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Em defesa dos trigger warnings

Em primeiro lugar, ficam aqui os gatilhos (ou trigger warnings) para esse texto: vou falar de pressão estética, autoflagelação, transtornos psicológicos, abuso sexual e suicídio. Se algum desses assuntos pode desencadear uma crise em você, não prossiga com o leitura. Preserve-se acima de tudo.

Insatiable aconteceu e então muitas pessoas acharam que um conteúdo problemático e gordofóbico seria válido em 2018 por ser uma sátira. Nesse contexto, a internet sempre rebate e usuários do Twitter relembraram a existência de My Mad Fat Diaryminissérie britânica protagonizada por Rae (Sharon Rooney), uma adolescente gorda recém saída de um hospital psiquiátrico, que tem questões de autoestima e familiares e ainda precisa lidar com as pressões diárias e manter uma fachada de sanidade. My Mad Fat Diary é uma série excelente e é por isso que nunca consegui assiti-la, visto que mostra a realidade de quem convive com transtornos psicológicos de forma verossímil. Por isso, acaba sendo uma representação intensa e, se você lida com essas questões diariamente, vê-las representadas pode ser um trigger, também conhecido como gatilho.

Avisos de gatilho, também chamados informalmente em sua versão não traduzida, trigger warnings são um hábito mais comum em textos publicados on-line do que meios tradicionais de comunicação (como livros e filmes) ou em séries de televisão. Sua função básica é alertar para conteúdos que possam intensificar crises já existentes ou disparar crises. My Mad Fat Diary, por exemplo, embora sempre muito responsável, me fazia ter acesso à flashbacks pessoais de épocas de autoflagelação e questões com alimentação. Então por que continuar assistindo? Talvez porque eu já estivesse envolvida com a trama ou, talvez, porque quando percebia que a narrativa estava me causando problemas, já era tarde demais e eles já tinham sido causados.

Por isso os trigger warnings existem: para que se possa consumir um conteúdo e saber, de imediato, que aquilo pode abordar algo que te cause problemas, tendo a chance de fazer essa escolha antes de ser pego de surpresa.

Quando 13 Reasons Why foi lançada, além das principais polêmicas em relação ao conteúdo da série, o gatilho foi uma discussão lançada. Será que é mesmo válido ter cenas mostrando ou falando abertamente de abuso sexual para uma audiência influenciável? Seria essa uma forma responsável de mostrar que a questão existe, e não só existe como é um problema? Como o suicídio, tema central da série, poderia ser abordado de uma forma que possa trazer o tema à tona, mas que não banalize o sofrimento? Ou que não faça com que pessoas compartilhem imagens de cenas que possam reviver traumas em parte da audiência?

Do outro lado do espectro televisivo, há produções como Game of Thrones, uma série considerada “culta”, voltada para um público adulto, mas com questões parecidas. Game of Thrones é uma série da qual se espera violência. Inclusive, quando existem restrições etárias para consumo de mídia, a maior parte dos programas de TV avisa se existe violência, nudez ou linguagem inapropriada. Mas ninguém avisa se haverá uma cena de estupro jogada casualmente pelo enredo, banalizando a situação.

Essa é a diferença básica entre os avisos de gatilho e os avisos de classificação etária. A qualquer hora que alguém liga a TV ou compra um ingresso para o cinema, vão existir avisos genéricos sobre o que pode ser considerado nocivo. Mas não há aviso de cenas de automutilação. Ou menções realistas a transtornos psicológicos. Ou se as cenas de violência remetem a traumas, como o estupro. Mas por que não dar nome às coisas que não queremos ver e evitar que alguém assista ou leia sem saber, e passe por isso? Por que há tão pouca consideração nesse momento?

Na internet, há uma quantidade enorme de textos que abordam uma suposta geração sensível demais ou que, para superar traumas, é preciso vivê-los e revivê-los. Desnecessário dizer que isso sempre parte de leigos, não de psicólogos ou profissionais de saúde designados para tratar traumas. O próprio Neil Gaiman escreveu um livro reclamando sobre trigger warnings e como as pessoas não querem mais sentir medo. O autor que me perdoe, mas a questão não são os monstros hipotéticos e sim aqueles que fazem parte do nosso cotidiano.

É claro que existem pessoas que preferem consumir conteúdo dessa forma. Mas isso é também parte de uma experiência pessoa para saber quando é a hora e se é uma boa ideia. Há dias que ler um capítulo sobre uma protagonista bebendo álcool em gel para evitar doenças faz com que eu me sinta compreendida, em outros, ler sobre uma protagonista ter um colapso nervoso faz com que eu me sinta mais falha por ser igual a ela.

Ao falar sobre Setembro Amarelo é preciso considerar os gatilhos. Existe uma razão para que livros e filmes e séries avisem com antecedência que vão tratar de assuntos difíceis e que talvez aquele não seja o melhor momento para todo mundo vê-lo, então por que não fazê-lo? Se estamos tentando fazer com que os estigmas em torno de problemas psicológicos diminua, é preciso falar menos casualmente sobre coisas que exacerbam esses problemas como se não fossem nada. É preciso mudar a linguagem.

A linguagem em si é um ponto importante. Existe toda uma discussão de que “o que devemos fazer quando um personagem usa uma linguagem problemática?”: se a narrativa coloca alguém usando termos racistas ou gordofóbicos, mesmo que de forma crítica, isso vai ser um gatilho para pessoas que escutam isso com frequência de racistas e gordofóbicos na vida real. É por isso que o argumento da sátira é falho: mesmo que ela seja irônica, ela não existe no vácuo. Existem técnicas de sobrevivência na internet. É possível bloquear palavras em suas redes sociais (para contexto, tenho uma fobia específica e faço questão de que nenhum tweet relacionado ao assunto apareça), é possível perguntar para alguém antes de assistir se você pode usar recursos disponíveis — um exemplo legal é o Tumblr thiscouldbetriggering, que lista os gatilhos comuns e as cenas que você deveria pular.

Mas onde fica a responsabilidade do lado de quem produz o conteúdo? Cada pessoa pode ter gatilhos diferentes: todos somos complexos, mas existem alguns mais comuns. Abuso sexual, violência doméstica, automutilação, racismo, vícios, LGBTfobia, misoginia, sangue, armas de fogo, etc. são questões óbvias. Não é possível acertar sempre, mas se a ideia é alertar e evitar mais problemas, o objetivo do Setembro Amarelo também pode ser levantar a bandeira da empatia e tomar uma atitude simples que pode evitar o trauma desnecessário do outro.


** A arte em destaque é de autoria da editora Ana Luíza. Para ver mais, clique aqui!