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Extraordinário: porque todos nós vencemos o mundo

“Todo mundo deveria ser aplaudido de pé pelo menos uma vez na vida, porque todos nós vencemos o mundo”. Quem disse isso foi Auggie Pullman (Jacob Tremblay), protagonista de Extraordinário, primeiro livro e best-seller infantojuvenil da escritora norte-americana R.J. Palacio, que ganhou adaptação para o cinema no fim de 2017, com direção de Stephen Chbosky (de As Vantagens de Ser Invisível). Auggie certamente sabe algumas coisas sobre vencer o mundo: ele nasceu com uma síndrome genética cuja principal sequela é uma severa deformidade facial, que lhe rendeu uma extensa coleção de intervenções cirúrgicas no seu currículo de garoto de 11 anos. O que faltava nesse currículo, curiosamente, era algo muito comum na vida da maioria das crianças: a vida escolar. Por causa de seus problemas, os pais de Auggie, Isabel (Julia Roberts) e Nate Pullman (Owen Wilson), optaram por educá-lo em casa e foi assim que ele cresceu, tendo sua mãe como professora e nenhum colega na carteira ao lado. A história começa quando a mãe decide que já está na hora de ele criar asas e enfrentar essa nova fase, e então matricula o garoto em uma escola pela primeira vez, para começar o ensino fundamental II.

Que os anos escolares são meio ingratos, todos sabemos. Reza a lenda que quem nunca sofreu bullying foi um praticante dele — muitas vezes ao mesmo tempo, pois o perfil de boa parte dos agressores costuma incluir também ser vítima de algum tipo de agressão, seja na escola ou em casa. Se crianças “comuns” passam por isso, não é difícil imaginar por quais perrengues vai passar uma que tem sua diferença literalmente estampada na cara. É sem muita certeza, tentando encontrar coragem e munido de um capacete de astronauta que Auggie encara, então, seu primeiro dia de aula.

Não é surpresa para ninguém que a experiência de Auggie na escola seja difícil e dolorosa. Ele enfrenta olhares curiosos, risadas maldosas, brincadeiras de mau gosto e, apesar de ser bem humorado, inteligente e bacana, o garoto acaba isolado dos outros colegas, sempre lanchando sozinho. As crianças chegam a criar uma história de que o menino tem uma praga e que qualquer pessoa que encoste nele vai se contagiar e ficar com o rosto do mesmo jeito. O que se torna uma surpresa ao longo da trama, tanto do livro como no filme, é que ela não cai no lugar fácil de ser mais uma história motivacional, daquelas que se valem da dor alheia, seja ela real ou fictícia, para construir um espetáculo cujo único objetivo é ensinar uma lição de vida para quem está vendo, mostrar que existem vidas piores e provocar um tipo de gratidão que ninguém assume, mas pensa: minha vida é complicada, mas pelo menos não sou uma criança com rosto deformado indo para a escola pela primeira vez.

O que R. J. Palacio constrói com muita sensibilidade é uma narrativa com múltiplos pontos de vista para contar a história pelos olhos de todas as pessoas envolvidas, mostrando como é a relação de cada um com Auggie, como o problema dele afetou suas vidas e também quais as batalhas cada um enfrenta todos os dias para além dele. Se é verdade que todos vencemos o mundo, e Auggie certamente venceu um bocado dele, somos apresentados também à vida de sua mãe, que abandonou sua carreira como professora e artista para se dedicar totalmente aos cuidados do filho. Tão difícil quanto esse gesto também é a decisão de mandá-lo para a escola, o que significa que Isabel terá que reinventar sua vida agora que não é mais mãe, professora e enfermeira em tempo integral.

“Auggie é o sol, e todos somos os outros astros girando em torno dele.” Via (Izabela Vidovic), sua irmã mais velha, foi a responsável por essa frase e por muitas outras passagens bastante sinceras ao longo da história. Apesar de amar o irmão, ela não mente ao dizer que sente falta da atenção que tinha dos pais quando não tinha outra criança em casa requerendo cuidados especiais. É através das palavras e dos sentimentos de Via que mais conseguimos chegar perto de sentir o impacto do que é ter sua vida alterada de repente pela chegada de um “filho especial” na família.

