lo.

A recusa de Lizzy a um casamento de interesses demonstra sua personalidade forte e desprendimento com relação às convenções sociais da época. Todas as heroínas de Jane Austen manifestam forte oposição às ideologias dominantes do período, enfrentando as barreiras sociais com ironia, humor sagaz e riso. O riso, inclusive, é uma arma constantemente adotada pelas personagens de Austen quando tem por intenção zombar ou ironizar as etiquetas sociais. E talvez seja exatamente essa jovialidade, impetuosidade e comportamento independente que tenha feito Sr. Darcy observá-la com um pouco mais de curiosidade do que pretendia.

A relação de Elizabeth e Darcy não se inicia de maneira amigável. Sr. Darcy, enquanto observa as mocinhas no salão de baile, até chega a dizer a seu amigo, Sr. Bingley, que Elizabeth é aceitável, mas não é bonita o suficiente para o tentar. Lizzy entreouve o comentário e as primeiras impressões que um tem do outro não são as melhores: Darcy, do alto de seu pedestal de nobreza e orgulho, desdenha de Lizzy ao primeiro olhar enquanto ela, por meio de seu preconceito e, por que não dizer, autoproteção, não tem as melhores impressões dele. É justamente por todo esse estranhamento inicial que gosto tanto do desenvolvimento do romance de ambos: não é aquele momento mágico e impressionante onde o mundo parece andar em câmera lenta, eles sequer se gostam a primeira vista. O sentimento que os unirá ao final do romance cresce aos poucos e de maneira real, enquanto eles tentam conhecer melhor o mundo do outro e deixar as primeiras impressões para trás.

Quando digo que Jane Austen vai muito além do romance em suas obras me refiro ao fato de que nenhuma de suas heroínas vive em função disso, apesar de o romance ser parte importante de suas vidas — como é de qualquer pessoa. O romance entre os personagens acontece de forma paulatina e é possível acompanhar toda a evolução e crescimento dos personagens — exatamente o que acompanhamos em Orgulho e Preconceito. De um primeiro encontro de despertar antipatia, passando pela curiosidade e carinho crescente, a relação de Lizzy e Darcy é uma das melhores coisas para se ler — e tudo sempre cuidadosamente trabalhado em meio às críticas sociais e ironias refinadas de Austen. Darcy, de arrogante e orgulhoso, coloca seu nome e fortuna a disposição da mulher que ama mesmo que ela a tenha rejeitado uma primeira vez, enquanto Lizzy, que vê sua reação imatura como equivocada ao se deixar levar pelas aparências. É bonito acompanhar a evolução dos dois personagens: eles se despem de seus preconceitos iniciais quando percebem que há muito mais do que foi visto em um primeiro momento.

Gosto especialmente dos trechos do livro onde Elizabeth questiona Darcy sobre como tudo começou. Darcy não sabe precisar como seus sentimentos foram despertos, diz que não poderia determinar a hora, ou o lugar, o olhar, as palavras, em que tudo se baseou. Para ele foi há muito tempo, “já estava a meio caminho antes de compreender que já tinha começado”. Elizabeth logo devolve dizendo que sua beleza fora descartada por ele logo no início e que seu comportamento fora, no mínimo, quase grosseiro, visto que sempre que se dirigia a ele, ela sentia “alguma vontade de feri-lo”. Ainda curiosa sobre o que despertou a admiração de Darcy com relação a ela, Lizzy insiste e ele lhe responde:

“Foi a vivacidade de seu espírito.”

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