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A Garota-Corvo: quanto sofrimento um ser humano pode aguentar?

Quando vi que a Companhia das Letras lançaria no Brasil o thriller psicológico A Garota-Corvo, logo fiquei interessada: a trama do livro é descrita como sombria e complexa, além de ter por cenário Estocolmo, cidade gelada que nos trouxe por meio da Trilogia Millenium, de Stieg Larsson, uma das personagens femininas mais incríveis da literatura: Lisbeth Salander. As críticas sobre o livro sempre frisavam a semelhança entre ambas as obras, além de enaltecer o fato de que as terras escandinavas sempre conseguem produzir o que há de melhor na literatura de suspense. Com todas essas informações pesando na balança, pensei comigo: não tem como esse livro dar errado. Ou tem?

Escrito pela dupla de autores Jerker Eriksson e Håkan Axlander Sundquist, que assinam o livro com o pseudônimo Erik Axl Sund, a trama de A Garota-Corvo tem início quando a detetive superindentente Jeanette Kihlberg atende a um chamado: o corpo de um menino foi encontrado em um parque da cidade de Estocolmo em condições terríveis, indicando que a criança sofreu brutalmente antes de morrer. A detetive é quem lidera a equipe de investigadores e para desvendar as condições em que se deu o assassinato e quem foi o autor do crime, ela precisa lidar com um promotor apático e sem paixão além de uma força policial que se apega com força à burocracia, negando à Jeanette os recursos necessários para mover a investigação adiante, afinal, quem se importa com uma criança imigrante assassinada e brutalizada?

“Com o passar dos anos, aprendeu a não descartar o que parecia inverossímil. Muitas vezes, quando a verdade vinha à tona, a ficção era superada pela brutal realidade.”

Quando mais dois cadáveres de crianças são encontrados em situações similares ao do primeiro corpo, fica claro que um serial killer está por trás de todas as mortes. Jeanette Kihlberg está mais certa do que nunca de que precisa lidar com os casos com agilidade, tentando impedir que mais crianças imigrantes desapareçam e sejam mortas de maneira cruel. Para tanto, Jeanette entra em contato com a psicóloga Sofia Zetterlund, especialista em tratar crianças que sofreram violências e abusos, para tentar construir o perfil do agressor. O que nenhuma das duas mulheres esperava é que esse contato as levasse a entrelaçar suas vidas muito além do âmbito profissional, desenvolvendo um relacionamento inesperado e baseado em meias verdades.

Não é fácil para Jeanette se aproximar da verdade que cerca o caso dos meninos mortos e aos poucos a detetive mergulha em uma teia de complexas relações da sociedade sueca, destrinchando casos estarrecedores de pedofilia, abusos sexuais e incestos, o que só revela para a detetive os cantos mais escuros e sombrios da mente humana. Não posso negar que o livro prende a atenção por um momento, visto que os autores conseguem entregar uma trama inicial coesa, com personagens femininas inteligentes e interessantes que são a força motriz de toda a história, mas o desenvolvimento desanda quando Erik Axl Sund começa a inserir sub-tramas após sub-tramas, viajando entre presente e passado, para além das motivações de dezenas de personagens, transformando a narrativa em uma sequência de cenas arrastadas e cansativas. A Garota-Corvo possuía o potencial de ser, sim, “um thriller psicológico épico”, mas os autores se atrapalharam com uma trama megalomaníaca, transformando um início promissor em um desenvolvimento lento e um final preguiçoso.

“É possível ter maldade quando não se sente culpa? (…)
Ou esse sentimento é a condição da maldade?”

As sub-tramas, a princípio, parecem não ter ligação alguma entre si, mas aos poucos os pontos vão sendo conectados, personagens interligados e o quebra-cabeças maior — que possui uma imagem bizarra e assustadora por entre suas peças — é desvelado na frente dos olhos do leitor. Confesso que me perguntei por boa parte das quase 600 páginas aonde Erik Axl Sund pretendia chegar com tantas idas e vindas, e vencer o cansaço da trama arrastada era o que me separava da resolução do crime que, entretanto, se dá de maneira insatisfatória. A Garota-Corvo possui uma história interessante que, talvez, na mão de outros autores, pudesse ter sido melhor desenvolvida, mas o duo Erik Axl Sund peca ao tentar abraçar todos os recônditos da psiquê humana de uma vez, se perdendo no processo. Ao mesmo tempo em que lidamos com os assassinatos das crianças sem identidade, também precisamos atravessar a nado um mar revolto com cenas de pedofilia e abuso sexual entre famílias da alta sociedade sueca e um sem fim de bizarrices. Não é que um autor precise focar em apenas um tema escabroso por vez, mas em alguns casos — e isso se aplica à A Garota-Corvo — menos é, inegavelmente, mais.