Para além disso, temos a chance de saber mais sobre a vida da garota em aspectos que não estão ligados ao seu irmão. Assim como Auggie está começando uma nova etapa, Via também está: é seu primeiro ano no ensino médio e ela foi deixada de lado por sua melhor amiga da vida toda, Miranda (Danielle Rose Russell), que resolveu mudar seu estilo durante as férias e andar com garotas mais populares. Para driblar a solidão, Via entra para o grupo de teatro da escola e ali descobre, além de um novo talento, o amor, já que é onde conhece seu primeiro namorado. Ela decide não contar a Justin (Nadji Jeter) sobre seu irmão; com o fim de sua amizade com Miranda, ele é a primeira pessoa de sua vida que não sabe nada sobre Auggie e com isso ela tem a chance de, pelo menos no começo, ser o seu próprio sol. Não é o gesto mais maduro do mundo, e ela logo se arrepende e corrige a conversa, mas a história mostra que devemos pensar duas vezes antes de julgá-la.

A história de Via, aliás, é um dos arcos mais interessantes de Extraordinário, pois apresenta a uma menina cuja biografia não conta com nada extraordinariamente ruim — com o perdão do trocadilho — e ainda assim é acompanhada por uma enorme carga de tristeza e solidão que não podem ser menosprezadas. Com os pais sempre ocupados e preocupados com Auggie, Via contava com o carinho e a atenção da avó, que era sua amiga e companheira, a pessoa que a colocava em primeiro lugar pois sabia que o neto mais novo já era prioridade na vida de muitas pessoas. Com sua morte, a garota se vê sem essa fonte de amor e atenção, e precisa lidar sozinha não apenas com o luto, mas também com as outras complicações normais de uma garota adolescente. São problemas “menores”, certamente, mas são os problemas dela e, como R. J. Palacio mostra muito bem, o sofrimento do irmão não cura ou alivia o seu.

Curiosidade: o filme não menciona diretamente, mas Isabel, mãe de Auggie, é brasileira e por isso Sonia Braga foi escalada para o papel da avó, e no filme há uma referência sutil ao preparo de uma feijoada. É um detalhe que provavelmente passará despercebido aos espectadores estrangeiros, mas para nós foi uma referência que mostra o cuidado da produção com os pormenores da história.

O livro e o filme retratam o período de um ano na vida dessas pessoas e mostram como elas vão sofrê-lo, vivê-lo e vencê-lo. Por conta de seu tom e de seu final feliz, não podemos deixar de questionar o quão otimista é a perspectiva construída por Extraordinário no que diz respeito à realidade de pessoas com deficiência ou diferentes, no geral. A youtuber Mariana Torquato, do canal Vai Uma Mãozinha Aí, levantou a bola em um de seus vídeos falando sobre a abordagem cor-de-rosa da história diante da experiência de alguém deficiente, forçando a barra ao colocar significados bonitos e profundos em coisas que não são legais. É um fato e até mesmo Auggie reconhece isso no livro, onde ele tem embates constantes com a própria condição que acabaram ficando fora do filme, uma das poucas falhas no roteiro assinado por Steven Conrad, que em sua adaptação também deixa de fora o fato que Auggie é deficiente auditivo.

Quando Auggie, por exemplo, está incomodado porque todos olham para ele o tempo todo, sua irmã diz que ele deve deixá-los olhar, afinal “quem nasceu para ser extraordinário nunca vai passar despercebido”. É lindo? É. A gente chora? Chora. Mas as pessoas nas ruas não olham para alguém que é diferente porque acham extraordinário, e sim por tantos outros motivos não tão belos e fantasiados. De qualquer forma, acreditamos que o filme tem muito mais acertos do que falhas ao escolher esse tom mais leve e poético, para marcar os telespectadores através da emoção e da delicadeza, oferecendo uma narrativa para essas pessoas cuja marca principal não é o sofrimento, o que é muito importante, principalmente pela obra ser originalmente destinada ao público infantojuvenil; se a barra fosse forçada para um lado mais pesado, talvez a mensagem não fosse transmitida tão bem.

