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A importância de uma literatura feita por mulheres

Faz pouco tempo que li Estação Onze foi um dos melhores livros que já li na vida, mesmo já tendo lido muitos livros bons na vida. Gosto muito de ficção científica, distopias, ficção pós-apocalíptica e gêneros similares. Normalmente não é o tipo de literatura que mais brinca com os meus sentimentos, mas são os livros que normalmente mais me fazem pensar e me maravilhar e mexem com a minha imaginação.

Muita gente tem essa conexão com livros de fantasia e ficção científica/distopias/ficção pós-apocalíptica são, para mim, um tipo particular de fantasia, com um diálogo maior com a realidade. Mas me incomoda a falha na hora de dialogar com meus sentimentos. Literatura que não mexe com sentimentos nunca vai atingir sua plenitude.

Eu li e gostei muito de obras clássicas como Admirável Mundo Novo, 1984 e Revolução dos Bichos, mas sempre senti uma aridez nessas obras que considerava inerente ao gênero literário que hoje vejo de forma diferente. São livros incríveis, que eu ainda planejo reler, mas sinto que falta algo. E então chegam obras como Estação Onze, que conseguem trazer com maestria os elementos que eu sentia falta nos outros livros, e uma luz se acendeu dentro do meu cérebro.

A primeira vez que cheguei perto de me dar conta de que o meu “problema” não era com o gênero literário, e sim com as obras que eu estava lendo, foi quando li A Idade dos Milagres alguns anos atrás. Na época eu não tinha bagagem nem senso crítico suficientes para me dar conta disso, mas já conseguia perceber que aquele livro tinha algo de diferente. Hoje em dia, com mais movimentos chamando a atenção para a necessidade de ler e valorizar trabalhos artísticos feitos por mulheres, finalmente me dei conta do que aqueles livros áridos tinham em comum e o que Estação Onze e A Idade dos Milagres têm de diferente. Caso alguém ainda não tenha entendido, vou ser mais clara: o sexo das autoras.

Não que haja algo inerentemente diferente entre o cérebro de uma mulher e o de um homem (spoiler: não há). Acredito que gêneros são construções sociais e fruto única e exclusivamente de socialização. Mas a questão é justamente, de um lado, essa tal socialização, e de outro as vivências específicas de cada um dos sexos.

Se vivêssemos em um mundo utópico que não impusesse características, comportamentos e vivências específicas para seres de cada sexo desde o nascimento, não haveria essencialmente diferença nenhuma entre livros escritos por homens e por mulheres. Não existiriam nem mesmo homens e mulheres. Mas existem. Porque a socialização não falha, e desde que nascemos a sociedade impõe o que devemos fazer e como devemos nos comportar. Porque no segundo em que entramos no mundo, nossas orelhas são furadas, colocam vestidos e laços em nós, ganhamos bonecas e somos obrigadas a ouvir em silêncio os tipos mais baixos de assédio enquanto tentamos andar na rua em paz, além de milhares de outras formas de construção da feminilidade (que é completamente artificial).

É todo esse processo cruel de opressão e imposição que nos tornamos mulheres — seres humanos com algumas características e vivências mais ou menos comuns. Isso faz com que exista uma diferença muito perceptível, entre livros escritos por homens e por mulheres. Entre milhares de outros pontos, somos ensinados que mulheres são seres emocionais, enquanto homens são racionais. Eureca! Parece que encontramos a causa das duas questões centrais que eu apontei: a “ausência” de sentimentos das obras clássicas escritas por homens, e a falta que eu senti desse elemento nessas mesmas obras.

Em Estação Onze, mesmo quando o ponto de vista é masculino e a história está temporariamente focada em personagens homens, a questão do sentimento é muito forte. As motivações e a trajetória de cada personagem são profundamente exploradas e o que temos é um livro que o tempo todo se dobra sobre si mesmo para se justificar. Todos os acontecimentos ali não são o elemento central da trama, são subsídios para que possamos entender e sentir como as personagens sentem. Ênfase no sentem, porque o sentir é o ponto central de tudo. Essa é a beleza do livro, o ponto indefinível que torna ele tão maravilhoso e único.

A Idade dos Milagres é um exemplo menos extremo, mas igualmente perceptível do mesmo fenômeno. É ao mesmo tempo um livro de ficção pós-apocalíptica e um coming of age sem que um elemento supere o outro, porque é assim que as coisas acontecem na vida, especialmente para mulheres: tudo ao mesmo tempo. O mundo não para enquanto temos que lidar com nossas questões internas, assim como nossas questões internas não esperam enquanto coisas grandes acontecem no mundo.

Em ambos os casos, eu não acredito que um homem teria sido capaz de contar as histórias de uma forma tão completa como as autoras fizeram. E — que curioso — é essa mesma completude e ênfase nos sentimentos que muitas vezes estigmatizam as obras escritas por mulheres como “coisa de mulherzinha“.

O homem na nossa sociedade é considerado o neutro, o universal. É por isso que nós somos levadas a acreditar que é normal consumir majoritariamente obras feitas por homens, mesmo quando sentimos que algo está faltando. O que significa que nós consumimos massivamente e diariamente a visão masculina (até sobre nós mesmas), que fatalmente não contempla a forma como vemos e nos relacionamos com o mundo. E tudo parece aceitável, porque sempre foi assim. Até que felizmente chegamos ao momento atual de efervescência.

Só quando começamos a pensar ativamente sobre a necessidade de prestigiar o trabalho feminino, nos damos conta do quanto nossa realidade e tudo o que consumimos é masculino. No quanto o mundo como um todo é masculino. E só quando nos esforçamos para mudar isso, percebemos (com surpresa) o quanto obras produzidas por mulheres nos contemplam e nos representam de uma forma que nós nunca sonhamos que fosse possível.

2 comentários

  1. OI Paloma!
    Eu sou suspeita por que eu amo ficção científica e apesar de ainda não ter lido Estação Onze sei exatamente como vc se sente.
    Vivo sempre brincando porque sou fã de Doctor Who e sempre desejei ter uma senhora do tempo na história, Ai veio a Michelle Gomez me animar um pouquinho.. mas ainda é pouco .. pq quem escreveu o roteiro possui visão masculina =/

    adorei seu post e anotei a dica do livro pra ler

    1. Oi, Clayci! Muito obrigada pelo comentário.
      Não assisti nada de Doctor Who ainda, mas entendo muito esse sentimento de falta e a frustração quando tentam suprir essa carência de um jeito insuficiente. Espero que um dia eles cheguem lá.
      E leia Estação Onze, sim. É fantástico, coloco minha mão no fogo por ele!
      Beijos.

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