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Grigg Harris e O Clube de Leitura de Jane Austen

Desde o dia em que abri meu primeiro romance de Jane Austen (Mansfield Park) meu envolvimento com o trabalho dela se tornou um caminho sem volta. Tornei-me fã e estudiosa de Austen, e junto com suas próprias obras, passei a procurar obras inspiradas pelas dela ou que tomam suas tramas como temática para o desenvolvimento de uma história contemporânea. Foi assim que cheguei a O Clube de Leitura de Jane Austen (2007), um longa-metragem escrito e dirigido por Robin Swicord, baseado no romance homônimo de Karen Joy Fowler, The Jane Austen Book Club, ainda sem tradução no Brasil. E, consequentemente, conheci Grigg Harris (interpretado por Hugh Dancy).

Normalmente classificado pelo público como um filme água-com-açúcar, O Clube de Leitura de Jane Austen é um romance que aborda a influência dos livros de Jane Austen nos leitores contemporâneos. A maior parte desses leitores são, sim, mulheres, tanto na realidade quanto na ficção, porém, a formação desse clube de leitura em particular acabou contando com um membro do sexo masculino. Embora na história do filme exista uma segunda intenção com a presença do Grigg ali, considero essa inclusão como uma pequena contribuição para a quebra do estereótipo de que livros escritos por mulheres, clássicos ou não, são exclusivamente “livros de menininha”.

Sem grandes ambições e reviravoltas, o filme é centrado nos dramas pessoais dos personagens e no modo como eles lidam com seus problemas enquanto têm as histórias de Jane Austen para guiá-los, influenciá-los e confortá-los.

Jocelyn (Maria Bello) é uma mulher madura que vive de forma independente na companhia dos cachorros do seu canil. Quando sua companheira canina de longa data falece, suas amigas, Bernadette (Kathy Bakere Sylvia (Amy Brenneman), resolvem que ela precisa de uma distração. Algumas noites depois, Sylvia descobre que seu marido está tendo um caso e pretende se divorciar dela para ficar com a amante, e Bernadette conhece uma professora de francês com problemas no casamento na fila do cinema e se oferece para confortá-la. A ideia do clube do livro surge, então, para fazer todas essas mulheres ocuparem suas cabeças com as histórias de Austen, e superar os próprios problemas com ensinamentos tirados do livro. Elas convidam Allegra (Maggie Grace), a filha lésbica de Sylvia para se juntar a elas, e o sexto e último membro, Grigg Harris, entra quando Jocelyn tem a ideia de arranjar outro companheiro para Sylvia, sua melhor amiga.

Grigg é um rapaz em seus trinta e poucos anos, empreendedor bem sucedido e muito bem humorado. Ele conhece Jocelyn em um centro de convenções e tenta chamar sua atenção, a princípio sem sucesso. No entanto, ao esbarrar com ele novamente, Jocelyn decide abordá-lo e o convida para fazer parte do clube do livro. Grigg se mostra interessado, mesmo não sendo o seu gênero literário preferido, graças à atração que sentiu por Jocelyn; ele vê no clube do livro uma oportunidade para se aproximar dela e conhecê-la melhor. Embora não seja o motivo mais nobre e que reconheça o valor dos livros somente, a disposição dele foi respeitosa.

A primeira reunião serviu para os membros se conhecerem e escolherem seus livros. A ideia era ler um livro por mês, totalizando seis reuniões que ocorreriam na casa de quem fosse responsável pelo livro da vez. Jocelyn escolheu ser a responsável por Emma, Sylvia por Mansfield Park, Grigg por A Abadia de Northanger, Bernadette por Orgulho e Preconceito, Allegra por Razão e Sensibilidade, e Prudie (Emily Bluntpor Persuasão; nessa respectiva ordem. A partir daí, o que se vê é uma série de falhas na recepção do clube do livro para com ele, bem como o preconceito inverso, que acontece com menos frequência, mas ainda é um indicativo da preocupante divisão de gêneros na literatura.

A primeira falha reside no fato de que, no início, as mulheres não achavam uma boa ideia ter homens no clube, já que eles não são o tipo que lê Jane Austen, tampouco compartilham seus pensamentos sobre a leitura. Segundo, elas falham em disfarçar a perplexidade diante da falta de conhecimento de alguém que acabara de ser introduzido ao assunto — um “virgem” de Austen, por assim dizer. Terceiro, a prepotência de algumas delas em invalidar as cruas opiniões dele poderia ter sido extremamente desencorajadora.

Exemplificando: no primeiro encontro do grupo, Grigg apareceu entusiasmado com um volume único achando que os livros de Jane Austen eram uma série, e quando apontou para os títulos na lombada e perguntou inocentemente “Essa é a ordem em que a gente os lê?”, Jocelyn disse que não, eles não eram continuações um do outro, enquanto as outras trocavam olhares perplexos. Ele foi julgado durante o começo com bastante sutileza, especialmente quando tentou relacionar a relação de Edmund e Fanny em Mansfield Park com o inverso da relação de Luke e Leia em O Império Contra-Ataca. E tudo bem que são universos distantes, mas assimilar uma informação nova com a ajuda de outra com a qual estamos familiarizados é uma tática inteligente para se acostumar a qualquer novidade.

