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Entre versos e samambaia: o encontro de Elizabeth Bishop e Lota de Macedo Soares

Em 1951, saía do porto de Nova York um navio cujo destino era o Chile, e sua primeira parada seria no porto de Santos, em São Paulo. Dentro dele uma mulher, então com 40 anos, afastava-se de seu passado deixando-o na margem às suas costas. No horizonte, ela avistava um respiro em meio às lembranças que ainda ardiam como feridas abertas: a perda de seu pai meses após seu nascimento e, aos cinco anos, o distanciamento da mãe que, por não suportar a ausência do marido, sucumbe à dor e é internada em um manicômio. Órfã, a menina passa a infância em meio aos lares de parentes na Nova Escócia (Canadá) e em Massachusetts (EUA), um dos quais sofre abusos de um tio, caso que viria a ser relatado apenas anos mais tarde a sua psiquiatra Megan Marshall. Lembranças como essas, mesmo na vida adulta, invadem seu corpo em constantes surtos de eczemas e fortes ataques de asma alternados a episódios de depressão e alcoolismo.

“Que estranha você é, vista de dentro”

Ela, a mulher em meio aquele oceano, era Elizabeth Bishop, um dos maiores nomes da poesia norte-americana do século XX e que, naquele momento, precisava apenas se afastar da efusiva e competitiva cena literária nova-iorquina. Mas como afastar-se de si mesma? Suas lembranças são levadas entre os ossos de seu peito tanto quando sua enorme fragilidade emocional.

É falta de imaginação o que nos obriga a vir
a lugares imaginados, em vez de ficar em casa?

Ao ancorar com o navio SS Bowplate no porto de Santos, Bishop foi recebida por sua amiga e compatriota Mary Morse, hospedando-se na propriedade da namorada de Mary, a fazenda Samambaia, em Petrópolis (75 km do Rio de Janeiro). Ela ainda não sabia, mas o local passaria a ser sua morada. A estadia que planejava ser curta seria estendida após Bishop ser internada em um hospital em consequência de uma reação alérgica a um caju, como conta em uma entrevista publicada no livro Conversas com Elizabeth Bishop, organizado por Rogério Bettoni, e lançado pela editora Autêntica.

A anfitriã da fazenda, então namorada de Mary, era Maria Carlota de Macedo Soares ou apenas Lota, como era intimamente conhecida. Lota era uma mulher visionária, inteligente e que dominava várias línguas. Admiradora das belas artes, tornou-se arquiteta de forma autodidata, tendo feitos diversos cursos na década de 1940 no Museu de Arte Moderna de Nova York, nos Estados Unidos. Mesmo nunca tendo frequentado a universidade, Lota tornou-se um dos grandes nomes da arquitetura brasileira, fazendo escola no Rio de Janeiro. Sua formação solitária foi possibilitada por seu berço, pois era herdeira de uma ilustre família carioca. Entretanto, Lota mantinha uma relação difícil com seus familiares, especialmente com sua irmã, Marieta, que desaprovava sua orientação sexual e chegou a comentar em depoimento ao jornal O Globo pouco antes de morrer: “Mamãe aprovava qualquer maluquice de Lota. Foi a grande culpada por minha irmã ter sido daquele jeito, (…) metida a independente, mulher-macho (…)“.

Em pouco tempo, a poeta de delicados versos e a projetista de Samambaia apaixonaram-se, porém, o relacionamento de Bishop e Lota foi construído a partir do ocaso de outra relação. Lota separou-se de Mary para estar com Elizabeth Bishop. Este movimento diz muito sobre Lota, uma mulher muito segura de si, de personalidade expansiva e autoritária, o oposto de Bishop, tão tímida e introspectiva. A primeira orgulhava-se de seu trabalho, a segunda evitava falar em público e não tinha coragem de recitar seus próprios poemas. A união é um amor intenso: a fortaleza de seguro concreto funde-se com a insustentável figura de não pertencimento a lugar algum. E nessa fusão, moldam-se em suas singularidades. Uma muda a vida da outra. Lota dá raízes à Bishop, que estabelece morada no Rio; Bishop dá leveza à Lota, que passa a ser o endereçamento de vários de seus versos. Elas permaneceram juntas por 14 anos.

Às vezes, parece que só as pessoas inteligentes são estúpidas o suficiente para se apaixonar,
e que só as estúpidas são inteligentes o suficiente para se permitirem ser amadas.

