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Sobre pessoas, Casamento de Verdade e #LoveWins

Talvez você não lembre o que estava fazendo exatamente um ano atrás, mas por uma combinação de fatores aleatória do destino, eu lembro. Era uma sexta-feira, eu estava de licença médica do trabalho e em semi-isolamento, e saí para almoçar no shopping com o meu pai. Na praça de alimentação, enquanto esperava por ele, alguma coisa na televisão chamou a minha atenção: a Suprema Corte americana tinha acabado de proibir os Estados norte-americanos de proibirem casais do mesmo sexo de se casarem. Tinha bandeiras coloridas, um filtro do arco-íris coloriu o Facebook, #LoveWins nos trending topics. Festa. Muito mais festa do que com uma decisão brasileira muito parecida do STF quatro anos antes.

Uma semana e um dia depois, eu estava em Paraty, curtindo o frio, a chuva e a FLIP (Feira Literária de Paraty) com uma amiga, quando alguém menciona algo sobre um suposto casamento entre a Rory (Gilmore, de Gilmore Girls) e a Izzie (Stevens, de Grey’s Anatomy). Dois eventos da minha vida sem nenhuma relação, mas que no fim estão relacionados.

Claro que quem se casou não foram Rory e Izzie, afinal as duas moram em universos ficcionais diferentes, e não foi isso que minha fonte quis dizer. Mas em outra vida, Alexis Bledel e Katherine Heigl se casaram — melhor dizendo, Kitty e Jenny se casaram. O filme é Jenny’s Wedding, traduzido para o português como Casamento de Verdade, que seria lançado em 10 de julho de 2015.

Casamento de Verdade teve uma produção modesta e nunca chegou a ser propriamente lançado no Brasil, embora esteja disponível para assistir on-line. Não se trata, contudo, de um romance, mas de uma dramédia (muito mais drama do que comédia) familiar, focada principalmente em Jenny (Heigl) e sua família. É um filme de muitos sentimentos difíceis e fortes.

A abertura do filme reúne várias imagens tradicionais de casamentos: flores, decorações, roupas, sapatos, acessórios, pessoas — noivos e suas respectivas noivas. Todas as imagens tradicionais que são enfiadas em nós, crias da família tradicional, desde o nascimento, e que torna impensável o ato de não querer se casar. Jenny é como muitas de nós: filha de uma família certinha, bem estruturada e cheia de amor. Ela sofreu essa lavagem cerebral tanto quanto nós. Ainda assim, Jenny não pensa em se casar porque nunca se viu representada por essas imagens e um casamento para ela não parece ser uma opção, mas ninguém da sua família sabe disso. “Ela está culpada”, adivinha o pai desde o começo — fica a questão se é culpada por mentir ou culpada por ser quem ela é.

Casamento de Verdade

Jenny é uma menina perfeita, a filha perfeita, a pessoa perfeita. É autossuficiente, boa na sua profissão, nunca deu trabalho. Queridinha do pai e da mãe e alvo do ciúmes eterno da irmã mais nova, seu único defeito é ser solteira, mas não importa o que a família faça, ela nunca aceita se envolver com nenhum dos pretendentes que eles lhe apresentam. Ela é muito fechada, eles reclamam, “não quando era pequena”, a família lembra. Talvez isso seja só o que acontece quando não se tem espaço para ser quem se é.

Então, em uma conversa com o pai, Jenny decide que também quer se casar, que tem o direito de se amarrar simbolicamente à pessoa que ela ama. Ela vai para casa e pede sua companheira de cinco anos, Kitty (Bledel), em casamento. Jenny não estava no armário, ela sempre soube quem era e nunca fez questão de esconder de ninguém — exceto da família e do círculo social deles —, e não é porque ela infringiu um dos pilares da sociedade tradicional — a heterossexualidade compulsória — que ela não tem o direito de sonhar também com um grande casamento tradicional em todos os outros sentidos.

Essa é apenas a introdução da história: o próximo passo é contar para a família e lidar com as consequências. É nesse momento que a trama realmente começa e o que vemos é cada uma das personagens passar, individualmente, pelos cinco estágios do luto descritos por Elisabeth Kübler-Ross (negação, raiva, barganha, depressão e aceitação), do seu próprio modo e no seu próprio tempo. O que fica muito claro é que, ainda que toda a personalidade de Jenny continue a mesma, a revelação é, a princípio, um tipo de morte para a família. Eles não a chutam para fora, não partem para a violência física, não cortam relações, mas simbolicamente ela — ou a imagem que eles faziam dela — morre.

” — Eu pensei que eu a conhecesse, mas eu não sei nada sobre ela.
— Ela é a mesma pessoa, ela só deixou algumas coisas de fora.”

De uma hora para a outra, Jenny parece deixar de ser a pessoa que ela sempre foi e para ser a filha lésbica. É isso que o estigma faz: pega uma característica de uma pessoa e resume toda a sua personalidade a isso. Os pais continuam a amar a filha, mas é como se, naquele momento, ela se transformasse em uma pessoa completamente diferente, uma estranha; eles não sabem mais como falar com ela, parece que nada nunca mais vai ser igual. É a simplificação máxima do ser.

Mesmo que a relação entre Jenny e Kitty não tenha muito espaço na história, a força do relacionamento nunca deixa dúvidas. Mesmo com todas as questões com a família, que é uma das partes mais importantes da vida de Jenny, o relacionamento com Kitty nunca fraqueja, nunca é questionado. E isso é bom também, considerando que a esmagadora maioria dos relacionamentos homoafetivos na cultura pop são conturbados e precisamos mostrar que isso não é um pré-requisito.

Ainda que a situação com os pais não a deixe feliz, no contexto geral Jenny nunca esteve tão feliz. Se esconder do mundo não é agradável, não é fácil, não é algo que se faz por qualquer motivo que não seja o medo. Elas têm um relacionamento lésbico estável e feliz, em contraposição direta e escancarada ao casamento heterossexual falido e completamente infeliz da irmã mais nova. E, ainda assim, muitos afirmam abertamente que seria melhor se ela estivesse em um relacionamento com um homem casado.

A mensagem do filme é bem positiva e o trabalho da diretora e roteirista Mary Agnes Donoghue não deixa nada a desejar. Eventualmente toda a família chega ao último estágio — aceitação —, e fica claro que a sexualidade de uma pessoa é apenas um aspecto do que ela é. É um aspecto importante, mas não o único. E definitivamente não constitui uma falha de caráter. Então por que o casamento delas deveria ser menos verdadeiro do que qualquer outro?

2 comentários

  1. ‘Casamento de Verdade’ é um filme sensível e emocionante, que consegue descascar algumas das várias camadas do amor de maneira realista e franca. Katherine Heigl é um das minhas atrizes preferidas, acho que ela é completamente talentosa, vi sua atuação em Paixão Obsessiva e houve uma cena que me comoveu. Eu vi que vão transmiti-la em TV deixo o link com a informação se a querem ver.

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