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Halt and Catch Fire, mulheres e tecnologia

Halt and Catch Fire é uma série do canal norte-americano AMC e parece ser bem daquele tipo de série que passa despercebida pelo grande público. Imagine que o enredo aborda tecnologia e computadores no início dos anos 1980 e que, apesar de ter sido uma trama completamente dominada por homens a princípio, surpreende ao colocar como seu maior gênio uma mulher.

A mulher em questão é Cameron Howe (Mackenzie Davis), uma brilhante programadora que é, normalmente, a pessoa mais inteligente em qualquer sala que entre. Embora a inteligência de Cameron tenha sido colocada em evidência desde a primeira temporada da série quando é recrutada por Joe McMillan (Lee Pace) para trabalhar no projeto de um computador novo, é apenas quando ela e Donna Clark (Kerry Bishé) dão início ao próprio negócio que podemos entender a dimensão do brilhantismo da personagem e como é ser uma mulher trabalhando com tecnologia.

O seriado é totalmente ficcional — apesar de Joe McMillan soar muito como Steve Jobs em alguns momentos — e peca em algumas sequências ao adicionar à trama tecnologias ainda não existentes na época em que se passa, mas isso é o de menor relevância, principalmente agora que a série avança em sua terceira temporada e explora com muito mais propriedade o drama de ser mulher e trabalhar com tecnologia. Não posso falar com conhecimento de causa visto que minha área é outra, mas é sabido que mulheres precisam conquistar seus espaços em ambientes dominados por homens esforçando-se muito mais no processo — e a área tecnológica é um desses ambientes. E é exatamente isso o que mostram os episódios mais recentes de Halt and Catch Fire que soube se reinventar e criar uma trama apropriada para o momento que vivemos.

Ao abrir uma empresa, Cameron e Donna, — que é uma engenheira da computação brilhante e traz o foco que Cameron precisa para a empresa — além de terem que lidar com as dificuldades intrínsecas de um negócio próprio, também precisam aprender a navegar em um ambiente machista e que não sabe lidar com mulheres. Isso fica bastante visível quando, ao transferir a Mutiny (a empresa das duas) (adoro esse nome) de Texas para São Francisco e precisarem recorrer a um empréstimos para ampliar seus negócios, as duas esbarram em um machismo palpável. Os homens por trás do bancos a que recorrem não estão interessados em suas ideias quando percebem que os líderes da empresa em questão são duas mulheres.

Não interessa se as ideias dessas duas mulheres são incríveis ou se elas estão pensando à frente de seu tempo, tudo o que os investidores enxergam quando olham para elas é seu gênero. Eles não se importam em saber que Cameron e Donna fundaram sozinhas uma empresa de tecnologia e que lutam diariamente para permanecerem inovadoras em seu ramo de trabalho. Eles apenas enxergam duas mulheres que não deveriam estar ali ou, se deveriam estar, é apenas com o intuito de diverti-los. Não os interessa saber que — dentro do mundo da série — elas criaram jogos interativos que evoluíram para um chat e um predecessor do eBay, os interessa apenas o fato que de Cameron e Donna não são homens.

É compreensível que a dupla está pedindo que os investidores coloquem uma grande quantia de dinheiro em um negócio arriscado (e visionário), mas a recusa não aconteceria se fosse, por exemplo, Joe McMillan a solicitar o empréstimo para tentar crescer no Vale do Silício. Na série, Joe é visto como alguém de carisma imenso, praticamente um messias da tecnologia, mas nós, que assistimos a cada um dos episódios, sabemos que ele não passa de uma figura muito bem montada. Joe se sobressaiu no ramo tecnológico valendo-se das ideias de outras pessoas — uma delas, no caso, é Gordon Clark (Scoot McNairy), marido de Donna — e não por suas próprias. Não quero menosprezar um para enaltecer outro (ou outras, no caso), mas dentro do contexto da série é assim que ocorre: Joe foi praticamente escorraçado de outras empresas mas, como homem, tem todo o apoio necessário para recomeçar. E assim o faz em grande estilo.

Halt and Catch Fire é uma história fictícia, mas uma história fictícia que dialoga diretamente com a nossa realidade. Um especial do coletivo Think Olga sobre tecnologia diz que, infelizmente, as experiências vividas por Cameron e Donna em uma série televisa que tem por pano de fundo os anos 1980, ainda são a realidade de mulheres que trabalham com tecnologia:

“Ser mulher é um desafio imenso. Ser mulher na área de tecnologia traz algumas dificuldades peculiares. Começa com a falta total de incentivo para que as meninas se envolvam com ciência e tecnologia, passa pela hostilidade que as estudantes dos cursos na área da computação encontram nas salas de aula e continua com um ambiente profissional misógino.”

Ainda com informações do Think Olga, somente 15,53% dos dos alunos de cursos relacionados à computação são mulheres79% das alunas dos cursos relacionados à Tecnologia da Informação desistem no primeiro ano e 41% das mulheres que trabalham com tecnologia acabam deixando a área, em comparação com apenas 17% dos homens. Muito se fala sobre a “predisposição” que os meninos têm para ciências exatas, enquanto meninas supostamente se sentiriam mais confortáveis nas humanidades, mas sabemos que esse é um pensamento equivocado. Meninos e meninas não decidem gostar dessa ou daquela matéria por causa de seu gênero, mas, muito diferente disso, passam a crer que essa ou aquela área do conhecimento é a “ideal” para eles por conta dos estímulos que recebem durante toda a vida. Como diz o especial do Think Olga, estereótipos culturais são poderosos e afetam, sim, o aprendizado das crianças. Crie uma menina com os mesmos brinquedos disponíveis para o meninos, os estimulem da mesma maneira, e as habilidades desenvolvidas por ambos será plural, não havendo separação em “coisas de menino” e “coisas de menina” quando decidirem com o que brincar ou a carreira que querem seguir.

No que se refere a Halt and Catch Fire ainda me restam alguns episódios para descobrir o que acontecerá com a busca pelo sucesso de Cameron, Donna e sua Munity. É certo que as duas não desistirão e vão continuar lutando como podem para ascender em um mundo que é totalmente contra elas. O que posso adiantar de positivo, mesmo sem ter assistido à season finale da terceira temporada, é que tem sido incrível acompanhar a saga dessas duas. Vê-las liderando uma empresa de tecnologia, buscando seu espaço e batalhando por seu reconhecimento é algo verdadeiramente inspirador. Cameron e Donna são mulheres completamente diferentes, mas que encontraram justamente nos pontos distintos entre elas a força de que precisavam para seguir com sua empresa. Cameron, sempre tão passional e explosiva, sem habilidades sociais, com sua mente brilhante e pensamento ágil, encontrou em Donna uma parceira de negócios sensata, inteligente e combativa que é capaz de percorrer com maior precisão um mundo que está predisposto a pensar menos delas por serem mulheres.

Halt and Catch Fire é uma série sobre tecnologia, mas que, com o passar dos episódios, se transformou também em uma série sobre mulheres. E se já é difícil encontrar mulheres, na vida real, em áreas tecnológicas, que dirá na mídia. Por essas e outras que a virada de foco de Halt and Catch Fire é super bem-vinda: não mais estamos presos, enquanto telespectador, nos dramas de Joe ou Gordon. O foco agora está todo em Cameron e Donna, e em como, juntas, estão dispostas a construir algo totalmente novo utilizando seus talentos da melhor maneira possível mesmo que o mundo, a priori, esteja totalmente contra elas.