Os anos vividos no sossego da fazenda Samambaia foram os mais afetuosos do relacionamento. Na época, Lota estava finalizando a construção de sua casa e presenteou Bishop com um estúdio no qual ela pudesse escrever seus poemas tranquilamente. Anos mais tarde, Bishop escreveria: “Nunca na minha vida alguém tinha feito um gesto daqueles por mim, e então aquilo simplesmente significou tudo“. Essa história de amor foi contada no filme brasileiro Flores Raras, dirigido por Bruno Barreto, em 2013. O longa-metragem é uma adaptação do livro Flores Raras e Banalíssimas, escrito por Carmen L. Oliveira e lançado pela editora Rocco. Tanto o livro quanto o filme, para além da relação de Bishop e Lota, tem como plano de fundo a história do Rio de Janeiro do período, abordando especialmente a construção e urbanização do Parque do Flamengo (o maior aterro urbano do mundo), projeto de Lota durante o governo de Carlos Lacerda (1960-1965). Não apenas essa obra e adaptação circunscrita o relacionamento amoroso da poeta e da arquiteta, o livro A Arte de Perder, escrito por Michael Sledge, lançado pela editora LeYa com tradução de Elisa Nazarian, também anseia por fazer esse retrato romantizado.

Há poucos registros de depoimentos de Lota sobre sua vida pessoal, ela era uma mulher reservada e avessa a fotos. A atriz Glória Pires, que interpreta Lota em Flores Raras, comentou em entrevista que “Lota era uma mulher extremamente masculinizada, mas feminina nos seus gostos. Enquanto trabalhava no aterro do Flamengo, fazia questão de almoçar com talheres de prata e porcelana inglesa”. Bishop, tendo sido também uma mulher muito discreta, sua vida pessoal recebeu poucos holofotes e foi pouco comentada por ela em vida; seu trabalho, por outro lado, sempre foi amplamente reconhecido, parte de sua produção foi escrita em solo brasileiro, no qual viveu por 20 anos entre idas e vindas aos EUA. “Nunca me senti uma exilada, mas também nunca me senti exatamente em casa“, disse a poeta ao Christian Science Monitor, em 1978, sobre o Rio de Janeiro.

Lota era ativa politicamente e, por pertencer à alta sociedade carioca, tinha diversos amigos influentes. Assim, a política permaneceu como debate constante em seu círculo social. Já Bishop, no Brasil, vivenciou o último governo Vargas, documentou o suicídio do presidente, viu a ascensão de JK e a queda de Jango Goulart. Entretanto, o interesse político nunca foi seu tema central, o que não significa que ela não tenha lançado sua percepção sob as contradições brasileiras, em poemas como “Cadela Rosada” (“Pink Dog”, no original), por exemplo, ela usa de sutileza e perspicácia para fazer uma sátira social explícita do retrato dos pobres no ambiente urbano.

“Você não sabia? Deu no jornal:
pra resolver o problema social,
estão jogando os mendigos num canal.”

Foi também no Brasil que Bishop recebeu o anúncio de que tinha ganhado o Prêmio Pulitzer, em 1956, por seu livro Poems: North & South – A Cold Spring (Poemas: Norte & Sul – Uma primavera fria, em tradução literal). Elizabeth Bishop foi uma poeta comedida e extremamente autocrítica com seu trabalho. Em entrevista à Paris Review, em 1978, ela comentou que nunca gostou do poema “O Alce“, mesmo tendo levado mais de 20 anos para terminá-lo. Em seus 68 anos de vida, Bishop publicou apenas 101 poemas, divididos em três livros. No Brasil, seu trabalho foi lançado pela editora Companhia das Letras nas edições Poemas Escolhidos, Prosa e Uma Arte: As Cartas de Elizabeth Bishop.

Já Lota dedicou sua vida à fazenda Samambaia, que fora, em parte do terreno, loteada e vendida a amigos íntimos, resultando em um condomínio de casas que são símbolos da arquitetura brasileira. Contudo, seu trabalho de maior repercussão foi o projeto e criação do Parque do Flamengo, embora tenha sido afastada no fim por questões políticas (ela teve diversos confrontos com burocratas e afins, entre os quais o paisagista Roberto Burle Marx, e lutou para conseguir tombar o Parque como patrimônio e evitar que a especulação imobiliária fizesse dele um loteamento particular, o que o manteve preservado até os dias de hoje). Esta situação, combinada ao afastamento de sua companheira Elizabeth Bishop, que nesta altura já estava em Nova York, levaram-na à depressão. Lota morreu de overdose de barbitúricos — nunca confirmado se por suicídio ou acidente —, aos 57 anos, após visitar Bishop em Nova York durante um de seus rompimentos. De volta definitivamente aos Estados Unidos após a morte de Lota, Bishop tornou-se poeta residente na Universidade de Harvard em 1969 e começou, em 1971, uma relação amorosa com Alice Methfessel que duraria até sua morte, em 1979, quando faleceu, vítima de um aneurisma.

4 comentários

  1. Eu sou estudante de arquitetura, já fiz um trabalho sobre o Parque do Flamengo e NÃO FAZIA IDEIA da história da Lota por trás disso tudo. Adorei!

  2. Tinha lido o texto de Gabrielle Bellot (“Sozinha com lizabeth Bishop”) na revista “quatro Cinco Um” , de novembro de 2018, e fiquei curioso sobre a história dessas mulheres e seu romance. Pesquisei e encontrei esse excelente artigo. Parabéns.

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