Outro momento interessante que traz toda uma ressignificação é o dia do Halloween na escola. Você pensa numa festa de Dia das Bruxas como uma possibilidade de se fantasiar e se divertir, não é? Pois Auggie encara esse dia como a única possibilidade que ele tem no ano de ser uma criança “normal”, que passa despercebida no meio das outras, pois é uma ocasião que celebra a diferença e oferece uma armadura para quem carrega esse fardo diariamente. Com o rosto coberto por uma máscara, ele sabe que vai ter mais chances de ser aceito e interagir normalmente nas brincadeiras — mas o dia não acontece como o planejado porque, justamente por passar despercebido, ele acaba ouvindo seu melhor (e único) amigo concordando com o grupo de bullys que Auggie é bem esquisito, falando que só anda com ele por obrigação.

Se nós, adultos, já cometemos erros e/ou fazemos coisas com as quais não concordamos com o único objetivo de pertencer, a fase da infância e da adolescência é regada desse tipo de comportamento. Após esse dia, Auggie e Jack (Noah Jupe) vão encarar esse percalço em sua amizade e aprender um tanto com isso. Assim como faz com a família de Auggie, Extraordinário também nos permite ver a história do ponto de vista de Jack: através dela, descobrimos que o garoto é bolsista na escola e não é lá muito bom aluno, por isso aceita a ajuda de Auggie com os estudos e descobre que além de muito inteligente, ele também pode ser um ótimo amigo. Até mesmo Julian, o valentão da escola que é o cérebro por trás de todas a perseguição sofrida por Auggie, ganha uma chance de redenção em um livro só seu, O Capítulo de Julian, espécie de spin-off do original lançada por R. J. Palacio dois anos depois da publicação de Extraordinário. A mesma chance é dada a Miranda, que tinha tudo para ser vista como a grande rival de Via, a bitch da escola, mas é uma garota tão sozinha e insegura quanto a melhor amiga.

Extraordinário emociona e provoca reflexões não por romantizar o sofrimento de uma criança com o intuito de oferecer ao público uma experiência purificadora pela exploração da desgraça alheia. Sem apelação ou pieguices baratas, a história toca porque humaniza com sensibilidade cada um de seus personagens, validando suas experiências e pequenas ou grandes tragédias, numa ilustração daquele ditado de que é preciso ser gentil, pois todos estamos enfrentando alguma batalha, esteja ela estampada na nossa cara ou não. Estamos vivendo uma época truculenta, em que é fácil esquecer que por trás de nomes, avatares, textos, vídeos e opiniões existem pessoas e pessoas são complicadas. Pessoas são inseguras, assustadas e imprevisíveis e Extraordinário tira um tempo para aplaudir de pé cada um de nós por enfrentarmos essa confusão todos os dias, para nos permitir ser um pouquinho de sol e nos convidar a fazer o mesmo para quem está do nosso lado.

Extraordinário recebeu 1 indicação ao Oscar, na categoria de: Melhor Maquiagem e Penteado (Arjen Tuiten).

Texto escrito em parceria por Analu e Anna Vitória 

3 comentários

  1. Eu li o livro faz um bom tempo, e ele me emocionou tanto! Eu me lembro que fiquei apaixonada pela história e foi muito tocante conhecer o Auggie. Um dos trunfos na minha opinião é mostrar a visão dos outros personagens. Acho que esse é um dos pontos mais legais da história, e fiquei feliz que a adaptação nos cinemas conseguiu transmitir a mesma sensação que o livro passa.
    Resenha maravilhosa, btw <3

  2. Eu ainda não tive coragem de ir assistir o filme, mas li o livro. Na resenha (excelente, por sinal) a parte que me chamou mais atenção foi exatamente o que me deixou reflexiva: “se a barra fosse forçada para um lado mais pesado, talvez a mensagem não fosse transmitida tão bem.”
    Pensei muito nisso quando a imagem oficial do ator como Auggie foi anunciada. No livro ele parece ser tão mais deformado, na adaptação senti isso sendo mais sensível. Eu adoro essa leitura, indico sempre que posso porque puts… Faz pensar nas nossas atitudes em relação ao que pensamos ser fora do comum e como somos muitas vezes cruéis sem nem nos darmos conta disso.

  3. Vergonha! Tinham Alice Braga brasileira e fala muito bem inglês mas escolheram Julia Roberts racismo contra latinos.

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