Na terceira reunião do grupo, com A Abadia de Northanger em pauta, Grigg já demonstra um conhecimento mais consistente sobre a obra. A essa altura, ele descobriu por si que os livros de Jane Austen não são “livros de menininha”, e que as jornadas das personagens vão além do amor e questões matrimoniais; cada heroína precisa transcender no processo de autoconhecimento sem perder a conexão com os costumes e o contexto social em que estavam inseridas. É uma mudança deveras gratificante de ver, ainda mais se formos considerar a tendência do senso comum.

Certa vez, nas minhas tentativas de aprofundar meus conhecimentos literários, estava folheando um livro teórico intitulado A Cultura do Romance, organizado por Franco Moretti e publicado pela editora Cosac Naify. O livro é uma extensa compilação de ensaios minuciosos sobre o gênero romance de vários autores. E eis que no prefácio, “É possível pensar o mundo moderno sem o romance?”, escrito por Marcos Vargas Llosa, deparei-me com o seguinte trecho:

“É verdade que a literatura acabou por se tornar, cada vez mais, uma atividade feminina: nas livrarias, nas conferências ou nas readings dos escritores e, naturalmente, nos departamentos e nas faculdades em que se estuda literatura, as saias ganham das calças de goleada. A explicação que disso se dá é que, na classe média, as mulheres leem mais porque trabalham menos horas que os homens, e que muitas delas tendem a considerar-se mais justificadas do que os homens quanto ao tempo dedicado à fantasia e à ilusão.” (LLOSA, 2009, p. 20)

O intuito do prefácio era persuadir o leitor a acreditar que a literatura não é essencialmente um lazer, o que dirá um lazer exclusivamente feminino, mas um meio de compreender o mundo, sua origem e suas diversas formações. O que Jane Austen constrói em seus romances é justamente o retrato de uma época, e o fato de suas histórias serem protagonizadas por mulheres e retratarem seus anseios é o diferencial que a coloca à frente de seu tempo. A ideia de que tais enredos estão além dos interesses masculinos é extremamente equivocada, para dizer o mínimo.

Por isso, não digo que Grigg Harris merece uma estrelinha dourada por seu feito — vale notar que, no filme, o caminho inverso também é percorrido: Jocelyn se recusava a ler os livros que Grigg recomendara para ela, acreditando que ficção científica se tratava de “alienígenas em naves espaciais” sem ao menos considerar a variedade de abordagens dentro do gênero e o fato de que grandes títulos foram escritos por mulheres —, mas ele serve como um dos raros exemplos de personagens na ficção que foram maiores do que o próprio orgulho e mantiveram a mente aberta na hora de adentrar um universo desconhecido desconsiderando rótulos e estereótipos.

4 comentários

    1. O livro é mais completo do que o filme em algumas passagens, mas na falta dele (o livro) aqui no Brasil, o filme por si só se torna suficiente. É um dos meus favoritos!

  1. Entendo bem a situação pela qual ele passou. Eu nunca tive problemas em ler um livro dito como “para mulheres”, mas a reação dos outros costuma ser boba. Me lembro principalmente da época que era lançado a saga Crepúsculo e eu os lia compulsivamente.

    Arte em geral não deveria ser tratado desse jeito. Música, livros e filmes, por mais que tenham um certo público alvo, não deveriam servir para discriminar ninguém. Muitos livros de ficção-científica, por exemplo, abordam viagens no tempo, inteligência artificial e evolução humana como temas para abordar outros aspectos, principalmente de cunho filosófico e romântico. Mas as pessoas acha que você tem que ser um nerd/geek pra ler algum livro desses.

    Ainda me faltam dois livros da Jane Austen para ler, existem grandes spoilers no filme sobre os livros ou não tem problema de assistir o filme sem ter terminado todos os livros?

    1. Estereótipos literários é algo que deveria ser abolido – afinal, as histórias estão ali para quem estiver disposto a lê-las. Deveria ser simples assim, mas, infelizmente não é. É engraçado ver como homens são ridicularizados por lerem “livros de mulherzinha”, enquanto as mulheres são elevadas com surpresa por lerem “livros que não são de mulherzinha”. Como se fôssemos intelectualmente inferiores ou algo assim. Concordo com você: a arte não deveria ser tratada dessa forma.

      E não há problema algum em assistir ao filme sem ter lido todos os livros. Eu mesma o vi quando faltam uns três romances para mim, mas como as cenas de discussão são breves, não senti que o filme estragaria as minhas futuras leituras nem tive dificuldades em acompanhá-lo. Vá em frente! 🙂

      Obrigada pelo comentário.

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