O que salva parte da trama, no entanto, são as duas personagens femininas principais. A investigadora Jeanette Kihlberg luta com unhas e dentes para se provar dentro da polícia sueca, movendo montanhas para dar continuidade a uma investigação para a qual ninguém dá a mínima, e se esforçando para que os assassinatos das crianças imigrantes sejam resolvidos. Enquanto o promotor de polícia está mais preocupado com a própria carreira do que com as crianças sem identidade, é Jeanette quem permanece firme em sua investigação mesmo com o corte de recursos financeiros e pessoal qualificado. A construção de Jeanette enquanto mulher é muito importante para que a trama de A Garota-Corvo tenha brilho em alguns momentos: é por meio da detetive que acompanhamos o drama da mulher que trabalha e “precisa” estar presente em casa para o marido e o filho, e como isso reflete no relacionamento dela com ambos. Enquanto se empenha em suas investigações, não é raro Jeanette sentir culpa por não estar com a família em casa, mas ela sabe que é a única pessoa minimamente preocupada com os meninos assassinados — e por eles, mas também por si mesma, ela continua.

“Um dia se descobre que o que se chamou de vida era apenas um piscar de olhos. (…)
A vida é um bocejo quase imperceptível. Acaba tão rápido que mal se tem tempo para notar que começou.” 

A psicóloga Sofia Zetterlund, por outro lado, parece levar uma vida normal e sem grandes traumas, mas até sua história tem mais nuances do que deixa transparecer em um primeiro momento. Trabalhando em seu consultório, atendendo de pessoas que realmente precisam de ajuda a estrelas de televisão entediadas, Sofia sente que só faz a diferença quando trabalha com as crianças — e é esse viés de seu trabalho que a coloca em contato com Jeanette Kihlberg e a investigação dos garotos assassinados. Sofia é uma personagem dúbia que não se deixa revelar por completo por boa parte da narrativa; enquanto acompanhamos seu dilema com o namorado que não quer levar o relacionamento para um outro nível e as memórias do ex-marido, somos surpreendidos durante a leitura com uma Sofia de muitas camadas, verdades e mentiras. A psicóloga é, de longe, a personagem mais interessante e cativante de A Garota-Corvo e o livro só teria a ganhar se nos desse mais sobre ela do que sobre as outras sub-tramas menos interessantes. Sofia é uma personagem fascinante e de muita força, assim como Jeanette, mas as duas não conseguem segurar todas as expectativas que a trama do livro mira, mas não alcança.

Ao que parece, Jerker Eriksson e Håkan Axlander Sundquist tentaram demais serem o próximo Stieg Larsson e se perderam no meio do caminho. A Garota-Corvo pode afastar os leitores mais empáticos — e é com toda a sinceridade que digo que algumas passagens são difíceis de ler ou digerir, e isso quem diz é uma fã do Hannibal Lecter de Thomas Harris — ou aqueles que não tem muita paciência para desembaraçar o novelo de lã que é a trama do livro, mas aqueles que chegarem ao final, estejam certos de que uma reviravolta está reservada; ainda que o plot twist não tenha sido um dos mais inspirados ou pautado em motivações verossímeis. De maneira geral, A Garota-Corvo pode entreter por algum tempo, mas seu enredo emaranhado se torna cansativo, esgotando quem se aventura a ler principalmente por conter uma miríade de horrores que fará até os mais fortes questionarem qual é a necessidade de tudo isso. É sabido que o ser humano pode mergulhar fundo nas profundezas do absurdo, mas o que Erik Axl Sund mostra em seu livro excede qualquer nível considerado saudável — ou sensato.

O exemplar foi cedido para resenha por meio de parceria com a Companhia das Letras.


** A arte do topo do texto é de autoria da nossa colaboradora Carol Nazatto. Para conhecer melhor seu trabalho, clique aqui!

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