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Gabrielle Aplin, privilégios e meritocracia

Era uma vez uma garota branca, de classe média, nascida em Bath, uma cidade no sudoeste da Inglaterra que só ouvi falar por conta dos livros da Jane Austen, e criada em um pequeno vilarejo não tão longe dali. Seu nome é Gabrielle Aplin.

Aos onze anos ela ganhou o primeiro violão, e sua carreira musical basicamente começou aí. Anos mais tarde, ela estudou música na faculdade e ficou conhecida quando começou a publicar covers de músicas famosas no seu canal no YouTube. Depois disso, a cantora começou a lançar músicas de sua composição, lançando por conta própria EPs sob seu próprio selo (Never Fade Records), que mais tarde começou a lançar também trabalhos de outras artistas.

No Brasil, a artista ficou conhecida pela música “Home”, que fez parte da trilha sonora da novela global Totalmente Demais, e até fez uma aparição bem aleatória no capítulo final da novela. O que muita gente não sabe é que essa música foi lançada mais de cinco anos atrás, quando a cantora tinha 18 anos de idade, e desde então ela lançou dois álbuns muito bons e mais alguns EPs.

À parte do talento óbvio da Gabrielle, precisamos falar sobre como ela é a representação perfeita da juventude privilegiada da qual muitas de nós fazemos parte.

Gabrielle Aplin

Muito provavelmente, Gabrielle Aplin não estaria no estágio da carreira que se encontra hoje se não fosse muito talentosa. As músicas são realmente ótimas, com uma sonoridade bem marcada que se aproxima do folk e letras que representam muito bem essa parcela restrita da população mundial.

Boa parte das músicas fala de amor, mas muitas vezes não é o amor da forma que estamos acostumados a ouvir na música pop. As letras dela têm sim sua porção apaixonada e idealizada do amor intenso da juventude que escolhemos acreditar que vai durar para sempre (mesmo quando não dura mais de cinco minutos), mas também tem muito do cinismo e inquietude que marca a nossa geração.

“I said it’s not your fault, I lied
And I don’t have time to watch you cry
And I’m thinking Romeo must die
Ai, ai, ai…”

“Eu disse que não era sua culpa, eu menti
E eu não tenho tempo para te assistir chorar
E eu estou pensando que Romeu deve morrer
Ai, ai, ai…”

De certa forma, não deixa de ser um amor mais realista do que estamos acostumados a ver retratados na arte que consumimos, sejam em que meio for. As músicas da Gabrielle nos colocam alternadamente nos papéis de “quem se importa mais” e “quem se importa menos”, que ajudam a criar a ilusão de maior ou menor poder dentro de um relacionamento. Ao mesmo tempo, ela também se coloca como sujeito que “não está aqui para te fazer se sentir bem, para secar suas lágrimas e se desculpar por você e que “se sente tão melhor agora que você não está por perto”.

Além disso, em diversos momentos ela foge do tema amor para se dedicar a outros temas importantes na vida dessa parcela da geração do milênio. A necessidade de se descobrir, de ganhar ao mundo — ao mesmo tempo em que bate a saudade de casa —, a falibilidade de todos nós como seres humanos, o medo do desconhecido, crises existenciais e mais uma longa lista de questões.

“I’m ready to question, Oh
That life is a blessing
Give me a sign, am I’ll following blind?
Is there any one listening?
Oh, Is there anyone listening?
I don’t know”

“Estou pronta para questionar, Oh
Se a vida é uma bênção
Me dê um sinal, estou andando às cegas?
Tem alguém ouvindo?
Oh, tem alguém ouvindo?
Eu não sei”

Tudo isso é ótimo, mas precisamos lembrar que muitas vezes só é possível se partimos de uma situação de privilégios.

Gabrielle Aplin

Sim, Gabrielle, como nós, é mulher em uma sociedade machista e vai sofrer essa opressão até o fim da sua vida. Ao mesmo tempo, ela é uma mulher branca dentro dos padrões estéticos e boa parte do que ela canta só é aplicável dentro dessa nossa realidade privilegiada. Porque, entre todas as preocupações de grande parte da população mundial, ela ganhou na loteria da vida ao nascer com as variáveis certas para poder se preocupar e cantar sobre relacionamentos e questões existenciais.

Talvez mais importante que todo o talento que ela tem — e que não estou negando —, ela teve a oportunidade de se dedicar a uma carreira na música e estudar o assunto justamente por ser uma garota de classe média de um país rico. Se não fossem todas essas características, talvez ela nunca tivesse conseguido passar da internet para uma carreira internacional mainstream na indústria musical tradicional. Talvez ela não tivesse nem acesso à internet.

Reconhecer tudo isso não é negar os méritos dela, é reconhecer que mérito não é um critério justo. Que meritocracia não leva em conta os privilégios individuais, não leva em conta que os pontos de partidas de cada um de nós são diferentes para que a vida seja uma “competição” igualitária. Provavelmente existem infinitas Gabrielles espalhadas pelo mundo que nós nunca vamos conhecer, porque não tiveram as mesmas sortes que essa Gabrielle.

É impossível abrir mão dos privilégios, porque eles são muito maiores do que nós, mas é possível — e importante — reconhecer que eles existem. Nenhuma das reflexões acima fez com que eu gostasse menos das músicas da Gabrielle. Inclusive, continuo ouvindo enquanto escrevo. Como pessoa com muitos dos mesmos privilégios que ela, são músicas que me representam. Mas faço isso sabendo que a relevância social de tudo isso é muito reduzida, e que para fazer uma diferença real no mundo, é preciso ir além.

2 comentários

  1. Eu sou fanzona do site de vocês, mas acho que nesse texto em particular vocês pesaram a mão.
    Se o texto fosse mais voltado para privilegio e meritocracia realmente eu acho que ficaria muito legal, mas do jeito que foi posto achei meio desrespeitoso ao talento desta artista em particular, por mais que você diga que não seja isso. Do tipo “ela é talentosa, mas ela é branca e rica né?” a gente pode tentar empoderar as outras sem diminuir essas não pode? Ou você incluiu essa questão só pra dar mais ibope no texto, aproveitando que é polêmico.
    Bom, de novo, eu sou super fan do site, só desta vez eu não concordei com a abordagem.

    1. Oi, kamii. Sinto muito que você tenha se sentido assim. Eu deixei claro várias vezes durante o texto que não é uma crítica ao talento da Gabrielle, de quem inclusive eu gosto muito, mas é uma realidade inegável.
      A questão é que o site não é sobre a cultura pop exclusivamente, ele tem esse viés problematizador, e nós acreditamos que é sempre válido usar os ganchos que aparecem, como eu fiz nesse texto. Todo momento é apropriado para analisar os próprios privilégios, e é sempre importante entender que o fato de ser privilegiada não tira o mérito — mas justamente que a meritocracia é uma concepção muito falha.
      Ficamos muito felizes que você goste do site, e por aqui você sempre vai ter a liberdade de discordar do que quiser.
      Beijos.

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