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Emily the Strange: seja tudo que você não pode ser

Criada inicialmente por Rob Reger como personagem de uma marca, Emily the Strange fez tanto sucesso que acabou ganhando um enredo para chamar de seu. Afinal de contas, não é sempre que encontramos garotas de 13 anos inexpressivas, porém com uma personalidade forte, dark, e gostos peculiares em evidência na ficção — o que é um grande equívoco da parte dos criadores de obras juvenis, porque, se você se lembra de como é ter treze anos, sabe que não é difícil uma garota acabar no espectro de cultivar uma personalidade forte e ter gostos peculiares. Seu rosto apareceu primeiro estampado em skates da marca Santa Cruz Skateboards nos idos dos anos 90, na Califórnia, e logo se tornou popular em diversos produtos da cultura alternativa. Depois de tantos anos sendo definida por seus fãs, Reger decidiu publicar livros em formato de diário da perspectiva da própria Emily, e o resultado não poderia ser mais interessante.

No primeiro volume da série, Emily the Strange: Os Dias Perdidos, conhecemos Emily a partir do zero, pois a menina começa sua narrativa depois de ter sofrido uma amnésia e não faz a menor ideia de quem é nem de onde está. Entusiasta de listas de 13 itens, ela enumera as coisas que sabe sobre si mesma e as coisas que precisa descobrir. São fatos óbvios e aparentemente irrelevantes, mas que indicam os traços essenciais da sua personalidade. Ela, então, começa a perambular pela cidade minúscula, bege e sem-graça que é Blackrock, e inicia a sua investigação para descobrir sua identidade e missão ali. Em sua primeira memória ela está sentada no banco de um parque minúsculo e deplorável, com nada além de uma árvore, uma placa com o nome da fundadora da cidade, Emma LeStrande, e um portão de ferro isolado de três metros de altura. Tudo que ela leva consigo, no bolso do seu vestido preto, é um caderno, um lápis e um estilingue. Ela passa a registrar todos os seus passos nas páginas do caderno, e assim vamos acompanhando a estranha jornada de Emily.

Embora Blackrock seja uma cidade pequena e toda sua extensão seja o cenário da história, as passagens mais interessantes ficam concentradas no bar chamado El Dungeon, uma construção bege e sem graça como as outras da cidade. Lá, Emily é recepcionada pela garçonete monossilábica Raven e começa a trabalhar varrendo o estabelecimento e consertando máquinas em troca de sanduíches e cafés expresso. Por não lembrar sequer seu próprio nome, ela se apresenta como Lacraia e assim fica conhecida durante o seu período de amnésia. Demasiadamente destemida para uma menina sem lembrança alguma numa cidade desconhecida, ela se aloja dentro de uma caixa de geladeira no beco atrás do El Dungeon e passa seus dias na companhia de quatro fiéis gatos pretos, a princípio chamados de McFreely, Wily, Nitzer e Repolho (seus nomes verdadeiros são revelados ao longo da história).

Em seu comportamento furtivo, ela passa os dias espionando os frequentadores do El Dungeon e fazendo anotações pertinentes, e passa as noites explorando a cidade com os gatos. Entre as figuras que cruzam seu caminho, as que mais chamam sua atenção são os membros de um festival itinerante que chegaram em Blackrock há poucos dias, mas passam pela cidade há uma década. Ümlaut apresenta o show de medicina chamado “Profilateria do Professor Ümlaut” e Attikol apresenta um show de ventríloquos e armas chamado “Casa de Bonecas Mortal do Tio Attikol”. São sujeitos presunçosos e suspeitos que frequentam o El Dungeon principalmente para jogar partidas de pôquer calamidade e tentar paquerar Raven. Além dos dois homens, o terceiro membro do festival é um garoto de nove anos com o dom legítimo de vidência chamado Jakey. Quando não está se apresentando, Jakey vive trancado no seu trailer jogando videogame na companhia do seu papagaio, e ao contrário dos dois homens, ele acaba se tornando amigo de Emily. Ao lado dela também estavam um moço chamado Schneider, residente de Blackrock, e Molly Merriweather, sósia de Emily, que contribuíram com pistas cruciais sobre seu propósito na cidade e sobre a origem da sua amnésia — que muito tem a ver com a relação misteriosa que tem com Emma LeStrande e sua rivalidade descoberta com Attikol.

Os mistérios da história são esclarecidos em uma sequência um tanto torta, porém lúdica se tratando de um livro juvenil com escrita informal e ilustrações que o tornam realmente parecido com um diário. No entanto, Emily the Strange se destaca não por ser um livro de excelência narrativa — isso, não é — mas por explorar uma protagonista que foge dos padrões normalmente delineados em personagens femininas jovens e tratá-la como alguém que claramente se destaca no meio dos demais justamente pela sua personalidade. Emily certamente não é popular entre as pessoas e não tem um humor radiante como um raio de sol — pelo contrário, ela prefere ficar distante das pessoas e suas respostas são curtas e sarcásticas; sua zona de conforto é dentro de um laboratório bagunçado onde pode trabalhar em suas invenções mecânicas, na companhia de seus gatos e ao som de bandas como Controle Fúnebre; e seu estilo se resume a usar o mesmo modelo de vestido preto o tempo todo. E, ainda assim, ela apresenta traços de vulnerabilidade quando se sente perdida em sua jornada e quando sente saudades de sua mãe.

Ter uma personalidade oposta ao que é tido como comum na imagem das garotas não torna Emily, de maneira alguma, uma personagem superior e mais madura, mas uma personagem individual. Seus gostos e trejeitos definidos apresentam uma alternativa para que as meninas que compartilham destas características também possam se identificar e se sentir representadas na cultura popular. Provavelmente por isso ela tenha feito tanto sucesso e deixado de ser só uma ilustração em um produto — seu apelo era algo necessário na indústria e por isso sua personagem criou vida por meio dos seus fãs, que notaram algo além naquele olhar cético de sobrancelhas arqueadas. Ainda que os tempos tenham mudado e evoluído um bocado, a representatividade fiel dessa tribo não é tão comum quanto deveria ser, e por mais que seja curioso que um dos símbolos mais fortes resida no corpo de uma menina, é um alívio que Emily esteja ali para cumprir esse papel, de “voz do individualismo e autoconsciência” cuja presença “celebra o inconformismo e nos lembra de cultivar aquilo que nos torna únicas”, na curta definição da personagem dada pelo seu próprio criador.


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